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15/07/11

Metáforas

Um homem em tempos confessava-me que perdera o dom de coleccionar os dias ao perder-se nas fracções em que os dias se desdobram, e que, desde esse dia em diante, passara a falar por metáforas. Por exemplo: se dizia "está sol" pensava num livro que lera em criança, ou se dizia "lamento que não tenha percebido" na verdade incentivava o seu interlocutor a prosseguir na conversa. Era normal que poucos entendessem o sentido das palavras, a direcção do discurso, a coerência das frases. O desconcerto chegava a ser redundante, à força da repetição e da implacável lógica da imagem que se escondia no simples enunciado das coisas. Certo dia, a uma pergunta que eu lhe fiz acerca da razão porque estava ali naquele momento, desatou a contar sem parar, não queria parar, não conseguia parar, abrindo e fechando a boca numa velocidade crescente, número atrás de número atrás de número até à intangibilidade absoluta, até o encadeamento de números se tornar um emaranhando de sons, roucos, altos e baixos, graves e agudos, uma série de gritos, culminando num silêncio final fulgurante; o rosto vermelho e desfigurado, uma careta insuportável como a de um sátiro. Nesse momento, decidi cortar relações com ele. Nunca mais a partir daí consegui pensar em metáforas. Ainda hoje quando vejo o sol apenas penso em amarelo. Nunca em luz.

(Como estamos no Verão, dedico-me às reprises, textos de outras andanças. Está calor.)

27/07/09

Estrada perdida

Vi sobre o fumo uma sombra, subindo desde a estrada. Aproximei-me. Mais perto o limite da sombra, e descobri que quanto mais focava o olhar mais a imagem se desfocava. Aproximei-me um pouco. Corria sobre o motor do carro um vento quente, pareceu-me por momentos percorrer alguma estrada do deserto onde em tempos me perdera. Nessa jornada aprendi muita coisa. A mais importante terá sido como descobrir através da memória das mãos que lhe tocaram a geografia das linhas que se encurvam para dentro com o passar do tempo. Entretanto, o carro arrancava envolto em pó. Pensei no homem que ao volante fingia conduzir. Julguei detectar um sorriso no centro do rosto marcado pelas rugas. Enganei-me. Quando mais tarde entrei em casa e vi uma vez mais o rosto dela, preso de uma luz gritando entranhas! preso de uma sombra onde se reflectia, com uma nitidez dolorosa, o fumo que ascendia do cadáver de metal ardendo na praia, jurei desvendar, a quem estivesse disposto a ouvir, o segredo que permitia que o tempo se encurvasse tanto (como as linhas dela) ao ponto de tocar no extremo um outro presente que entretanto recomeça o seu cadenciado avanço, onde eu reentro em casa, mão no metal, e sou por ela surpreendido, estendida contra a vaga de fumo ardendo de dentro do tempo. Abrindo os braços, caindo no corpo que sussurra entranhas... escorrendo para o território de sombra, o passado.

(Reconstrução de um texto antigo do Arquivo Fantasma)

28/09/07

This way up

Instruções para a leitura (e descodificação) dos meus textos mais herméticos:

Ponto prévio: nenhum texto é hermético; se o texto não é compreensível, é porque existe alguma falha na argumentação, uma contradição ou outra, ou é simplesmente falho de estilo.
Daqui, segue-se o seguinte facto: o estilo é tudo. O estilo será tudo? A unanimidade é impossível (quando alguém afirma ser o melhor escritor em língua portuguesa - e os outros estão a milhas de distância - sabe que está a alienar leitores e, mais do que isso, a obra que produziu, tornando-a sujeita a leituras impuras, condicionadas por preconceitos pessoais; mas o medo de morrer é uma coisa tramada). A unanimidade é impossível. E há sempre um gajo qualquer que sabe a verdade acerca daquilo que escrevemos.
Nem sempre sabemos a verdade sobre aquilo que escrevemos - o texto domina as palavras que o compõem. O texto pode conduzir à contradição, ou pior, ao erro.
O texto conduz ao desaparecimento (cheguei aqui apenas por associação fonética - o texto é som, falado ou lido, vocalizado ou mental; é som, apenas). O texto conduz ao desaparecimento da ideia original, a ideia que ele quer transmitir. O texto demonstra a impossibilidade de comunicar - o que queremos dizer está vedado aos outros; são apenas sombras, aquilo que os outros lêem.
O desaparecimento é um reconhecimento; qualquer conceito obscuro, escondido pelo texto, é reconhecível quando relemos o texto. Deste modo, o texto apenas ajuda quem o escreve. Os que não relêem o que escrevem: nunca foram verdadeiros, ou chegaram demasiado próximo da verdade.
Escrever é um risco - aproxima-nos do abismo essencial das coisas; daqui, não resulta nada de relevante - é também um risco pintar, ou fazer um filme, ou enfrentar cada dia sabendo que este será uma cópia do anterior - mergulhar no esquecimento.
A contradição é essencial - nunca somos os mesmos, a mudança é a nossa segunda pele, o fundamento da natureza (foi Camões quem o disse mais perfeitamente); se a mudança é inevitável, estamos condenados a ser o contrário do que já fomos. Mas vamos acabar por perceber que, no fundo, nunca mudamos - mas aqui falo do desconhecido, não das palavras que escrevemos.

O que é um texto hermético? Um texto que pretende explicar tudo. Nem sequer tentem.

[Sergio Lavos]

19/09/07

Sérgio Lavos

O que há num nome?
Caro Lourenço, desfaçam-se os equívocos: não sou, não hei-de ser, nunca serei jogador de futebol na reforma. Nunca joguei no União da Madeira; nem sequer no Varzim ou na Naval. De modo algum cultivei durante épocas a fio um cabelinho de fazer inveja a Futre; a extrema-direita não é lugar que me seja natural. Nunca abusei da rapidez para ultrapassar defesas-esquerdos toscos (com nomes como Abazai ou Vujacic ou coisa que o valha). O amarelo-canário faz-me comichões e não cresci a jogar no Praia da Vieira, num pelado entalado entre pinhais, a dois passos do mar. Não sou nem nunca fui dono de uma marisqueira na marginal. Nunca frequentei a Escola Secundária de Vieira de Leiria, e por isso não cheguei a conhecer um gajo que me diziam ter o mesmo nome do que eu, um cromo metido consigo próprio que, entre jogos de xadrez infindáveis e uma ou outra partida de basquete, perdia a conta às oportunidades desperdiçadas de trocar uma palavra que fosse com uma (qualquer) representante do sexo oposto - salvavam-se os copianços abnegadamente oferecidos à colega de carteira que, entre o desprezo e a pena, lá ia fingindo sorrisos e esgares maliciosos.
Mas que não seja por isso; serei esse tal jogador de futebol de que nunca ouvi falar e que não tem nenhum grau de parentesco, próximo ou afastado, comigo. A ficção bem que pode dispensar o uso da verdade.

[Sérgio Lavos]

02/08/07

A verdade

Muito daquilo que escrevo tem muito daquilo que sou, mas a verdade é que ninguém poderá saber ao certo quem sou eu a partir daquilo que escrevo.
Reencontro em alguns textos ficcionais restos do meu passado - episódios de infância, imagens que chegaram até ao presente desligadas do contexto geral, sensações difíceis de traduzir, que no papel se transformam em metáforas, aproximações à realidade, esboços linguísticos distantes do acontecimento que descrevem. A matéria para a escrita é a realidade? Nem por isso, é a realidade distorcida pelos olhos de quem vê. Por isso, a liberdade que dou ao texto, deixando que ele use como quer os fragmentos que a minha memória lhe oferece, tem plena justificação.
O que julgo ser mais interessante, neste exercício pouco imaginativo (não crio novas imagens, reciclo as antigas) de reconstrução da memória, é o reconhecimento dos pormenores que escondo no meio do texto ficcional. Sei que aquele vermelho de que falo, o vermelho de uma sala onde eram projectados filmes, numa aldeia sem salas de cinema, provavelmente nunca existiu. Esforço-me por ter a certeza de que existiu. Não consigo. No entanto, o instinto acende esse vermelho na tela da memória. Talvez fosse a cor de algum filme que tenha visto, talvez. Talvez tenha sido alguma visita à mesma sala numa altura em que era ultilizada para outro propósito que não a de sala de cinema - discoteca, com bola de espelhos a rigor e tudo. A verdade é que o edifício onde isto se passava é apenas um espaço vazio entre casas. E ninguém, de resto, confirma a minha história. Talvez nunca tenha sido projectado qualquer filme nessa casa que imagino ter existido. Não tenho a certeza. De qualquer modo, nenhuma palavra, destas que eu acabo agora de escrever, faz juz à imagem, verdadeira ou falsa, que tenho presente. E a imagem que crio em quem lê, como é diferente desta em que acredito. A distância que se alarga entre realidades; a verdade uma ideia que se conta em histórias.

[Sérgio Lavos]

25/06/07

Segundo nível

Perdoem-me a sinceridade: excedo-me nas contradições. Enquanto juro por todos os anjos de Rilke que é mentira que deva alguma coisa à verdade, coloco uma etiqueta no texto que diz: diário. Não me procurem aqui. Isto é apenas um ecrã de computador reflectindo (reparem bem) o vosso próprio rosto. Chega de interactividade?

[Sérgio Lavos]

11/10/06

O museu

O sonho de Gustav era compor uma galeria macabra de ditadores. Facínoras, sanguinários, lunáticos. Homens cujo rosto oscila entre a demência e o ridículo, caretas facetas que nem a pior das selvagerias salva da farsa que a expressão invariavelmente trai. Como o poderia fazer, pensava Gustav? Havia alguns mantidos numa morte suspensa, mumificados para desfrute das gerações vindouras. A maior parte, porém, resistia apenas em fotografias. Mas talvez houvesse uma maneira. De qualquer modo, não era obrigatório que o corpo estivesse no seu lugar do museu. Uma imagem bastava, uma fotografia. Bigodes retorcidos, buços femininos, braços estendidos, ceptros esculpidos a partir de ossos, tronos erguidos sobre a cinza dos cadáveres, óculos, cabeleiras, dentes postiços, barbas de molho, a família em volta, rodeando o avozinho de mãos manchadas de sombra, sinistra sombra, caricaturas de um arquétipo criado por um qualquer deus irónico e cruel. Uma imagem, apenas, no lugar do corpo, e etiquetas com os nomes por baixo, duas datas, a vida e a morte, e um intervalo de tempo preenchendo meticulosamente relatórios e ficheiros com números organizados em colunas, ao longe apenas uma mancha indistinta assemelhando-se a fumo, mais longe nada a não ser memória, mais longe nada a não ser nada. As imagens multiplicando-se para deleite dos visitantes do museu, Gustav imaginava e nesse enlevo se perdia, generoso curador de uma estranha galeria de monstros.

[Sérgio Lavos]

08/10/06

O jogo

O jogo, disposto sobre o pano verde, era aberto. Cada carta valia por si própria, e a mão que ele mostrava não era menos forte que aquela que ele escondia. As mensagens paralelas seriam assim acessórias, a clareza dos movimentos previa que o desfecho fosse rápido e ele prescindisse, se fosse caso disso, da mão escondida. Tudo factos evidentes, daqueles que vêm escritos em tratados da modalidade. Ele, no entanto, entendia a sua estratégia de modo diverso. Preferia percorrer estranhos trajectos, transgredir e hesitar voluntariamente em vista da solução óbvia. Quando se sentia obrigado a jogar a carta necessária, fazia-o com um esgar amargo e enfadado, os dedos atirando com algum desprezo o pedaço de papel na direcção do adversário. Este, placidamente, respondia à sobranceria e continuava a jogar como se nada fosse.
O jogo, disposto sobre a mesa, avançava. Quando se começou a aproximar do fim, as jogadas ganharam um novo fôlego, e a hesitação artificial transformou-se em pressa nervosa. O outro jogador mantinha a calma. Ninguém poderia adivinhar que a mão escondida resolveria a contenda para um dos lados. Menos ainda se poderia prever o surpreendente final, as nuances de uma vez por todas desvendadas. Quando ele se retirou, braços caídos e preso de uma profunda melancolia, o adversário recostou-se na cadeira. Enquanto reunia o baralho, uma carta saltou da manga. Lesto, pousou o cigarro que acendera na borda do cinzeiro e deu um piparote com a ponta do polegar e do indicador, fazendo voar a carta em direcção a algum lugar incerto. De costas, o outro não via. E ele sorria.

[Sérgio Lavos]

29/09/06

Construções

O problema dele é que construía casas como um poeta e poemas como um arquitecto.
Quando se dedicava à sua profissão habitual, tinha um método: sentava-se ao estirador e deixava que os materiais de escrita fossem conduzidos pela regras da imprevisibilidade. O resultado final era quase sempre um projecto tão desmesuradamente lírico que nenhum alicerce, por mais fundo que entrasse na terra, poderia sustentar os pilares e as paredes que iriam perfazer o edifício. Quase sempre também, ele decidia supervisionar a concretização do projecto no terreno, o que tornava o caos ainda mais insolúvel.
Por outro lado, os poemas que escrevia obedeciam a regras rígidas, definidas pelas linhas rigorosas de uma esquadria mágica e invisível. Eram fabricações tão intricadas e perfeitas que dir-se-ia terem surgido de uma única rocha, como se fossem esculturas e não conjuntos de palavras e silêncios. Quando alguém arriscava a voz na leitura do poema, a frieza da escala retirava-lhe a aparente força. Onde as metáforas deveriam enfraquecer, ganhavam brilho. O engenho das imagens era tão poderoso que a realidade acabava por ser uma pálida imitação daquilo que a imitava. E isso destruía-o como poeta.
Nunca foi reconhecido em nenhum dos ofícios, mas persistiu; as forças que todos os dias reunia não foram suficientes para que desistisse das suas duas vidas. Se habituasse o corpo à dolência da falibilidade, poderia com facilidade enlouquecer. E esta fatalidade, como se sabe, é sempre privilégio dos poetas. Coisa que ele nunca iria conseguir ser.

[Sérgio Lavos]

25/05/06

O modelo

César, aspirante a escritor, apanhou naquele dia uma enchente na secção dos modelos. Detectou ao longe a multidão, enquanto passava pela promoção do dia, mesmo em frente à banca dos legumes. Desanimou um pouco, contudo não o suficiente para dar meia-volta e volver, apêndice espinal metido entre as pernas. "Coragem", pensou, neste caso entre aspas, "se não for hoje nunca mais começas aquilo", e seria verdade, tinha a agenda atafulhada durante pelo menos um mês, era uma oportunidade única. Controlou os nervos aspirando o ar em volta, enchendo o peito de forma resoluta. Sem dar por isso, quase deitou ao chão uma grávida que procurava preservativos nas prateleiras erradas, e porque não viu a expressão de fúria que nasceu na cara da mulher, acabou também por lhe escapar o ar horrorizado de um homem de meia-idade (são sempre homens de meia-idade) ao perceber que tipo de artigo a mulher procurava. Chegou por fim à secção dos modelos, encontrando uma densa barreira de corpos e cabeças rodeando o desejado produto. Se pudessem espreitar o enfado que lhe enfeitou o rosto veriam as pequenas rugas ao canto dos olhos, habituais nele, principalmente quando alguma contrariedade surgia. Nem sempre conseguia utilizar de forma sábia o dom da invisibilidade que um professor em tempos lhe tinha augurado num tom jocoso, mas acontece que naquela altura conseguiu activar o interruptor secreto, que para o caso se situava nas costas, mesmo por cima do rim direito, a dez centímetros da coluna, o que tinha obrigado a um esforço agravado do seu braço esquerdo. Invisível portanto aos olhos de todos, ele foi tentando furar por entre o maralhal empurrando e beliscando, puxando e soprando e bufando, agachado ou saltando, pisando pés e dando ombradas, sem contemplações ou angústias. Ao fundo, lá estava o prémio. Ele sabia ao que vinha, e assim que olhou para o modelo reconheceu nas suas linhas o ideal que há tanto perseguia. Era aquele, não podia ser outro. O rigor das feições, o corpo bem proporcionado, a elegância das roupas, o toque de classe do cachimbo pendente dos lábios, o carácter afirmativo dos óculos de massa pretos, o apontamento final da boina encimando o cocuruto careca da cabeça, tudo se encaixava de modo, senão justo, pelo menos imperfeitamente certo. Isso, assim mesmo. Todas as imperfeições do modelo se enquadravam nos planos de meses. Levaria o artigo para casa, sem olhar sequer para o preço. Dirigiu-se à prateleira, retirou-o com cuidado e colocou-o debaixo do braço. Nem notou o peso excessivo, as gotas de suor que lhe perlavam a pele quando chegou à caixa. "Cartão ou numerário?", perguntou a proletária moça, mascando pastilha. "Ah, American Express, por favor." Vinte segundos depois, o modelo era seu. Podia chegar a casa, correr as cortinas, deixar o dia entrar, sentar-se ao computador e desatar a escrever como se não houvesse amanhã, o seu modelo bem paradinho ao lado da cadeira reclinável, de ar sério e bem-posto, pronto para qualquer sugestão, oferta de estilo, consulta de vócabulos; era aquele e não outro que iria servir de guia metódico na tarefa espinhosa que tinha em mãos. Podia ser agora, verdadeiramente, um escritor.