Quem andou anos a afirmar que chegáramos ao fim da história, e a pensar que o atoleimado conforto da burguesia seria eterno, deve sentir-se nesta época de convulsões e de certezas deitadas por terra como Charles Bovary: traído, enjeitado mas estupidamente orgulhoso de quem o enganou.
Mostrar mensagens com a etiqueta Política. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Política. Mostrar todas as mensagens
23/02/12
16/10/11
18/07/10
A cultura dos outros

Sabemos como funciona: uma mentira, de tanto ser matraqueada, acaba por se tornar verdade, o público passa a acreditar nela. De cada vez que se fala em Cultura - essa entidade difusa - lá vem o regimento do costume protestar contra a subsidiodependência e chamar de parasita para baixo aos "artistas". Sabemos quem são, mas, dependendo do partido que está no poder, acabam por aparecer novos indignados com a "pouca vergonha" que é a existência de artistas "independentes", que no fundo são dependentes do Estado e que, por isso, não conseguem criar de forma verdadeiramente independente - bela tautologia. A frase (apócrifa?) de Goebbels - "quando me falam em Cultura saco logo da arma" - é um brinquedo nas mãos destes privilegiados que, aposto (?), nunca terão beneficiado desta política despesista que subsidia a criação. Se lhes perguntarem, eles negarão que alguma vez tenham ido ao teatro, nunca entraram numa sala de cinema para ver um filme português (o sociólogo Gonçalves orgulhava-se, numa crónica, de associar sempre o cinema português a uma sessão de tortura), não visitam museus nem fundações e não compram livros editados em Portugal. Se forem coerentes, também não gostam de futebol nem põem os pés nos estádios construídos para o Euro 2004 - afinal a bola é cultura (do povo) e não há memória de subsídio mais oneroso para o Estado do que a organização desse campeonato. Pensando bem, esta gente que sente repulsa da subsidiodependência deve viver num planeta qualquer e apenas sabe do que se passa em Portugal pelos jornais, reagindo pavloveanamente - e, lá está, de arma em riste - de cada vez que o assunto "Cultura" vem à baila.
Talvez não adiante muito ler textos como o de Manoel de Oliveira, no outro dia no Público, no qual ele explicava como se processa a produção de cinema em Portugal. O final da crónica é essencial para percebermos as dificuldades de quem trabalha na indústria cinematográfica em Portugal. "Fazer filmes até morrer". É isso que Manoel de Oliveira deseja, mas não se pense que o quer fazer por amor à Arte. Ele, o nosso maior embaixador nesta área, apenas o faz porque a isso é obrigado - é assim a precariedade absoluta de quem precisa de novo financiamento para fazer o filme seguinte. E assim sucessivamente. Eu sei que quem vive nesse planeta bem pode dispensar o próximo filme de Manoel de Oliveira, ou o próximo de Pedro Costa, ou de João Canijo. O tal argumento repetido até à náusea de que apenas quem quer ver deve financiar esta Arte. Se não se auto-financia, azar, que se acabe com ela. O liberalismo económico é assim que deve funcionar, e enquanto não se estender este princípio a outras áreas da economia, como a Saúde ou a Educação, estes extraterrestres não estarão satisfeitos.
Claro que nenhum país se aproxima desta utopia liberal. Subsídios estatais à produção é prática comum no Ocidente, mesmo nos E.U.A., onde, pela dimensão, existem condições para haver uma indústria cinematográfica, um circuito de museus privados (mas, hélas, sempre com o apoio de dinheiros públicos), e uma oferta teatral que vai desde a Broadway até à off-off Broadway, os pequenos teatros independentes que, imagine-se, também obtêm fundos estatais para continuarem a sua actividade. Na Grã-Bretanha existe uma indústria cinematográfica mas, azar dos azares, também há apoio à produção de art films, através do British Film Institut; o Teatro tem também bastantes apoios do Estado; e os museus, esses que não foram visitados pelos nossos intelectuais de direita que abominam a subsidiodependência, são alimentados por mecenas, entre os quais, vá lá saber-se porquê, está o Estado, quase sempre o parceiro que tem mais peso no orçamento destas instituições. E não é tão bom não pagar entrada na Tate, no British Museum, na National Galery?
Podem vir dizer que estes são países de tradição liberal e... ah, mas não é nos países de tradição liberal que existe menos subsidiodependência? Não é aqui que o Estado não se mete em assuntos de criação e deixa os artistas serem verdadeiramente "independentes"? Pois é, uma chatice quando os factos contradizem os delírios liberais destes intelectuais. Curiosamente, é neste países liberais que os cidadãos menos se apoquentam com os subsídios à criação. A intervenção estatal nas áreas criativas apenas é um problema em países de tradição francófona ou, pura e simplesmente, de tradição tacanha e anti-intelectual, como é o nosso caso.
A mentira repetida - a de que a Cultura é um peso para um país e não deve ser financiada pelo Estado - acaba por ganhar adeptos em tempos de crise, confirmando uma ideia antiga: as elites são as principais culpadas do atraso endémico do país. O que é mais perverso nesta situação é saber que quem produz este tipo de opinião é quem tem - e terá - mais acesso à Cultura. Os outros, as populações fora dos grandes centros urbanos que vão tendo acesso ocasional à produção cultural - companhias de teatro regionais, cineclubes, museus regionais - serão os primeiros a sofrer se existirem verdadeiros cortes nesta área. Mas não se espere qualquer comoção vinda destes atiradores precoces - uma opinião politicamente incorrecta (a panaceia da direitinha liberal e da pseudo-esquerda iletrada que vive na sombra deste Governo) dispensa sempre a verdade e o mínimo de decência.
19/03/10
Fome
A morte de Zapata Tamayo, ao fim de 85 dias de greve de fome, trouxe à colação o filme de Steve McQueen, Fome, retrato da greve que vitimou Bobby Sands, membro do IRA, em 1981. Ao contrário de outros filmes sobre o IRA (Jogo de Lágrimas, Em nome do Pai ou Michael Collins), não existe uma vontade clara de McQueen em tornar Sands um simples herói da resistência republicana. As suas preocupações são essencialmente de ordem estética. Cada plano tenta capturar a essência do sofrimento humano, mas o caminho que McQueen escolhe não é retórico e muito menos redutor; ele escolhe a via da beleza, citando pintores clássicos - Caravaggio, a pintura religiosa da Idade Média -, encenando quadros e procurando o ínfimo clarão que pode romper o domínio da violência e do horror. Os prisioneiros mergulhados na sombra da cela, no meio dos próprios dejectos, são mais do que um instrumento de uma denúncia política; transformam-se em arquétipo da submissão e ao mesmo tempo da revolta. Sands e o companheiro de cela são espancados pelos carcereiros, são submetidos às regras da prisão sem hipótese de resposta mas acabam por resistir da única forma que lhes resta: o martírio, a entrega do seu próprio corpo, como Cristo - os corpos esquálidos, as barbas longas, as chagas na carne. O que é extraordinário em Fome é o modo como subtilmente passamos da estética para a ética. Não há uma denúncia clara do estado inglês (apesar da imediatamente reconhecível voz de Margareth Thatcher servir de pontuação nas cenas de maior brutalidade), seria demasiado evidente, mas ao espectador é oferecido um ponto de vista, uma escapatória para os seus preconceitos, na longa cena da conversa entre Sands e um padre irlandês, quando este tenta dissuadir o prisioneiro de avançar com a greve de fome. Absolutamente admirável, o diálogo, e marcante sobretudo porque é a excepção num filme de silêncio entrecortado de ruídos que indiciam a violência (urros, gritos, o matraquear dos cassetetes, os ossos quebrando-se contra as paredes). Na troca de argumentos contra e a favor, é difícil tomar partido, mas acabamos por compreender a posição do prisioneiro, a sua absoluta determinação e, em última análise, a intuição de que a derradeira liberdade - a de poder dispor do próprio corpo (como um body artist) - servirá para derrotar o carcereiro, neste caso o estado inglês. Os nove mortos que se seguiram a Sands - a resistência colectiva - acabaram por provar que o martírio terá sido em vão: nenhuma das exigências foi aceite de imediato. Mas o gesto acabou por fazer a diferença, eventualmente. Toda a Arte pode - e deve - ser política.
(Ver aqui a cena da conversa entre Sands e o padre).
26/02/10
O povo Kon'dh
Sobre a maravilha técnica chamada Avatar muito se tem escrito, mas o que James Cameron mais queria - um blockbuster que apelasse ao coração dos membros da Academia - acabou por se concretizar na perfeição. Eu até nem posso dizer mal de Cameron, confesso; gosto do segundo Alien, o mais musculado, gosto do Exterminador Implacável e ninguém pode duvidar de que o homem sabe filmar cenas de acção como poucos. Mas quando, em meados dos anos 90, se separou de Kathryn Bigelow e teve um sonho - ganhar Óscares - o que saiu foi... Titanic, e quem não sinta suores frios só de pensar na voz de Celine Dion que atire a primeira pedra. Muitos anos depois, o regresso teria de se fazer em grande, e no mesmo comprimento de onda. Avatar é na verdade um prodígio em 3D e Cameron quase que consegue criar um Universo próprio - e, diga-se, as batalhas estão bem encenadas, de cortar o fôlego. Lamentavelmente, esse tal Universo é mais apelativo a audiências infantis ou adolescentes - o meu filho vibrou com o final, quando os Na'vi contra-atacam.
A melhor análise ao filme foi escrita por Slavoj Zizek, o que não surpreende, e foi publicada no Russian Journal - infelizmente, o site apenas está disponível em russo, e somente através de assinatura se consegue obter a versão inglesa em PDF. De Lacan a Arundathy Roy, passando pela filosofia chinesa, Zizek consegue evidenciar a plasticidade da crítica anti-capitalista ensaiada por Cameron. O grande público, na cabeça do realizador, deve ser reduzido ao mínimo denominador comum, uma criança: os militares são maus - o coronel é uma caricatura -, com a excepção do herói, humano que apenas deserta quando posto entre a espada e a parede; os Na'vi são bons, criaturas fofas que, vá-se lá saber porquê, apenas podem ser salvas por um colono - e, ainda por cima, incapacitado. Os paralelismos com a atitude beligerante americana são tão evidentes que perdem toda a força. A força rebelde ganha legitimidade apenas porque há alguns humanos que a apoiam. Zizek passa desta realidade - duplamente virtual - para os nossos dias, falando da rebelião que neste momento está a ter lugar no estado indiano de Orissa (artigo de Arundhati Roy aqui), uma reacção contra a planeada exploração dos recursos minerais (no caso, bauxite) da região por empresas de exploração mineira. O grupo rebelde é considerado uma organização terrorista (essa bela capa usada a torto e a direito nos dias de hoje) pelo Governo indiano, apesar dos seus poucos recursos e quase nenhum dano infligido no inimigo que combate.
O cinema tem o poder de manipular as emoções do espectador, e a maior parte das vezes isso pode ser libertador. Mas à emoção, imediata, instintiva, deve suceder sempre a razão; dos milhões de espectadores que viram Avatar, quantos sentiriam simpatia pela tribo dos Kondh, que neste preciso momento passa por uma situação semelhante ao povo Na'vi? Em que momento é que a ficção ganha mais peso do que a realidade?
17/12/09
A cultura da Direita

Caro Rui,
não querendo acrescentar muito mais ao que escrevi, e relembro o que escrevi: "e fico a matutar naquela ideia da direita matarruana no que toca a assuntos de cultura. Se não fosse o Pedro Mexia e outros a contradizer o preconceito...", penso que devias ler hoje no Público - se não o fizeste já - o texto (indisponível para não assinantes) escrito em conjunto por Rui Machado, director do ANIM, e Luís Miguel Oliveira, director do Departamento de Exposição Permanente da Cinemateca, no qual esclarecem a razão do referido arquivo se situar em Bucelas e não no centro de Lisboa. Confesso que não conhecia essa razão, mas ainda fiquei mais elucidado sobre a atitude de Helena Matos; ela escreveu sobre aquilo que não conhecia a fundo, motivada por razões exclusivamente ideológicas. "Se a Cinemateca é um organismo público e se dela depende o ANIM, então deve funcionar mal, de certeza", terá pensado. Parece-me claro. Enquanto eu questiono o meu preconceito em relação à atitude da direita no que diz respeito a questões de cultura, Helena Matos atira-se de cabeça e critica sem saber minimamente do que fala. Quanto a isto, estamos conversados.
Quanto ao resto, julgo que já tivemos esta conversa antes. A minha posição é clara: não faz qualquer sentido não haver em Portugal uma Cinemateca (ou duas, ou as que forem necessárias) e as instituições que dela estão dependentes. O cinema é uma manifestação cultural essencial, e é essencial que os filmes que não tenham distribuição comercial regular estejam disponíveis ao público. E em sala, não em DVD, quem gosta de cinema sabe qual é a diferença. Mas esta é apenas a função primária da Cinemateca - o arquivo de imagens que lhe está associado é a verdadeira razão de existência da instituição; os filmes produzidos em Portugal desde os anos 20 são, como deves imaginar, de uma importância extrema para a compreensão do tempo em que foram feitos, são a memória viva dos acontecimentos que registam, das impressões que deixam, de um sentir das sociedades que neles são retratadas. Alguém que não compreenda isto não me merece consideração. Mas, de que modo é que esta divulgação e conservação deverá ser feita? Será que acreditas na bondade do mercado perante algo que é, manifestamente, pouco ou nada lucrativo? Todos os países que têm Cinematecas, incluindo os de modelo mais liberal, financiam estas instituições - é assim em Espanha, em França, e, pasme-se, Inglaterra (o British Film Institut depende do mecenato e de subsídios). Não faz sentido nenhum entregar o governo destes bens a privados porque, primeiro, ninguém se interessaria, e segundo, seria um risco, tendo em conta as leis do mercado, que visam o maior lucro com o menor custo possível. Nós pagamos a manutenção da Cinemateca porque ela faz parte do património cultural do país, ponto final. Quanto à crítica tantas vezes repetida de que deve ser quem consome os produtos culturais a pagar, devo dizer-te que, para se ir ver um filme à Cinemateca, paga-se entrada, assim como no Teatro subsidiado, nas Óperas subsidiadas (e não é pouco) ou nos museus. Aliás, os museus são um verdadeiro caso de estudo em Portugal, principalmente se comparado com a Inglaterra, onde se pode entrar sem pagar em muitos (financiados pelo Estado e por mecenas) ou mesmo com a França ou a Alemanha, onde, proporcionalmente, os preços são muito mais baixos. Portanto, "as classes médias elitistas e aculturadas" pagam a cultura do seu bolso, mas apenas isso não é suficiente para a cultura existir; e a alternativa é não existir de todo, o que penso não ser aquilo que desejas.
Já agora, de entre tudo aquilo de que gostas, música, cinema, livros, etc, tens a certeza de que, em algum ponto do percurso até chegar a ti, esse produto não foi patrocinado pelo Estado, seja através de subsídios à criação, bolsas académicas ou subsídios à produção? Não farás tu parte dessa horrorosa "classe média elitista e aculturada"?
(na imagem vê-se António Reis filmando Trás-os-Montes)
10/12/09
Um tornado lento

Helena Matos, num curto texto hoje no Público, ensaia um curioso exercício de auto-crítica, não sei se irónica ou não, depois de um longo texto no qual reafirma a sua descrença no aquecimento global e em tudo o que os perigosos ecologistas de esquerda fazem para salvar, vá lá, o planeta. O método é banal: falar do passado para descrever o presente, esquecendo-se de que os ciclos acontecem, é um facto, mas a cada regresso alguma coisa mudou. Certamente só alguém muito confiante no futuro - e portanto, possuindo dons proféticos que Gabriel Malagrida certamente não desdenharia ter - pode achar que a subida de alguns graus na temperatura média do planeta e a série de consequências que o acontecimento tem provocado é uma grande coincidência, a Natureza a seguir o curso normal das coisas. Sacanas dos cientistas, que no fundo querem é organizar lobbies anti-petrolíferas e pró-empresas que desenvolvem tecnologia para o aproveitamento de fontes de energia alternativas. Não sabemos que resultado pode surgir deste combate de profetas, mas temos a certeza de que a sensatez ficará a perder.
Até porque é o curto segundo texto que confirma o que é evidente já no primeiro: Helena Matos começa a falar sobre a nomeação de Maria João Seixas para directora da Cinemateca ironizando com a chusma de cinéfilos que saltou da toca a propósito deste assunto, completando o que diz ao afirmar que não frequenta a sala da Barata Salgueiro, e continua criticando a localização de um organismo (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento) que, dependendo da Cinemateca, se encontra demasiado longe desta, em Bucelas. Nada mal para quem não visita o espaço, e para quem acha mal que tantos tenham uma opinião sobre a nomeação de Maria João Seixas. Eu, que passei muitas horas formando o meu gosto cinematográfico ali, apenas posso ter uma opinião sobre a opinião de Helena Matos - não é para isso que aqui estamos, escrevendo num blogue? E fico a matutar naquela ideia da direita matarruana no que toca a assuntos de cultura. Se não fosse o Pedro Mexia e outros a contradizer o preconceito...
E Maria João Seixas? Uma nomeação política, é certo; ligada ao PS, ocupou vários cargos sempre nomeada directa ou indirectamente por este partido, mas a verdade é que quase todas as nomeações para cargos públicos são o fruto de um sistema político que liga mais à cor do que ao mérito; Bénard da Costa também lá chegou apontado por Vasco Pulido Valente e acabou por realizar um trabalho exemplar na instituição. É esperar para ver, e ela parece ter crédito suficiente junto do meio para usufruir do benefício da dúvida.
Será que sou suficientemente cinéfilo para ter uma opinião sobre o assunto?
24/11/09
Terceiro Mundo

Não quero saber se Portugal é um país do primeiro ou do terceiro mundo - se não somos mais do que somos, será por não termos qualidades para isso, e a culpa é de todos, dos que fazem e dos que deixam fazer, dos que erram e dos que deixam errar. Mas irrita-me o complexo de superioridade bacoco sempre que nos comparamos com países que têm mais do que dois índices de desenvolvimento inferiores ao nosso. E o desporto é um terreno propício a estas exibições patéticas que comprovam parte do que os pessimistas afirmam. Aconteceu no recente Portugal-Bósnia um desses fenómenos absurdos - durante a semana que antecedeu o jogo da segunda mão, não houve tablóide ou telejornal que não acicatasse os ânimos da nação, numa espécie de simulacro do entusiasmo que naturalmente aparecia no tempo em que Scolari era treinador da selecção. Carlos Queirós não tem carisma nem está preocupado em tê-lo, se ter carisma significar um apelo a sentimentos nacionalistas ligados a uma competição desportiva - se isto é bom, não interessa, uma vez mais temos o seleccionador que merecemos. Durante essa semana, os jornalistas despiram o seu facto de macaco e tornaram-se adeptos da selecção, hábito antigo, e a conversão teve o seu cúmulo durante a transmissão do jogo na TVI, com o chorrilho de insultos lançado contra a FIFA por ter permitido o jogo num campo em mau estado; contra a Bósnia, por ter marcado o jogo para aquele campo; contra os adeptos, porque estavam a torcer pela sua selecção com um fervor fora do habitual. Nada que não tivéssemos visto antes, em outros jogos, mas com uma nuance decisiva: o tom de superioridade que estes "adeptos" exibiram - no fundo, Portugal é um dos países da União Europeia, e apesar de tudo é mais desenvolvido do que a Bósnia. O contraste entre este discurso pacóvio e o outro, o que é mostrado quando a selecção joga contra equipas de países mais ricos, é acentuado: aí, fala mais alto o nosso complexo de inferioridade, que não passa de um espelho do de superioridade - ainda me lembro da mão de Abel Xavier na meia-final do Europeu de 2000 e do coro indignado que se levantou a propósito da decisão, justa, do árbitro: "se fosse a França, não teria sido marcado". O problema é que a realidade se encarrega sempre de desmentir a imagem que temos de nós próprios. Hoje, uma pequena notícia na secção desportiva do Público confirma esta ideia: dois dirigentes da Federação Bósnia de futebol foram condenados por fraude fiscal e desvio de fundos, e sentenciados a 5 anos de prisão. Ora, pensemos no que aconteceu por cá quando foram empreendidas investigações ligadas ao mundo do futebol: absolvições, sentenças suspensas, penas irrisórias. O F. C. Porto perdeu alguns pontos quando o campeonato já estava ganho, os dirigentes não foram afastados dos cargos; Valentim Loureiro continua a ser reeleito para cargos públicos; Vale e Azevedo desviou milhões e continua a salvo da justiça. E falamos só de futebol. Porque se falarmos do resto, o panorama ainda fede mais: suspeitas de favorecimento, desvio de fundos, corrupção, manipulação de meios de comunicação, etc., etc., etc., aquilo que está na ordem do dia, serve apenas para vender jornais e alimentar a cloaca das notícias. Sentenças definitivas, revelações conclusivas, qualquer coisa que não passe da suspeita, nada, nada se passa.
Afinal, qual é o país do terceiro mundo?
23/10/09
Saramago vs Deus (2)
O nível a que Vasco Pulido Valente desceu hoje, na sua crónica do Público, penso que põe um ponto final decisivo no caso Saramago. Se não começou bem - o anticlericalismo básico do escritor é coisa serôdia, ultrapassada - e continuou ainda pior - com todas as virgens ofendidas clamando por uma suspensão da liberdade de expressão, que costuma ser tão querida por toda a gente -, seria previsível um texto tão orgulhosamente rancoroso e mal-educado como o de VPV. Ao habitual desfile de amargura, maus fígados e snobismo, VPV juntou o insulto e a arrogância de privilegiado que, de resto, está sempre latente em cada alfinetada que dá. Vasco Pulido Valente é, no fundo, o retrato robô possível das elites a que temos direito: um estrangeirado pesporrento que julga que, só porque leu Eça e Ramalho Ortigão, pode criticar quem, por mérito próprio e contra a classe a que VPV pertence, combateu a imobilidade social que durante séculos dominou o país - esta luta é, sem qualquer dúvida, a mais importante herança do 25 de Abril. É contra gente como VPV que a revolução foi feita. Não sei como pode ser classificado o catálogo de imbecilidades por ele alinhavado: o insulto, o paternalismo, a raiva, são coisas que não podem ter desculpa. Prefiro mil Saramagos exaltados e oportunistas a um Vasco Pulido Valente de rei na barriga, importunado com o êxito de alguém que, do seu ponto de vista, é de outra classe social. Certamente que o país bem pode dispensar estas elites.
01/10/09
Bartleby Cavaco (reposição)

Cheguei a escrever em tempos um texto no qual chamava à colação Bartleby a propósito de Cavaco Silva; fazia, continua a fazer, todo o sentido: "eu poderia fazer, mas não o fiz; prefiro não o fazer; prefiro o silêncio ao erro". Mas os últimos desenvolvimentos da farsa nacional transformaram Cavaco num triste clown de Beckett, trágico, perdido, o derradeiro romântico. Por todo o lado vê inimigos e foge, dança, faz malabarismos, não deixa descansar o país, que deve estar em pulgas (deve, deve) para saber o que verdadeiramente o apoquenta (os esclarecimentos de ontem ainda sujaram mais as águas em que este caso foi navegando).
Mas, não será doutor Cavaco tudo o que aparenta ser? A trupe socratista alegremente canta a senilidade precoce do nosso presidente, talvez para esconder o receio que deve sentir perante o menear de ancas exótico que ele executa com mestria. O que se estará a passar na cabeça do presidente? Escutas, apenas são uma boa ideia enquanto forem tema de uma vaga suspeita; fragilidade do sistema informático, um pretexto para não se falar da suspeita; finalmente, lançar as culpas dos atritos para o PS, uma cortina de fumo para cobrir as verdadeiras intenções do Bartleby de Boliqueime. O Maquiavel da Marmeleira, Pacheco Pereira, já se atreve a sussurrar o que aí pode vir, mas estamos apenas no reino do faz-de-conta, com palminhas e tudo à mistura - preparar-se-à um mini golpe de estado? Haverá reais hipóteses do presidente não pedir ao líder do partido mais votado para formar governo? Dê por onde der, o rastilho para a instabilidade permanente até à queda de um governo minoritário já foi aceso. Será que ainda nos podemos dar ao luxo de pensar que o clown não sabe muito bem o que está a fazer?
(Ah, o texto que publiquei em 2006 é tão premonitório que tenho de o republicar aqui:
Talvez seja um equívoco, mas a meu favor joga o facto de qualquer opinião sofrer do defeito a que se pode chamar de sub-evidência: o que o futuro esconde nem sempre compensa a clarividência em relação ao passado. Mas a julgar pelo que temos visto nestes primeiros dois meses de presidência - Cavaco presidente, Cavaco presidente, habitua-te! - há uma coisa que não vai mudar na figura: o estilo Bartleby. O de Melville, o escrivão que, a certa altura, decide enveredar pelo estranho caminho do desvanecimento. A resposta de Bartleby, plena de um desarmante non-sense, não exige uma réplica ou uma arguência. É assim, subsiste por ela própria. "Preferia não o fazer." Em vão o chefe se esforça para convencer Bartleby da bondade dos seus pedidos, da justeza da sua autoridade, da imoralidade do procedimento do escrivão. A tudo, Bartleby prefere não fazer. Esconde-se a um canto do escritório, alimenta o rancor dos colegas e a ira do patrão, acaba por desaparecer, literalmente, vive no escritório e ninguém - a não ser o advogado que o contratou - dá pela sua presença. Cavaco, desde o "Tabu", cultiva o estilo Bartleby. "Vai recandidatar-se?" "Preferia não responder." "Candidata-se a presidente?" "Preferia não responder." "O aborto, que tal?" "Preferia não falar disso agora." "Poderes do presidente?" "Preferia não emitir uma opinião neste momento." "Lei da nacionalidade?" "Preferia não levantar ondas." "Aprova a política do governo para a saúde?" "Preferia abster-me de emitir uma opinião sobre o assunto." E assim estamos. Mutismo e respostas evasivas. Quem temia - ou desejava - uma vigência de Cavaco agressiva e conflituosa pode ir tirando o cavalinho da chuva. Esta vai ser a presidência Bartleby. Foi assim que ele conseguiu ganhar - à segunda, não esquecer - o voto dos portugueses, será assim que ele irá conquistar o coração de um povo. Combate de uma vida. Como em Melville, as respostas de Cavaco nada dizem porque nada pretendem dizer. Não ouvimos da sua boca a negativa peremptória ou a retumbante positiva, tudo é sim, mas se, talvez. "Preferia não o fazer, que maçada. Pensar, preocupar-me, levantar ondas, que sentido há nisto tudo?" Bartleby, o escrivão, acaba como uma personagem de Beckett - ah, bendito diacronismo! - prostrado contra o solo sob o peso da existência. Não se recusa a ser. Apenas preferia não o ser. Diferença fundamental, também em questões de retórica. Passando despercebido por entre as gotas de chuva.)
28/09/09
Em frente é o caminho
Vamos lá fingir que isto é a sério; houve uma eleição, o povo votou (60% dele, 60) e deu mais algum tempo ao político com o discurso mais vazio da política portuguesa. Sócrates não sabe o que é ideologia, não tem uma estratégia a longo prazo, vive para ser amado. Mas o povo gosta de McDonalds e de Sócrates e de Santana Lopes, e sempre gostou de Portas, quando ele andava pelas feiras ou a comprar submarinos, mais agora que decidiu eleger como principal bandeira do CDS o combate ao rendimento social de inserção. O povo gosta dele porque o povo não é parvo? Não, o povo é preconceituoso, diz mal do cigano que recebe do estado e do vizinho que está há um ano em casa; o povo tem pouco e quer que os outros tenham ainda menos. Por isso, votou Portas. A onda será breve, acredito, porque o centrão não gosta do populismo, venha ele de onde vier. Durará o tempo que durar o governo de coligação com Sócrates. Escrevo Sócrates porque o PS neste momento é Sócrates - Alegre espera que o apoiem na missão presidencial e vai-se calar bem caladinho se a coligação for para a frente. Seguindo em frente então, que Cavaco amanhã dirá se foi ou não escutado, e decidirá se há governo ou não, e de certeza que Sócrates já tem preparada a pele de cordeiro que irá usar durante os próximos tempos; não quatro anos, nunca, até às próximas eleições e ao regresso de um Messias qualquer que salve o PSD da obsolescência.
Mas se não fosse a sério, pensaríamos: coisa estranha que aconteceu aos líderes dos partidos no momento do discurso da vitória; eles, que se apressam sempre a lamentar os números da abstenção e o desinteresse geral dos portugueses, esqueceram-se de referir a ausência de 4 milhões. Ausência ou presença absoluta? O regime que nos tem governado faz por esquecer estes descontentes, mas, mais tarde ou mais cedo, o seu peso será insustentável.
25/09/09
O poder e o povo

Fuck! (Com ponto de exclamação e tudo.) Mais quatro anos de Sócrates em desmando total. Que porra de país é este que gosta tanto de chafurdar na lama. Merecemos todo o mal que temos e mais algum que venha. Conspirações, corrupção, controlo dos media, difamação, promessas vãs, dirigismo, agências de comunicação, incompetência, muita incompetência, políticos vazios e oportunistas à espera da próxima grande empresa pública, mais incompetência, arrogância, prepotência, falsidade, ainda mais incompetência e todos os países da União Europeia que ainda estão atrás de Portugal a passarem-nos à velocidade de um TGV, obrigado portugueses por me terem dado 8 anos (e mais 8) de Cavaco absolutista e agora a mesma receita de Sócrates. Merecem todo o meu asco e o desejo de que o pior vos aconteça - porque aos políticos nada acontecerá, nem que o país se afunde num buraco negro.
08/06/09
O espectáculo das eleições

A impossibilidade de olharmos para qualquer acontecimento exterior de modo inocente torna inevitável a construção de uma narrativa. Mas quando entre nós e o mundo se interpõe uma barreira, o conhecimento passa a ser ilusório, puro engano dos sentidos. Se essa barreira, mais do que ser opaca, é um espelho que distorce a realidade, quanto daquilo que vemos é passível de ser real?
O problema não é aceitarmos a inevitabilidade desta verdade, mas saber até que ponto é mais útil não saber nada do que se passa fora dos limites daquilo que não controlamos.
Olhando para a cobertura mediática da noite eleitoral, apercebemo-nos das narrativas que as televisões vão construindo. Da expectativa anterior às primeiras sondagens à boca da urna, prevendo um resultado num determinado sentido, até aos resultados definitivos, um longo caminho foi percorrido. Os comentadores, analistas, comendadores de serviço, debitaram quilómetros de opiniões, especulações, num festivo bombardeamento dos sentidos. Cada nova informação contribuía para que o espectador se afastasse mais da realidade. Dos erros das sondagens à surpresa da derrota, tudo parece ter sido preparado para que um grande espectáculo fosse assistido pelo maior número possível de pessoas. As marcas de uma obra de ficção estão à vista de todos: o suspense do fecho das urnas, os primeiros resultados, a expectativa sobre uma sondagem para as legislativas, os numerosos directos das sedes dos partidos com jornalistas ampliando os minutos de espera dos derrotados em marcação cerrada e mantendo a emissão numa euforia expectante enquanto os vencedores não entram. O mistério - políticos que abandonam as sedes partidárias -; o melodrama - políticos que choram no enfrentar das adversidades; a comédia - juventudes partidárias em encenadas celebrações; os diversos climaxes - o discurso de vitória, dedos no ar e punhos em riste, as pausas para que o público se manifeste. Indícios de um grande espectáculo, do outro lado do ecrã, para uma audiência de milhões. As narrativas que daqui saem mostram as sedes dos partidos vencedores cheias e eufóricas e as salas vazias dos vencidos depois do esvaziar da festa.
Depois de tudo ter terminado, resta aos jornalistas mais uma previsão, o preparar do terreno para a próxima perfomance do grande circo da política. Análises balofas, adivinhações, truques de ilusionismo que escondem derrotas, sobrevalorizações de resultados esperando mais vitórias.
E nós, do lado de cá do espelho, o que poderemos fazer para além de aceitar a realidade que nos oferecem?
23/01/09
O nome do ministro
Um conhecido ideólogo da blogosfera e do fenómeno comunicacional, cujo nome me abstenho de referir por razões de sobejada fama, não se cansa de encher a boca com uma belíssima expressão - que por sinal não existe na língua portuguesa e é portanto um estrangeirismo - a saber: língua de madeira. Langue de bois, parece, e não é língua de boi, acepipe desprezável da gastronomia nacional. A língua de madeira é o método de cifrar mensagens para que o vulgar cidadão não entenda. O jargão, a gíria dos media e dos políticos, a técnica da finta e do desbaste, do bombardeamento e da confusão, tudo fenómenos que passam despercebidos à esmagadora maioria de nós; um jogo jogado apenas pelos poucos eleitos.
A língua em que este grupo se entende é por vezes quase inteligível; as notícias de jornais, de tão vulgares na sua repetição, são intermitentemente claras. Os estagiários, que se limitam a seguir a cartilha, caem por vezes na asneira, deixando o rabo a espreitar. Por vezes, apanhamos o verdadeiro significado das notícias que nos oferecem.
Longe de mim querer alongar-me nos meandros da teoria da conspiração; a verdade é uma faca de dois gumes, e qualquer que seja a atitude que tome em relação a ela, arrisco-me a cortar os dedos.
Mas imaginemos: imaginemos uma democracia na qual um antigo governante esteja a ser investigado por suspeita de corrupção; imaginemos que a investigação se torna assunto público, por via de notícia de jornal. Fará algum sentido que não se saiba o nome desse antigo governante? Fará algum sentido que esse antigo governante não se demita imediatamente do cargo público que exerce, de maneira a que a investigação prossiga sem sobressaltos? Fará sentido publicar-se uma fotografia com o nome desse governante no jornal, sem alguma vez ser escrito esse nome em letra de forma? E haverá sentido no facto desse governante vir-se queixar de uma hipotética conspiração em ano de eleições?
O que será que temos em comum com o resto das democracias europeias? Apenas a designação, a semântica vazia de um nome?
(Escrevi isto ontem; já se sabe o nome do ex-ministro. O fogo lento também queima.)
[Sérgio Lavos]
09/01/09
Valsa com Bashir
É interessante que Luís Miguel Oliveira, no texto sobre Valsa com Bashir para o Ipsilon, se questione a determinada altura sobre as "picuinhices", defeitos apontados ao filme (às quais ele cola o envergonhado "primado da estética"), e avance na recomendação falando das outras virtudes da obra de Ari Folman; a saber, a ética.
Parece-me que, infelizmente, o filme de Folman será sempre actual; uma obra sobre um acontecimento passado que ecoa o presente de forma dramática. A evocação do envolvimento dos soldados israelitas na infame invasão do Líbano em 1982 e nos consequentes massacres nos campos de refugiados de Sabra e Chatila sublinha a dimensão trágica da actual invasão de Gaza. A história nem sempre se repete como farsa - e os únicos farsantes nesta história parecem ser os que insistem na bondade das intenções de Israel, o velho conto do exército libertador em acção de auto-defesa, que no fundo trará um futuro melhor aos pobres palestinianos controlados pelo diabólico Hamas. O que é extraordinário em tudo isto é a ineficácia da realidade perante as opiniões formadas desta gente: os mortos árabes são números, e a nostalgia estalinista é a nova moda da estação.
A realidade, essa, é relatada do modo mais eficaz possível no filme israelita: através de um trabalho de recuperação da memória. E a analogia é evidente: a memória do narrador, o próprio Folman, apagada por força de um intenso trauma, é também a memória de Israel, o país que esqueceu o sofrimento dos seus pais fundadores, o horror da Shoah. É esta a maior virtude do filme - e a passagem simbólica da animação, do sonho, para a realidade, carrega consigo um peso que parece ter sido esquecido pelos generais que comandam a guerra a partir de quintas, distantes das fronteiras que são diariamente cruzadas por rockets terroristas, e da frente de batalha, onde rapazes e raparigas obrigatoriamente incorporados lutam, sem saber muito bem porquê ou para quê (o desígnio maior, a manutenção de um estado encurralado, é mais uma fraudulenta manipulação de quem manda - qual será o verdadeiro perigo que Israel corre, tal é a desproporção de forças em relação aos estados vizinhos?).
Se estamos no campo da ética, falta ao filme o salto derradeiro, a tal empatia pelo sofrimento do outro. No fundo, quem incorpora o mal maior, lembrado por uma personagem - os campos de concentração nazis - são não-judeus. As cruzes dos cristãos falangistas pintadas nos carros de combate e nas roupas dos carrascos são reminiscentes das suásticas nazis - e isso não pode ser perdoado a Folman; no último momento, a culpa é descartada, como se não tivesse sido Israel a invadir o Líbano, como se não tivesse havido uma conivência activa no massacre.
Quem é o agressor, quem o agredido? Não haverá questão tão clara.
[Sérgio Lavos]
06/01/09
03/11/08
Estamos todos por Obama?

A verdade é que parecemos americanos, no nosso entusiasmo; a pergunta deixou de se colocar há muito. Ainda mais seremos com estas eleições, depois de oito anos medievais, balançados entre mentiras que justificaram guerras e a completa idiotia de estado de que Bush foi a imagem, o corpo e a correia de transmissão de uns quantos tenebrosos oportunistas disfarçados de idealistas, que sairão de cena sem sofrerem na pele o castigo por todas as más decisões tomadas. O problema nem é o mundo estar pior agora do que na era pré-Bush; a História é cíclica. O problema é que a cultura política degradou-se tanto que já se aceita pacificamente que alguém como Sarah Palin possa ter hipóteses de ser líder dos E.U.A. - e McCain, apesar das cedências, seria sempre melhor do que Bush. Mas não, se tudo correr bem não será ele, e pensar que possa acontecer o mesmo que há oito anos com Al Gore parece uma soberana oportunidade perdida. Obama não é o segundo Messias, é certo; se atentarmos às subtilezas da sua mensagem política, veremos que não se distancia muito do centrismo de Bill Clinton, e chegam a ser preocupantes as suas ideias em relação à política externa norte-americana. Mas Obama não é apenas um político que se pode tornar presidente; é uma ideia - de mudança, de esperança, como se fosse o regresso depois de uma longa era de trevas - é assim que a maioria dos seus apoiantes o vê. E é sobretudo uma ideia para o mundo: quarenta anos depois do fim das restrições de direitos a uma minoria da sua população, o país pode eleger para presidente alguém que pertence a essa minoria - a importância simbólica desta possibilidade é incomensurável.
Habituados que estamos a conviver diariamente com a cultura deste país, ao ponto de conhecermos melhor a História dos E.U.A. do que a nossa própria História (abençoados sejam o cinema e a literatura por isto), apenas podemos estar profundamente motivados para o que vai acontecer amanhã, a dois mil quilómetros de distância. E tudo se desmoronará, se Obama perder? É difícil matar uma ideia - disso podemos estar certos.
[Sérgio Lavos]
31/10/08
Em boa companhia




Não sou sentimental e muito menos americano, mas senti uma pontinha de emoção ao ver a lista de apoiantes públicos de Barack Obama. De atentar em várias coisas: a lista é incomparavelmente mais extensa do que a de McCain; a ausência de grandes nomes em todas as áreas artísticas do lado de McCain, contrastando com a esmagadora presença de actores e escritores apoiantes de Obama; a quase inexistência de desportistas que apoiem McCain, mostrando duas coisas - a origem social desta classe e, sobretudo, a componente étnica da candidatura de Obama - quase todos os grandes do desporto são afro-americanos. E, último mas não menos importante, a quantidade de mulheres bonitas que dele gostam (em oposição aos true american men destacados por Ricardo Gross, no campo de McCain): Jessica Alba, Halle Berry, Jennifer Aniston, Patricia Arquette, Kirsten Dunst, Heather Graham, Anne Hathaway, etc., etc., etc., e Angelina Jolie e, por último, Scarlett Johansson.
Temos homem? Habemos...
[Sérgio Lavos]
27/09/08
Palin e os homens
O que me parece ser o texto mais sensato sobre Sarah Palin, o único que coloca os pontos nos i's.
Não sei até que ponto Luís Rainha não terá criado anticorpos no blogue que o acolhe, mas é verdade o que ele afirma: a campanha que alguns blogues de esquerda têm feito desde que foi anunciado o nome da senhora para vice de McCain cheira a enxofre, roçando o puro marialvismo, à moda de Miguel Sousa Tavares.
A reacção de alguma esquerda não é um acidente; é um sintoma. É como o rancor contra as mulheres muçulmanas que decidem usar um lenço nos cabelos ou aceitam a poligamia. O progresso, muitas vezes, tem de ultrapassar questões tão incómodas como a individualidade ou a liberdade pessoal. Sarah Palin, mulher independente que conseguiu chegar a um cargo de poder num estado dominado por uma cultura ancestral predominantemente masculina - a caça, a pesca, a luta contra a natureza agreste - deveria ser um exemplo para a condição feminina. Contudo, Camile Paglia foi a única feminista conhecida que se pronunciou em favor da escolha da candidata, e fê-lo não por apoiar as suas ideias, mas sim pelo simbolismo de ter uma mulher com valores conservadores como provável vice-presidente. Por isso, será para mim estranha a série interminável de posts publicados por Palmira Silva no Cinco Dias sobre Palin. Eu sei que Palmira, como cientista, detesta por princípio qualquer criacionista - e faz bem. Mas julgo que um limite racional deverá ter sido ultrapassado - e não sei se a cientista se apercebeu disso.
E diga-se que todos os valores que Palin defende estão no espectro oposto daquilo que eu defendo. No entanto, lutaria de bom grado pelo direito de ela poder concorrer a um cargo político sem ser apelidada de "dona-de-casa do Alasca". Felizmente, a frase de Miguel Sousa Tavares vale o que vale, nada, tanto como o respeito que ele deve merecer: nenhum.
[Sérgio Lavos]
17/09/08
Percalços
O capitalismo constipou-se. Curiosamente, os pingos dos espirros podem demorar a atingir-nos. Parece-me bem. Os idealistas liberais dizem "calma", que é apenas o mercado a regular-se (como o fazem as gasolineiras que não baixam os preços do combustível quando baixa o preço do petróleo ou os construtores, em tempo de crise imobiliária, que continuam a construir e a manter os preços das casas - o poeta falava do problema da habitação há muito, não é de agora); os idealistas marxistas têm a oportunidade de lançar um ou outro fogacho envergonhado, sábio, de quem prevê um futuro em que tudo se recomporá; os realistas viram-se para o outro lado da cama e adormecem. No fundo, quem pegou a constipação foram os pobres, malandros, que andaram anos e anos a viver acima das possibilidades, levando desse modo o caos aos mercados.
Seria necessário explicar em linguagem de criança o funcionamento da máquina capitalista - o esforço de imaginação, a simplicidade da engrenagem que contém em si o seu próprio fim: a falência de gigantes financeiros, de empresas, é sempre previsível. Que depois do Crash de 1929 milhões de pessoas tenham passado fome por todo o mundo, nem chega a ser um grão que emperre o movimento. Pormenores da história, crises económicas que redundam em regimes enlouquecidos, países de rastos que se transformam em ameaça à paz no mundo.
Sobretudo, é necessário manter o optimismo; que ainda não é desta. Que o desemprego, a inflação e a provável (atenção, provável) miséria são, já se sabe, prova de que os mercados se auto-regulam. O declive acentua-se, mas a ilusão de equilíbrio ainda não foi estilhaçada. A cura é inevitável. Rejubilemos.
[Sérgio Lavos]
Subscrever:
Mensagens (Atom)