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05/07/11

E agora vamos falar de coisas sérias

Calhou uma vez mais estar de férias durante o Tour. Não vou tecer considerações (não tenho jeito para bordados) sobre as suspeitas de doping que perseguem os grandes ciclistas nem a monumental vaia que Contador ouviu durante a apresentação da prova. Toda a gente sabe que os franceses facilmente cedem ao prazer da irascibilidade, e por isso - mais o Flaubert, o Godard, o Camus e o Zidane - lhes devemos perdoar. Adiante. Parece que este ano vai haver montanha a sério. Andy Schleck is my man, se sabem do que estou falar. Como não é o Djokovic nem o Nadal. Gostaria de ter visto este um escocês ganhar Wimbledon, mas não foi desta que Andy Murray superou os seu complexo de inferioridade perante a musculatura do sobrinho do central do Barcelona de Cruyf. Mas o ténis é um jogo de meninas (como maradona e David Foster Wallace se esforçaram por provar). O ciclismo é aquela coisa da glória e da superação e da absoluta verdade de que apenas se poderá ganhar recorrendo a meios ilícitos. O problema não é este ou aquele ciclista serem suspeitos de alguma coisa; o problema é que parece não haver outra maneira de lá chegar, ao topo. A dúvida paira sobre todos, como num filme de Hitchcock. Mesmo os que nunca são apanhados. E isso deixa-me vagamente chateado; por exemplo, aborrece-me que aquele que parecia o mais puro talento surgido nos últimos anos, o herdeiro de Marco Pantani, tenha entregue a alma ao Diabo e o corpo a várias transfusões de sangue, e por duas vezes seguidas. Ricardo Ricco sprintando serra acima era um espectáculo do outro mundo. Mas... como diria Gregory House, "a vida não é justa", e por vezes a glória vai parar aos lutadores com grande capacidade de fintar as equipas anti-dopagem. Enfim, só me lembro disto porque revi hoje um episódio da série no qual é tratado um grande campeão americano pelo médico. E claro, esse grande campeão americano dopa-se. E no fim, safa-se. É a vida.
 Enquanto vou, eticamente dividido, assistindo na Eurosport ao excelente relato da Volta (bela dupla de comentadores aquela, por vezes complementada por um francês irascível chamado Olivier - ou será um belga? Afinal, é monegasco. - que não se importa de ser o saco de pancada dos outros dois), espero pelos primeiros jogos da pré-época. Confesso que a satisfação de ver partir Villas-Boas rumo a melhores paragens foi um pouco atenuada quando foi revelado o nome do novo treinador - Pinto da Costa terá algo na manga, ao escolher alguém chamado Vítor Pereira para o lugar. Resta-me esperar que meia equipa seja vendida - e quando escrevo "meia", refiro-me ao João Moutinho e ao Falcao, os outros podem ficar - e acreditar cegamente nos três ou quatro defesas-esquerdos que Jorge Jesus vai testar no lugar do Fábio Coentrão. Tirando isso, está tudo bem com o Benfica; temos jogadores suficientes para ter duas equipas a disputar o campeonato (haverá maneira de autorizar uma alteração nos regulamentos?) e o pelotão de avançados em linha de espera para substituir Cardozo dá-me razões de sobra para confiar numa boa campanha na Taça da Liga. Isso e os dois Salvios (ou Ramires, como preferirem), os dois Di Maria (Gaítan e a maravilha que sobrou do Barcelona) e os três defesas direitos que não irão tirar o lugar a Maxi Pereira. No entanto, confesso sentir um pouco de inveja do adversário (?) da Segunda Circular. É tempo do Benfica começar a apostar noutros mercados; queremos um Thadeus von Rumpelstiltskin no ataque; um Varsaj Snhjors no meio-campo; e esperanças sul-americanas a treinar na Academia (ah, esperai, isso já temos). 
 Jogos contra equipas da terceira divisão suiça: um must de qualquer pré-época, para compor as bombásticas capas da Bola e ajudar ao entusiasmo dos milhões de benfiquistas que vivem no Seixal. Pelo andar da carruagem, talvez nem sobre muito tempo para espreitar os Mundiais de atletismo, lá para Agosto. O Verão é longo - e a pilha de livros habitual uma vez mais não será desbastada. Boas férias desportivas.

- Inicialmente publicado no Arrastão -

04/05/11

Barcelona

Enquanto José Mourinho luta, perto dos cinquenta anos, com o seu passado, eu recordo uma crónica de Enrique Vila-Matas em que ele fala da sua amizade com jogadores do Barcelona e do interesse destes pelos livros. Nos anos 90, Guardiola mostrava elegância dentro e fora do campo, discutindo literatura com o escritor catalão. Nadal, o tio de Rafael, era também um leitor regular, e o amor pelo Barcelona de Vila-Matas vivia também destas histórias paralelas, prolongamentos dos títulos conquistados com Bobby Robson e Louis van Gaal, da classe pura de jogadores como Stoichckov, Romário, mais tarde Rivaldo e Figo, Ivan de la Peña. O Barcelona, entre meados dos anos 90 e 2009, era a minha equipa espanhola, e para essa afeição não era certamente pouco importante a política. O clube autonomista, tradicionalmente ligado à esquerda, o clube dos românticos e de quem gostava de ver jogar sem pensar em coisas comezinhas como resultados ou títulos. O Barcelona de Rijkard era algo diferente, mas era um prazer, à velha maneira holandesa de jogar à bola. Uma máquina de circulação de bola, e o génio de Ronaldinho Gaúcho a servir a Henry e Eto'o. Um prazer recompensado com um título europeu e o melhor futebol do mundo. Depois, veio o gentleman Guardiola, o intelectual, cordato, correcto, um homem da casa. E Messi cresceu, e tornou-se o olho do furacão morno em que se transformou o futebol do Barcelona. Jogos com mais de 70% de posse de bola, toques curtos desde a defesa, progressão andebolística, o último passe de génio de Iniesta ou Xavi a libertar um qualquer para marcar. Resumindo, um tédio perfeccionista, um aborrecimento descomunal que apenas conquista a admiração sincera de quem estudou demasiado as minudências do jogo (pense-se em Luís Freitas Lobo, e sabe-se do que eu estou a falar) e se esqueceu daquilo que leva os adeptos ao estádio:a emoção, a incerteza, a imprevisibilidade. A equipa barcelonesca é um robô repetitivo, um deep blue imbatível que, com a anuência simpática do mundo e o gesto cortês dos árbitros que vai apanhando, derrota os outros adversários, humanos e imperfeitos. Mesmo o melhor de todos eles, Mourinho. Sempre a mesma táctica, o mesmo plano de jogo, a narrativa perfeita. O mito nasceu - a equipa com o melhor jogador de sempre, quem sabe se a melhor equipa de sempre. Como é possível ter acontecido o desastre da época passada, quando o Inter foi capaz de derrubar o mito? Nunca, e por isso não poderá voltar a acontecer. Os ídolos têm pés de barro, e Mourinho mais do que provou isto, no Chelsea, no Inter, no Real Madrid. A cagança dos heróis do futebol convenceu toda a gente a olhar para o lado perante o espectáculo miserável de jogadores a atirarem-se para o chão ao mínimo toque. Busquets é o bebé chorão que toda a mãe sonha ter, Daniel Alves passou do segundo melhor lateral direito do mundo, um jogador excepcional, a fiteiro incorrigível, provocador e briguento, e sempre perdoado pelos árbitros. Salvam-se alguns: Iniesta, Xavi. E depois, Messi, o extraterrestre, o monstro alimentado pela equipa e pelo resto do mundo. Os consecutivos falhanços do jogador argentino na selecção, nos antípodas do deus Maradona, são um indício claro da importância do sistema de jogo e da qualidade dos restantes companheiros no Barcelona. Maradona carregou às costas uma equipa, um país, uma nação ferida por uma guerra perdida contra um país europeu. E em Itália, voltou a fazer mesmo, contrariando possibilidades estatísticas e a influência dos poderes da FIFA que não queriam ver repetir-se uma vitória da Argentina. Messi, para já, habita outro reino, um Olimpo inferior ao deus maior.

Por isso, meu caro Vila-Matas, lamento ter deixado de gostar do Barcelona. Pesaroso, lembro a minha primeira visita à cidade catalã e a romaria ao Camp Nou. Aquela grandiosidade, a popular mística, era verdadeira. Barcelona vivia o clube e eu vivia com a cidade quando via os jogos do campeonado espanhol, e sentia um gozo enorme sabendo que Guardiola era leitor de Borges e de Kafka, e que um dos meus escritores preferidos se sentava com os jogadores naquele café da Praça Catalunha de que agora não quero recordar o nome a falar de futebol e livros. Uma narrativa belíssima, uma história inatacável. Sei que voltarei a gostar do clube, mas entretanto chegou Mourinho, o engenhoso construtor de narrativas, o treinador pós-moderno, o espelho de uma vaidade que lhe vai roubando a juventude. O Real joga à defesa, é certo, mas jogará o Barcelona ao ataque? Talvez não interesse, mas sei que o plano de Mourinho para estas meias-finais perdidas foi boicotado pelos dois árbitros. A defesa era apenas a primeira parte da história. Mas Daniel Alves decidiu voar e cair deitado no chão a queixar-se de umas dores que nunca existiram. Imperdoável. Vergonhoso. E tudo se desmoronou. Esqueço a finta maravilhosa de Afelay e o monumento de Messi no segundo? Nunca. Mas a beleza desses dois momentos já tinha sido obliterada pelo erro anterior. A emoção foi-se. Ficou a aborrecida perfeição da máquina futebolística barcelonesca. A inevitabilidade da vitória. E isso não é poesia. Eu sei que compreendes. Falamos daqui a uns tempos.

- Publicado também no Arrastão

07/06/08

Um mês de quarentena

A vida cansa. O Verão está quase aí e a selecção Scolari prepara-se para mais um mês de paciência moída, esperas a jogadores, desvario de jornalistas em reportagem, peregrinações de autocarro, lamentações escatológicas de Pacheco Pereira e outras deambulações pelo lado mais negro da alma humana.

Avanço pelo cinismo dentro, claro, admitindo que talvez, reafirmo, talvez, passe este mês colado ao ecrã, de jogo em jogo, adequando horário laboral às melhores partidas e aos jogos da selecção. Eu sei que assim será, mas bem que me poderiam poupar os preliminares e o cigarrinho posterior. Vamos falar claro: não quero telejornais infindáveis sobre a dieta dos jogadores, os treinos dos jogadores, as mulheres dos jogadores, a ausência de vida sexual dos jogadores, as fãs dos jogadores, os velhos da aldeia que vêem a banda passar sem que a banda se digne a parar por eles (mas um microfone, esse, pára por qualquer coisa); aceito um pouco de comentário do Luís Freitas Lobo ou do António Tadeia, mas por favor não convidem o Oliveira do alho no balneário ou o Artur "olho negro" Jorge para dissertar sobre o trabalho do seleccionador ou as vicissitudes do apoio de um país à selecção; transmitam na televisão as grandes partidas de campeonatos de outros tempos, mas evitem os vislumbres dos toques do Ronaldo (apesar de andarem pelo You Tube umas imagens fantásticas de Ronaldinho e outros jogadores da selecção brasileira a curtirem com a bola num treino); podem mostrar entrevistas do Eusébio a falar do Mundial de 66, mas recusem o facilitismo da conversa com o emplastro sobre as decisões tácticas do seleccionador nacional.

Eu sei que posso escolher: mudar de canal, desligar o televisor, sentar-me a ler um livro - ou até voltar a ligar o aparelho e aproveitar para ver na Eurosport as retransmissões de partidas clássicas de antigos campeonatos. Mas, por defeito cultural (a minha portugalidade), queixo-me. Um mês de paz e sossego (relativos), de cerveja na mão e comemorações na rua, alegria para esquecer o cansaço da vida, uma dieta contida de transmissões sem gordura, sem refegos e enchidos para dar cabo do colesterol e da paciência.

A maior conquista de Scolari? Pôr um país inteiro um mês de quarentena. Aposto: se Cristo voltar à Terra em Freixo-de-Espada-à-Cinta, bem no centro da aldeia, ninguém o notará; Portugal prepara-se para se exilar de si próprio.

(Texto publicado originalmente no Corta-Fitas)

[Sérgio Lavos]