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16/12/11

Christopher Hitchens (1949-2011)

Depois de Nietzcshe, mais um ateu famoso que morre antes de Deus. Christopher Hitchens. Mas não a verve, a veia de polemista, o apurado gosto, a ferocidade do crítico. Os seus textos, as aparições na televisão. Os livros. Sobretudo, Deus Não é Grande, manifesto ateísta dominado por uma pulsão provocatória que ultrapassa demasiadas vezes a racionalidade argumentativa. Hitchens, como muitos ateus, era um militante, um crente. E, como muitos crentes, era um fundamentalista. Confudiu fé com religião, a imaterialidade da primeira com os erros das instituições que servem a segunda.

Pormenores. A inteligência do crítico e o arsenal retórico de que abusava em discussões muitas vezes pareciam deixar à distância eventuais erros de julgamento. O que desculpamos a um homem equivocado é quase sempre uma medida da nossa própria sensatez. A Hitchens, desculpamos muito. Viver terá de se aproximar do que foi a existência dele. Um fogo-de-artifício breve, e depois o céu escuro. Para tanto, Deus não deverá ser chamado.

28/05/08

A humanidade

Comprei o Diário de Etty Hillesum (editado pela Assírio & Alvim) por razões que nada têm que ver com as razões de muitos dos que compram (ou vão comprar) o livro. O que me atraiu na história desta judia holandesa vítima da perseguição nazi na Segunda Mundial foi o sentido absoluto de purificação do corpo para redimir os pecados da alma. O diário evolui de um registo entre a nevrose aguda e um deslumbramento com as propriedades mágicas do desejo sobre o corpo para um conjunto de meditações sobre um despojamento apoiado numa crença que não admite a dúvida. O Deus de Etty é verdadeiro porque lhe permitiu reencontrar um caminho no interior do caos; ela recusou a fuga, entregou-se ao sacrifício, por razões tudo menos espirituais (como sucedeu com Santo Agostinho). Que o tenha feito durante um período no qual o tempo humano se suspendeu, reforça a força da sua entrega. No coração do seu fervor místico, da sua loucura religiosa, pulsava a humanidade no seu estado sublimado. Será talvez por isto que conseguimos sobreviver ao Holocausto.

[Sérgio Lavos]

28/03/08

Duas ou três penadas

Não me lembro de algum texto me ter convencido de forma tão decisiva a não comprar um livro. A não ler, nem sequer espreitar. O livro estava na minha lista há uns largos meses, vai não vai, no seguimento da leitura de Deus não é Grande, de Christopher Hitchens. Esperava a ilusão depois da desilusão de Hitchens.
(Descontada a retórica, que de resto é facilmente contestável, fica nada. Absolutamente nenhum ponto se acrescenta ao que já se sabe sobre religião; devo dizer que a retórica descabelada de Hitchens, por muito ácida que seja (fogo-de-artifício estilístico), convenceu-me a seriamente voltar a reconsiderar a questão da minha crença. Por outras palavras: se antes navegava alegremente nas águas turvas do ateísmo, agora o meu barco aproxima-se perigosamente de uma costa estranha, quase agnóstica. Temo pela minha felicidade futura. Obrigado, Sr. Hitchens.)
Tudo isto para dizer que não irei ler A Desilusão de Deus, de Richard Dawkins, graças a um texto perfeito de Pedro Picoito no último número da revista Atlântico (não disponível on-line). Ou como duas ou três páginas construídas sobre um raciocínio claro e bem-humorado, certeiro e simples, de tão óbvio, desconstroem algumas centenas de páginas escritas por um dos mais brilhantes cientistas da actualidade (e se Dawkins é bom - bastaria ler O Relojoeiro Cego para se perceber isso).
Portanto, devo 20 euros a Pedro Picoito. E agradeço-lhe por isso.

[Sérgio Lavos]

23/10/07

Nossa Senhora Fátima

Visitar o café do bairro onde vivo a um dia de semana de manhã começa a tornar-se fundamental. A um dia do 13 de Outubro, é uma trip bestial ver o programa da Fátima Lopes e a turba de senhoras domésticas e reformados solitários que ainda não receberam o prometido telemóvel, glorificando-a acima de todas as coisas. Grita-se muito, nestes belos magazines matinais. Grita a Fátima, gritam os assistentes, gritam os convidados, gritam os repórteres de rua a entrevistar o Zé Manel que nos fala da Suíça e manda um beijinho a toda a gente lá em casa, lágrima ao canto do olho, caniche ao colo e bandeira do Glorioso numa mão, que a fé católica pode ser perfeitamente compatível com a crença sobrenatural numa entidade que ultrapassa em importância qualquer santinho, vidente ou virgem: o Benfica. Há razões perfeitamente válidas para a gritaria: as velhinhas deste país agradecem não terem de se levantar para aumentar o volume do aparelho – entre a surdez e a artrite, não é fácil a vida de um fã de Fátima Lopes.

Um senhor, emocionado, relata o último milagre da Senhora:

- Eu não via o meu sobrinho, vá lá, afilhado, há pr'aí trinta, bem, foram vinte, quer-se dizer, dez, ou seis ou sete, e encontrei-o, por acaso, numa missa ontem, à uma da manhã, estava atrás de mim, acredite (pausa para limpar a lágrima, o repórter diz: amigo, tenha calma. Respire fundo, se não não se percebe nada), acredite, Nossa Senhora foi quem fez isto, mando um beijinho para a minha filha de seis meses, e à minha esposa, que é belga, estou muito comovido...

Corte para a Fátima, passagem algures ao Algarve, onde se encontra Marco Paulo, que deve a vida à intervenção de Nossa Senhora:

- Foi graças a ela (mão no peito, rosto sofrido, olhos por detrás dos óculos escuros raiados de lágrimas) que recuperei da minha doença, devo-lhe tudo, daqui de onde estou, agradeço, que ela está aqui, a Nossa Senhora não é de Fátima, é do mundo, é do povo.

Regresso ao estúdio, alguém vai cantar, daqui a pouco publicidade e depois voltamos a Fátima, onde os milagres podem acontecer.

Não vale a pena procurar explicações para o fenómeno de Fátima noutro sítio que não seja o Portugal retrógado de 1917. Que, passados 90 anos, continua tão retrógado como era nessa época. Curiosa é a coincidência da Revolução Comunista ter acontecido na mesma época das aparições. Menos curioso é o facto das aparições terem sido utilizadas como arma política contra a emergência da nova potência comunista, a União Soviética. Imagino que as visões de Lúcia, de um apocalipse liderado pelas hordas de proletários, tenham mais a ver com a hierarquia católica ameaçada pelo ateísmo que o comunismo preconizava (apenas há lugar a um ópio para o povo, o belo ideal revolucionário propagado pelo Querido Líder), do que com algum cogumelo mágico encontrado pelos pastorinhos e pelo povaréu que se juntou ali na Cova da Iria (embora haja relatos de uma erva-do-diabo que crescia à sombra da azinheira milagrosa). Há árvores que choram, quadros de santas que sangram, cadáveres que não se decompõem, mas é difícil atingir o estado de delírio a que se chegou naquele dia. Tão delirante, tão delirante, que nem a fiável objectiva de Joshua Benoliel (por sinal, um ímpio judeu) conseguiu apanhar o milagre do Sol rodando sobre si próprio (há uma música sobre isto em “Piper at the Gates of Dawn”). Fixou-se antes na multidão de devotos, braços abertos em direcção ao céu, rostos crédulos e esfomeados esperando por um milagre que os salvasse da miséria em que viviam.

Salazar e a Igreja Católica encarregaram-se do resto. Fim da história.

Noventa anos depois, o delírio entra pelas casas dentro. E, no fundo, entre uma peregrinação a Fátima e uma visita à catedral da Luz não há muita diferença. Cada um dedica-se ao culto que mais lhe convém. E se possível, acumulando. Garantem-se assim maiores possibilidades de salvação. Amén.

(Texto originalmente publicado no irmão lúcia)

[Sérgio Lavos]

01/10/07

In Rainbows


Depois da resposta que esperava da fct, a segunda melhor notícia de 2007 é, provavelmente, o novo álbum de Radiohead anunciado para 10 de Outubro (em download aqui).

[Susana]

12/09/07

Christopher Hitchens is great


No fim, só há duas respostas possíveis: ou Christopher Hitchens está certo ou está errado. Não estará por cá para saborear a vitória ou amargar a derrota - outra certeza. Todos os argumentos que possa usar contra a existência de Deus são improváveis. Por serem impossíveis de provar empiricamente, e também por usarem um tipo de argumentação que se baseia menos na razão do que no estilo. É claro que aquele sotaque upper-class embebido em álcool faz muito pela força dos argumentos; e, no processo, pelas vendas do seu livro ("God is Not Great"). Se quisermos pôr as coisas de uma maneira clara: num tempo em que a religião vai desaparecendo num estertor violento (fundamentalismo e terrorismos mais do que incluídos) um ateu marxista que defende a invasão do Iraque e do Afeganistão por razões anti-islâmicas apenas podia ser uma estrela emergente. Critica todas as religiões, eu sei. Mas fundamenta os seus argumentos nos malefícios da religião, direccionando os seus ataques a instituições seculares, constituídas por homens, misturando fé e organizações religiosas num cocktail, mais do que explosivo, absolutamente sexy. Atrai mulheres porque critica a misoginia das religiões; interessa a ateus porque tenta, atabalhoadamente, provar a não-existência de Deus (parece-me que a mais difícil das tarefas, mas quem sou eu?); e seduz o grande grupo neo-conservador e seus simpatizantes com a sua demanda anti-islâmica. Não é nada surpreendente, portanto, que um ateu que se afirma de esquerda consiga adquirir uma legião de admiradores na direita blogosférica, assim como no meio intelectual neo-conservador norte-americano (esses agarram-se a qualquer um que se aproxime do seu idealismo distorcido e anti-islâmico).
Esta bela campanha mediática tem conseguido vender uns quantos milhares de livros, é verdade. Mas se muitos daqueles que admiram a sua cruzada anti-religiosa lessem os seus textos pró-Bush, talvez a sua estrela empalidecesse um pouco.
E claro, temos sempre de ter em linha de conta o factor Abel/Caim. A luta fratricida de Christopher com o seu irmão crente e conservador, que ainda por cima se opôs à invasão do Iraque, Peter, é matéria que inflama qualquer alma. Quem não se pela por uma boa questiúncula familiar? Se é bom para o espectador de novelas, por que não será para o intelectual com dúvidas metafísicas? E dão-se bem, os irmãos? Vão fazendo o que podem pela vida.

P.S: A discussão sobre as origens da moral é básica. Um parágrafo de Peter Singer sobre o assunto vale mais do que os 7.43 minutos da conversa entre Christopher e Peter. Mas se falamos do nível conversa de café, não está nada mal.

[Sérgio Lavos]

14/07/07

3-3

É uma reacção normal, ou apenas o ciclo natural deste assunto, pelo menos desde o século XIX; depois de alguns anos em que a religião foi o tema mais importante, regressamos ao ateísmo. Dir-se-ia que o assunto é o mesmo. Ideia errada. Ateu não é antónimo de religioso, assim como crente não é o contrário de ateu. Eu, como produto do ateísmo, me confesso: creio na não-existência de Deus. Já senti mais vontade de abandonar esta fronteira - crer em deus simplificar-me-ia a vida. Mas também já ensaiei a minha dança como o niilismo ateu. Contudo, acredito firmemente em algo: nenhum dogma perdura. Nem Deus nem falta a dele, deste modo.
De qualquer maneira, Deus ri nas minhas costas. Eu estou aqui a escrever esta oratória das coisas perdidas e ele sabe que levará a melhor no final (caso exista). Se não existir, também não será por isso que resistirei ao poder das minhas palavras. O problema é a sua omnisciência. Nenhuma blasfémia ficará sem castigo. Se peco contra deus, arrisco o Inferno. Se peco contra a Razão, e acredito, aproximo-me do inferno em vida. Há quem seja mais sensato, claro. Quem não questiona, quem não duvida, quem piamente se dedica a uma causa - e não falo do comunismo. Mas, por qualquer defeito de fabrico, eu duvido. Desde a adolescência, essa idade maldita, que duvido. Horas e horas de insónia, revirando-me no escuro da minha pobre condição humana. (Há muito de invenção poética nesta imagem; era pior no Verão, quando as melgas se juntavam a Deus no meu martírio).
Mas se defendo alguma coisa em abstracto, é a tradição dos rituais religiosos. Não me sinto confortável sabendo que há gente, a esta hora, caindo de joelhos, convulsivamente, a ser curada de uma qualquer doença fatal. A ideia de que um qualquer iluminado poderá, apenas com a força de um gesto sobre o rosto, apagar qualquer inevitabilidade da vida, deixa-me pouco menos que perplexo. Se um milagre é algo potencialmente acessível a qualquer um de nós, onde se esconde Deus? Um dos melhores episódios de House é aquele em que ele perde com Deus* (3-2, salvo erro, é o resultado). Um adolescente com delírios místicos entra no hospital doente. House aposta a sua crença na razão científica contra a vontade de Deus. No fim, descobre-se que o rapaz peca de modos pouco menos do que ímpios - não há poder inspirado por Deus que resista ao desejo humano, esse diabo de muitas caras; e Onan não é apenas um exemplo a não seguir.
A vontade humana não é coisa fácil de domesticar. Talvez a razão de não entender muito bem os misteriosos poderes da Fé. Agrilhoar-se a uma incerteza parece-me tão insensato como negar de forma definitiva essa mesma incerteza. (E Deus acena a cabeça em concordância comigo). O meu ateísmo suave permite, no entanto, que concorde com uma ou duas coisas: uma delas, na ordem do dia, é a missa em latim. Manter as massas na ignorância? Não, não entenderam nada. Tornar a religião humana, atribuindo-lhe a qualidade mais humana de todas: a capacidade de maravilhar, deliciar esteticamente. E Bento XVI, intelectual distante do paganismo inerente à religião católica, percebeu o que está em causa. Apenas a Razão pode estabelecer o catolicismo, e a Razão nasce da contemplação do mundo: o ritual, a envolvência, o confronto com o inefável. Nós, pobres ateus, nem sabemos o que perdemos.

*House empata no final, de acordo com um leitor. Devo ter adormecido a meio do encontro.

[Sérgio Lavos]