Não me canso de ver as fotografias do Venice Daily Photo - descoberto há uns tempos através do Luís M. Jorge. Veneza é sem dúvida a única cidade das que visitei que não se repete a cada imagem. Olhar para as fotos ajuda-me a recordar e ao mesmo tempo a imaginar o que será Veneza no momento em que o fotógrafo dispara. Já lá estive, e continua a parecer uma cidade que não existe, uma cidade invisível como as de Italo Calvino. E se alguma coisa a viagem reforçou, foi a sensação de irrealidade que dela irradia. Antes, era um postal turístico, um lugar cuja aura de cliché o tornava pouco apetitoso. Durante, depois, o fascínio. Não estarei muito longe da paixão - e por isso cada vez menos a reconheço, e é menos real, um sonho. Os pés que pisaram as ruas da cidade não acreditam nela. E por isso, amam-na.
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26/05/12
28/03/11
Escrever a viagem
A imobilidade fulminante da escrita e o movimento permanente da viagem: os dois territórios em que o escritor viajante se encontra. Entre um e outro, entre a velocidade da mão sobre o papel e a atenção do olhar sobre a paisagem, a dinâmica da memória, o vaivém entre passado o futuro, esbatendo o eterno presente. A dobra nascida deste embate, desta comunhão, desdobra o espaço em todas as suas dimensões. Mas Sebald ultrapassa estes vastos limites: cria pensamento.
13/03/11
Istambul – de um livro a uma verdade
Cidade com livro no bolso; de Orhan Pamuk, para o caso, e que se chama Istambul, Memórias de Uma Cidade. A quinta edição, publicada pela Presença. Traduzido do inglês, descobri ao fim de algumas expressões que apenas poderiam ser versões enfraquecidas de expressões idiomáticas na segunda língua que conheço melhor. Curiosamente, a ficha técnica do livro não refere de que língua a tradução é feita. Seja como for, o português é suficientemente escorreito para ter sido um prazer, ter pegado nesse livro – mas nunca o consegui enfiar no bolso, e não vou culpar o tamanho do livro (e a tradição de haver poucos livros em formato pequeno por cá) mas sim o tamanho dos meus bolsos. Não adianta chorar os passeios a pé com livro atrás que não cheguei a fazer; em termos logísticos, os passeios a pé já são suficientemente pesados para se poder levar mais um objecto (e, para cúmulo, parece que neste objecto, dizem, podem caber mundos). A mochila carregada das minudências habituais – garrafa de água, algo para comer, o guia de que vamos precisar apenas um por cento, um resto de roupa que o calor obrigou a despir e um bloco de notas raramente usado, o tal bloco de que ouvi falar nos livros de Bruce Chatwin, há muitos anos, o bloco comprado apenas numa minúscula loja parisiense, e que entretanto se tornou fetiche de meio mundo, obrigando-me a deixar de parte o hábito de comprar os tais blocos, descansando do peso insuportável das páginas deixadas em branco em todos os blocos acumulados ao longo dos anos; a mochila carregada, e o livro que não é de bolso a pesar demasiado a ficar no hotel, charmosa pensão, moderna e arejada, vista para o mar de Mármara, para o passeio da melancolia, o mar calmo batendo na amurada, alguns barcos apodrecendo num abandono ferrugento, guindastes sem uso que apenas servem para enquadrar a outra margem em fotografias batidas de turista com pretensões a nada. Não é o mesmo mar de Pamuk, é certo, e juro que a sombra do escritor não me perseguiu. As imagens conhecidas mostram um homem de óculos, olhos pequenos, um intelectual distante da ideia feita que temos de um turco. Agora também me lembro dos retratos de infância que intercalam o texto do livro: cabelo claro, parece, uma criança triste – as suas palavras, iniludíveis, fixaram em mim uma ideia de tristeza, em permanente diálogo com a melancolia da cidade. A infância fotografada a preto e branco mostra tios, pais, irmão; e mostra os edifícios decadentes, mergulhados no esquecimento, traídos por um mar, o Bósforo, sem luz, dias claros de céu limpo, cinzento a perder de vista, galgando a margem oriental e o perfil recortado dos minaretes de prata. Não estou certo, agora que escrevo sobre isso, que a sombra não me terá perseguido. Mas apenas depois, no regresso. No regresso, quando finalmente abri as caixas com os filmes de Nuri Bilge Ceilan e descobri que Istambul não era a mesma de Pamuk, uma cidade assombrada por um passado de glória erguida sobre o sangue de incontáveis mortos, cruzamento de continentes e lugar de guerra e de conquista. O confronto entre a modernidade de Ceylan – certo ser esta modernidade uma ilusão – e a tradição de Pamuk levou-me a que a lembrança da viagem (agora, ainda a mais distância, reforço a ideia) fosse marcada pelas duas margens separadas pelo Corno de Ouro, o braço de mar que é como uma veia onde pulsa o frémito de uma gigantesca urbe com onze milhões de pessoas. A margem direita, a dos bazares antigos, a dos bairros tradicionais onde chegam os milhares de turistas de Nikon em riste, apontando (roubando a alma) à Hagia Sofia, à Mesquita Azul, aos vestígios de Bizâncio, e de Constatinopla. E a margem esquerda, da imponente torre de Galata, é certo, mas sobretudo do bairro da diversão, dos restaurantes, dos bares, dos cafés, Galatasarai cortado a meio pela Avenida Istíklal, percorrida pelo eléctrico antigo de uma ponta à outra. Eléctrico? Sim, e a memória de Lisboa não é apenas uma um acaso aquático – como se o Tejo se fragmentasse em três canais – O Corno de Ouro, o Mar de Mármara e o Bósforo. A ilusão seria perfeita, mas nenhum dos rios de que Istambul se alimenta tem a largura do rio de Lisboa. E enquanto Istambul é uma cidade repartida por três terras e dois continentes, Lisboa é una e indivisível, apesar de Almada e dos arredores. Mas, não será um esforço de imaginação pensar em Lisboa e as suas encostas desaguando no rio como uma gémea bastarda de Istambul – certamente que a límpida luz de Lisboa, naqueles dias de recente Primavera, ultrapassará a luz quebrada pelo fumo de Istambul; mas não há, não pode haver, qualquer competição entre cidades. No entanto, as raízes islâmicas nas quais Lisboa se funda não podem deixar de evocar a cidade turca. São mais as pontes que nos unem, do que as que nos separam.
Cidade sem livro, nesse caso, mas com muito cinema – Pamuk fala das sessões a que assistia dos clássicos turcos, os filmes que mostravam uma cidade desaparecida. O que eu vejo nos filmes de Ceylan é uma cidade crescente, cheia de gente à procura de um destino – são sempre assim, as grandes urbes -, gente que acaba por se perder e nunca se encontrar. Em Uzak (distante), um provinciano chega à cidade e é acolhido por um primo que em tempos também fugiu do campo e se tornou fotógrafo em Istambul. O primo vive o sonho burguês, é um artista. O rapaz que vem do campo tenta adaptar-se, encontrar trabalho, apaixonar-se. Nunca se encontrarão – vivem os dois numa cidade estranha, e a impressão de familiaridade que o fotógrafo tenta passar ao recém-chegado é falsa. Uma solidão verdadeira, germinando na distância da aldeia e do tempo de infância, nunca referido directamente. Neste aspecto, Istambul certamente não será diferente de qualquer outra cidade. Mas quando Yusuf, o recém-chegado, sai à rua num dia em que neva, percebemos a singularidade – um lugar de calor, onde o mediterrâneo chega; e a neve. O silêncio branco de Istambul sob um manto de neve, passageiro – raramente neva, e quando assim sucede, a neve desaparece ao fim de poucos dias -, Yusuf e a neve em fundo, o silêncio. E tudo nasce de um acaso aproveitado pelo realizador: começou a nevar, e as cenas tiveram de ser filmadas em poucos takes, aproveitando o momento, precário, tão fugaz como a sensação que uma sequência tocante de um filme deixa. A neve de Istambul regressará num filme posterior de Ceylan, Climas, compêndio do fim de uma relação, tratado da desagregação do amor. Quatro estações, quatro climas, e o mesmo casal, Istambul como a cidade onde em tempos a harmonia conjugal foi possível. Pensando com ponderação, os filmes do realizador turco mostram até que ponto as ideias que muita gente tem da Turquia são preconcebidas. A modernidade de Istambul, tão próxima do caos mediterrânico que nos define, é um certificado de garantia ameaçado – a entrada na União Europeia foi recusada por uma Europa, com a Alemanha à cabeça, que anda há décadas a tirar partido do trabalho dos imigrantes turcos. Uma Europa arrependida que chora umas incompreensíveis lágrimas de crocodilo provocadas pelos supostos malefícios do multiculturalismo. Será até pecado falar de política no mesmo parágrafo em que se evoca o olhar de Ceylan sobre Istambul; mas a cidade que podemos encontrar aproxima-se muito mais do seu olhar do que do preconceito desta Europa.
Há uma mulher istambulense por quem Yusuf se apaixona: lenço sobre a cabeça, tapando o pescoço e os cabelos, gabardine cinzenta ou creme iludindo as curvas, calças ou vestido comprido. Se é verdade que muitas mulheres se vestem assim, por tradição ou obrigação religiosa, a maioria recusa respeitar esse hábito. O esforço de laicização promovido por Atatürk, o pai da nação, deu os seus frutos, que a crescente influência da direita islamista não atenua. O niqab também é comum na cidade. Numa rua movimentada de Sultanahmet, um marido seguia e a sua mulher ia atrás dele. Um momento, e o marido entra numa loja. A mulher fica com uma criança pela mão, e os olhos, pintados, belíssimos, hesitam, procuram, vigiam. E ela sabe como foi olhada. O romantismo da história repete-se com muitos visitantes, mas a verdade é esta: usar o véu preto, da cabeça aos pés, é uma forma de tortura, inadmissível. E quando assim é, qualquer toada sentimental não tem desculpa. Os defeitos, raros ou não, obrigam-nos a gostar de outro modo dos lugares que visitamos, contrariedades de uma amante reticente. Não fazer uma leitura política da situação da mulher seria, no entanto, pior; o amor a uma cidade não tem nada de obrigatório e é totalitário. Cada sombra prejudica esse amor; inevitável. Seja como for, há outros pormenores relacionados com a política que não podem deixar de ser tidos em conta. O culto da personalidade em torno de Atatürk é visível por todo o lado, principalmente nos edifícios estatais. Também é o zelo que rodeia estes lugares que pertencem ao Estado. Não há um excesso visível de segurança; mas é verdade que a ameaça do terrorismo – laico, do PKK ou da extrema-esquerda, ou religioso, de fundamentalistas islâmicos – é real. Na semana anterior à minha chegada, acontecera mais um atentado nos arredores da cidade. A regularidade da tragédia certamente não afectará os locais, mas será difícil aos turistas não terem isso em mente ao passear pela cidade, desse modo cumprindo-se o principal objectivo de quem escolhe a via do terror.
Mas não nos podemos esquecer da História da cidade, da sequência ininterrupta de conflitos até à estabilização conseguida no século passado. Das glórias do Império Bizantino ao esplendor dos otomanos é uma curta distância, de séculos ou de metros. Frente a frente, dois símbolos de poder enfrentam-se, a Hagia Sofia e a Mesquita Azul, uma das maiores construções cristãs durante a Idade Média e a maior mesquita do mundo até há pouco tempo. Quando entramos na antiga catedral, as duas culturas emaranham-se, criando uma impressão de coincidência temporal entre os dois mundos inimigos. Os frescos bizantinos, nas paredes e na cúpula, transformaram-se em vestígio, memória de outra época, motivo de fotografias tiradas por excursões que param à porta do edifício. Por baixo das cúpulas, no centro, ergue-se outra ruína, o do antigo camarote usado pelo sultão depois da conquista otomana. Saímos da catedral e, dispostas como se fossem uma colmeia em redor de uma das alas, várias construções usadas ao longo dos quinhentos anos de dominação islâmica para adoração dos sultões e outros membros da família real. Entramos, e descalços, caminhando sobre tapetes olhamos o lugar dos mortos. Estamos longe do silêncio dos cemitérios ocidentais; e os cemitérios espalhados pela cidade, pequenos e barulhentos, serão também diferentes, mais próximos do espírito da pedra, do frio do mármore cristão. Se caminharmos um pouco mais e atravessarmos a praça cruzada por vagas de turistas, chegamos à Mesquita Azul, imponente na sua austeridade – não será uma contradição, as mesquitas são por definição, sóbrias, despojadas do rococó das grandes catedrais católicas. Claro que esta sobriedade não recusa a decoração – mas sem imagens, proibidas pelo Corão; e as paredes e cúpula em tons de azul da Mesquita suspendem-nos no silêncio; literalmente – o espaço vazio obriga – é esse o termo – à prece, à devoção a Deus. As regras da mesquita separam as mulheres dos homens, já sabemos. Mas quem reza, de joelhos no chão, recusa qualquer facilidade na sua crença. Quem está acima da massa de corpos em prostração, o imã incitando à oração – e, em tempos, o sultão e a sua família - é o mensageiro de Deus, que através da palavra comanda os fiéis. A excepção à ausência de hierarquia.
O bairro de Sultanhamet, enxameado de turistas, estrangeiros e turcos, é um paraíso também para quem pretenda fazer o circuito habitual de compras – os bazares e as ruas temáticas – a das livrarias, por exemplo, tradicionais, exibindo um aspecto ultrapassado que nada tem a ver com o chique moderno dos espaços de lazer ocidentais. Há espaços assim, claro, mas mesmo aí podemos encontrar resquícios de uma proximidade que já não existe por cá. A livraria onde entrei, procurando um livro de gravuras de Melling, o francês que viveu na corte do Sultão no século XIX, é um espaço vocacionado para quem não é da cidade, com a sua interessante oferta de livros sobre a Turquia ou de autores turcos em inglês e francês. A funcionária que me deu atenção, simpática e disponível, logo se apressou a sugerir-me autores turcos, um gesto que eu achei uma excepção ao comum. Acabei por levar comigo o tal autor turco, Irfan Orga, que se veio a revelar um escritor distante do brilhantismo de Pamuk. Para cúmulo, vim a descobrir ser o número habitual de tal empregada junto dos turistas. Contaria esta história mais tarde a um conhecido que visitara várias vezes a cidade e ele confirmou-me a trapaça. A surpresa será mínima, como também é a familiaridade dos vendedores de tapetes com as mulheres ocidentais. A verdade de muitos clichés é evidente: sim, convém regatear nos bazares porque se pode comprar pechinchas a menos de metade do preço pedido inicialmente (se decidirmos regatear, ter sempre presente o sketch de A Vida de Brian, dos Monthy Python, a grande referência na matéria). O Grande Bazar é como uma memória de uma vida que já não existe no nosso mundo – a troca comercial não é diferente do que era há mil anos atrás; os centros comerciais de Istambul estão desterrados na periferia, a uma distância relativamente curta com o auxílio do eficaz sistema de transportes da cidade. Longe do coração da cidade, alimentado pelo permanente vaivém de pessoas entrando e saindo das lojas de tudo e qualquer coisa mais. Os vendedores na rua também não foram repelidos pelo sistema – continua-se a traficar todo o tipo de comida nas ruas sem medo de contaminações ou de fiscais da inspecção sanitária prontos a vigiar vícios e pecados. E ainda se fuma, fuma-se a sério, acompanhando um chá, sentados num banco da rua, ou num barco a caminho da Ásia. Atravessamos a ponte de Galata, a ponte dos pescadores que, dia e noite, ocupam os passeios que ladeiam a estrada por onde taxistas enraivecidos aceleram, e chegamos à noite de Istambul.
Subindo em direcção à Istiklal, a cidade do outro lado do Corno de Ouro é uma visão de outro mundo; estranhamente, ainda me lembro de Veneza ao olhar para aquela Istambul. Não, na verdade não é um facto estranho – no museu de arte contemporânea, uma exposição sobre as duas cidades é anunciada por um cartaz que mostra uma metrópole imaginária, uma quimera maravilhosa na qual coexistem a Praça de São Marcos e Taksim, e os canais de Veneza se transformam nos rios marítimos de Istambul. A imagem falsa, manipulada pelo Photoshop, acaba por se aproximar da imagem da minha memória das duas cidades. Não é uma fraqueza, contudo; é uma manipulação da minha vontade. No ano em que visitei as duas, interessa-me que haja ruas que se confundem, certezas que não sejam absolutas, preconceitos na margem estreita da realidade. Veneza será a mais oriental das urbes europeias e Istambul a mais ocidental das asiáticas. Será apenas natural que a confusão exista.
Beber raki no ponto mais alto, a torre Galata, não é um luxo que se possa dispensar, até porque é possível fazê-lo por preços mais ou menos acessíveis. A toda a volta, o monstro estende o seu corpo. O Bósforo a perder de vista, em direcção ao Mar Negro, e um fundo de mar a caminho do mediterrâneo. Será mais fácil descer do que subir, dizem, mas não depois da embriaguez ter feito o seu curso. Mas agora, reencontro na memória as notas que não tirei – uma vez mais, o bloco voltou na mala quase em branco. E não foi nesse dia da torre que decidi começar a noite num bar, petiscando fast food oriental, bebendo e conversando. E a noite que entregou os passeios do dia ao esquecimento terminou num complexo de quatro andares com música inclusa. Não sei por onde andava Pamuk, nem as suas memórias de uma cidade que em tempos pertenceu ao pais e aos tios, às avós. A cidade das decrépitas casa de madeira na margem do Bósforo, dos poetas tristes e dos historiadores do quotidiano que nunca chegaram a terminar o trabalho começado em vida. Não havia tristeza no corpo daquelas mulheres dançando na discoteca ao som de hits russos e americanos. Nem medo, nem tradição. Um assomo de liberdade, de alegria. Prefiro aquela dança ocidental acesa no corpo das mulheres orientais à dança tradicional dos sufis encenada para as turistas e, desconfio, já muito pouco sentida. As ruínas das casas de madeira, companheiras de todos os passeios dados, são uma sombra de que as novas gerações não se querem lembrar. A injustiça de ver associado tal país, que consegue conciliar uma história antiga com hábitos modernos, a um preconceito – ainda recentemente se lamentava na Alemanha, motor de uma União Europeia coxa, o multiculturalismo do país, alimentado em grande parte pelos imigrantes turcos -, é evidente; não parece haver qualquer tristeza em abraçar a cultura ocidental. E os velhos, um dia, deixaram de ditar as suas leis.
O livro que não levei no bolso não me contou histórias que eu acabei por descobrir. Não há qualquer surpresa nisto – os livros servem tanto para ensinar como para esquecer. A Istambul de Pamuk, tão próxima da Lisboa de Fernando Pessoa, não existe. As duas não existem, o passado é apenas uma boa história. Os livros precisam mais de nós que nós que nós deles. E a neve de Ceylan, como a de Pamuk, continuará a ser um esforço da imaginação, uma ideia.
(Texto publicado inicialmente na revista Alice.)
(Texto publicado inicialmente na revista Alice.)
23/07/09
O declínio da cultura francesa
Mais do que o declínio das letras francesas, o que se vê por cá, e neste caso o que cá se passa serve de falsa medida do mundo, é o progressivo desinteresse pela cultura e literatura de língua francesa. A língua inglesa é a língua franca do mundo actual, e um intelectual francófono uma espécie em vias de extinção. Esta verdade evidencia que esse declínio é, ou poderá ser, uma ilusão; porque o desinteresse é cada vez maior, cada vez menos se valoriza a literatura francesa. O Nobel de Le Clézio, o ano passado, foi recebido com alguma perplexidade um pouco por todo o lado, mas a realidade é que o desdém mostrado por cá não passou de um espelho do que passou nos E.U.A., o que reforça a ideia de um predomínio da cultura de língua inglesa.
Contudo, basta entrar numa livraria francesa para se perceber que a riqueza do panorama editorial é fulminante; a diversidade de edições, a aposta no livro de bolso, muito mais barato, a proliferação de traduções em todas as áreas das ciências sociais, e sobretudo a visível oferta de livros traduzidos da maior parte das língua existentes, feita sempre do original (é ponto de honra para os franceses, não há traduções em segunda mão, ao contrário do que acontece, tristemente, por cá), mostram que, de certo modo, o público francês está muito mais bem servido do que o inglês ou norte-americano. Não tendo acesso aos números reais, quer-me parecer que será muito mais fácil encontrar um poeta africano ou um romancista coreano numa livraria francesa do que numa inglesa. Não é uma questão de superioridade cultural, mas a verdade é que a abertura ao mundo é uma vantagem que se revela nesta característica do meio cultural francês. E bem podemos estar gratos que assim seja; é muito mais fácil encontrar um autor português traduzido em língua francesa do que em inglês. Muitas vezes com referências críticas nos suplementos culturais dos jornais ou em revistas especializadas, como aconteceu recentemente com Gonçalo M. Tavares e José Carlos Fernandes.
21/07/09
A República
O bairro onde fiquei, a dois passos da Place de la Repúblique, é uma saudável mistura de várias culturas. Há restaurantes italianos e tascas turcas, lojas de magrebinos e cabeleireiros ao estilo africano, um ou outro português e alguns brasileiros, uma lavandaria chinesa e uma esquina de rua que coincide com a saída do metro, o que quer dizer que funciona como ponto de encontro de toda a gente que por ali passa. No dia em que cheguei, tive de esperar quase uma hora pelo dono da casa onde fiquei alojado; a natureza transitória do lugar é evidente: de passagem, os franceses regressam a casa ao fim de um dia de trabalho, ou começam a noite. Vêem-se homens ainda de fato e adolescentes produzidas para a noite, homens africanos falando alto em frente ao supermercado; um deles assa maçarocas que vende clandestinamente aos outros. O controlo de higiene e qualidade da União Europeia continua a encontrar bolsas de resistência entre as comunidades de imigrantes, um sinal de uma possível resistência. Não encontrei cafés ou restaurantes onde fosse permitido fumar, mas as esplanadas estavam sempre cheias de fumadores, e certamente que o vício, por muito que custe aos legisladores higienistas, não está a caminho da extinção. Talvez esta liberdade absoluta dos estrangeiros seja o que verdadeiramente ameaça uma pátria; certamente que a polícia francesa é prova disso: em cinco dias vi três intervenções dos gendarmes no bairro, uma vez numa mercearia magrebina, outra numa operação stop que terminou com a prisão do condutor do veículo (pareceu-me) e a mais grave: uma rusga num restaurante, não sei por que motivo, que acabou com um sobrolho aberto de um polícia e uma aglomeração de colegas nervosos em socorro do ferido. Pensei nos motins nos bairros da periferia, e, de fora, julgo que o nervosismo dos polícias não será pacificador quando a tensão surge. Ao contrário do que acontece em Portugal, ao minímo desafio os agentes da autoridade parecem reagir em força (mas três vezes podem não servir de regra). Os malefícios da multiculturalidade passarão por aqui?
20/07/09
Pont-Neuf
A perfeição não é apenas a simples geometria regular das ruas e a certeza dos acontecimentos. O caos francês talvez seja mais apaixonante do que o rigor alemão - e quem sabe, de entre as cidades que eu não vi, qual conseguirá conciliar estes dois extremos?
O longo passeio do primeiro dia, da ilha de Notre Dâme até à torre Eiffel, mostrou-me um postal vivo, aquilo que todos conhecem. A margem esquerda, alguns vendedores que começavam a montar banca - era cedo - os edifícios do outro lado e a estrada rente ao rio, serpenteando cima abaixo, a sucessão de pontes, construídas em momentos diferentes, e as rampas que descem da rua principal e acompanham a água a intervalos regulares, a margem esquerda culminando na visita a Orsay, a antiga estação transformada no museu com um imbatível espólio de impressionistas. Mas logo nessa primeira caminhada cunhei essa impressão de desequilíbrio: por baixo de Pont-Neuf, lá estavam eles, como se tivessem surgido do filme de Leos Carax, os vagabundos dormindo por entre os pilares, espreitando os turistas que passam. Até a miséria - fatalmente - pode ser romântica; e a associação aos amantes da ponte, Juliette Binoche e Denis Lavant, inescapável para quem conhece (ou apenas ouviu falar de) o filme embeleza o que não pode ter beleza. A estética compromete a ética.
19/07/09
A Liberdade conduzindo o Povo

Em Paris, o lugar que mais senti como meu foi uma livraria inglesa - a Shakespeare & Co, claro -, o que, para além de dizer algo sobre o que é aquela cidade, diz bastante sobre aquilo que sou. Aquela conversa sobre viajar para reencontrarmos aquilo que deixámos, apesar de eu não ter certeza que se possa aplicar a um simples interlúdio turístico, e esquecendo a vulgaridade da ideia, terá alguma razão de ser. Os passos de séculos de um romantismo excessivo pesaram nos meus próprios passos. As expectativas elevadas podem fazer declinar uma sombra sobre o acontecimento - e eu já devia saber isso. O desfile dos lugares familiares - de uma cultura global que já me ofereceu a Mona Lisa antes de a observar, por exemplo - foi-se fazendo na esperança de uma descoberta - como Berlim, que me surpreendeu a cada momento -, e sem essa descoberta o sentido torna-se nebuloso. Mas a verdade é que o espírito do lugar reapareceu - apenas depois de voltar a casa. À organização anglo-saxónica (extremada pelos germânicos) contrapõe-se o desleixo decadente de uma sociedade que parece não saber conciliar os valores da Revolução com as mudanças que foi sofrendo; mais, a História francesa mostra que a traição a esses valores - Igualdade, Fraternidade, Liberdade - foi uma questão de tempo, quando não de forma, guilhotina e Napoleão incluídos, o que apenas acentua o labirinto em que o país se foi embrenhando.
Uma mãe a explicar a duas crianças o significado do quadro "A Liberdade conduzindo o Povo", de Delacroix, é uma tarefa espinhosa. A mulher falava dos tais valores, pondo do lado de cá a República e do lado de lá a Monarquia. O tal paradoxo de um país que deve viver a sua História - Versalhes e a Bastilha destruída - entre a vergonha e o orgulho. Mas não são assim, todas as Nações?
11/08/08
16/07/08
Americana

Chego a pensar que a realidade me irá desiludir; uma imagem é um corte no mundo, que deixa de fora tudo o que não lhe interessa. Não importa. A América, na verdade, não existe; ou não sabemos nós que tudo é ilusão, engano dos sentidos?
[Sérgio Lavos]
02/07/08
Até já
Houve um tempo em que dizia preferir os escritores que mudavam de lugar, os viajantes, os que precisavam da vida para escrever sobre ela. Continuo a ler alguns desses, mas nunca li uma linha sequer de Ernest Hemingway, por exemplo. Entretanto, descobri que na realidade leio com mais prazer os que se limitam a ficar, esperando que a vida os encontre no lugar onde se fixam. Os que procuram o sentido no interior das palavras, ou os que sabem que nenhum sentido é possível no exterior delas - o que, no fundo, vai dar ao mesmo. Agora que me movo, viajo, e acumulo parcelas de tempo fora de mim - exteriorizo-me - reencontro coisas conhecidas quando regresso aos escritores que nunca partiram.
Sei que Walser morreu enquanto caminhava na neve - movimento sobre o breve instante - e sei que Sebald viajou incansavelmente à procura dos vestígios de uma outra forma de viagem - a memória. Mas também sei que Walser, ao desaparecer, recusou o mundo e o nomadismo que a ele está associado; e por vezes reconheceu assim a escrita. Como Sebald terá encontrado uma explicação para as imagens quando mergulhou na abstração das palavras. Viajar e parar, reconhecer o que esquecemos, deixar assentar a poeira sobre a memória transitória do movimento; nada é tão simples como parece. Viajar é tentar de novo, recordar. O neo-platonismo vacilante.
[Sérgio Lavos]
30/05/08
Berlim (excertos) #5
É uma daquelas verdades que se tornam reais quando por elas passamos: em Berlim, a história susteve o seu impulso durante algum tempo, deixando marcas nos edifícios, nas ruas, sobretudo nas pessoas.
Não são só apenas os museus ou os monumentos; ao caminhar na rua, podemos deparar com um sinal de outro tempo, uma placa de metal incrustada no passeio, em frente a uma casa, assinalando a vida de um judeu proeminente que terá ali vivido e que acabou morto num campo de concentração. Duas linhas paralelas atravessam grande parte da cidade, duas linhas irregulares que avançam pelos passeios, pelas ruas, cruzando jardins e parques, duas linhas dolorosas que são como uma cicatriz no tecido urbano - o vestígio que resta do Muro de Berlim. Ninguém poderá escapar à tragédia. Para um turista ela tem um significado apenas pitoresco, para um imigrante nada pode significar; mas um berlinense dificilmente escapará aos ecos que se repercutem no presente. O rigor alemão e o amor à ordem, que poderão ter conduzido o país no passado a becos sem saída, transformaram a cidade de Berlim num gigantesco memorial, numa memória viva - oitenta por cento da cidade foi erigida depois da destruição da Segunda Guerra Mundial, e existem áreas da cidade que não têm mais de quinze anos, edificadas depois da queda do Muro.
A cidade é simultaneamente passado e presente, memória do caos e presença viva da ordem; a geometria regular repete a cidade de outros tempos, provando que o espírito de um povo é imutável. A linguagem da técnica pode conduzir ao horror mas também sobreleva aquilo que de melhor tem o ser humano; o equilíbrio precário manter-se-à até quando?
Não são só apenas os museus ou os monumentos; ao caminhar na rua, podemos deparar com um sinal de outro tempo, uma placa de metal incrustada no passeio, em frente a uma casa, assinalando a vida de um judeu proeminente que terá ali vivido e que acabou morto num campo de concentração. Duas linhas paralelas atravessam grande parte da cidade, duas linhas irregulares que avançam pelos passeios, pelas ruas, cruzando jardins e parques, duas linhas dolorosas que são como uma cicatriz no tecido urbano - o vestígio que resta do Muro de Berlim. Ninguém poderá escapar à tragédia. Para um turista ela tem um significado apenas pitoresco, para um imigrante nada pode significar; mas um berlinense dificilmente escapará aos ecos que se repercutem no presente. O rigor alemão e o amor à ordem, que poderão ter conduzido o país no passado a becos sem saída, transformaram a cidade de Berlim num gigantesco memorial, numa memória viva - oitenta por cento da cidade foi erigida depois da destruição da Segunda Guerra Mundial, e existem áreas da cidade que não têm mais de quinze anos, edificadas depois da queda do Muro.
A cidade é simultaneamente passado e presente, memória do caos e presença viva da ordem; a geometria regular repete a cidade de outros tempos, provando que o espírito de um povo é imutável. A linguagem da técnica pode conduzir ao horror mas também sobreleva aquilo que de melhor tem o ser humano; o equilíbrio precário manter-se-à até quando?
[Sérgio Lavos]
22/05/08
Berlim (excertos) #4
As primeiras cerejas, chegaram. Não vale a pena lamentar o fim do hábito de esperar pela fruta da época; continuemos a fingir que durante o ano inteiro não foi possível encontrar cerejas à venda.
Em Berlim, bancas de fruta e legumes encontram-se nas estações de metro, nos terminais de comboios; por trás da banca, raparigas polacas ou ucranianas vigiam quem passa e esperam que quem passe pare e compre os morangos, os espargos, as cerejas. Meio quilo custa quatro euros - muito mais do que por cá, contrariando a tendência de preços da cidade. O ruído dos comboios, contínuo (passa um de dois em dois minutos), o movimento das pessoas, mais lento do que se poderia esperar, as raparigas de olhos azuis vincados pelo excesso de maquilhagem remexendo na fruta, acondicionando os montes, colocando as maçãs dentro dos sacos, moeda passada de mão em mão.
E as cerejas, brilhando sobre tudo; uma rapariga de lábios da cor da cereja que trinca, relógio da estação no meio-dia, o barulho de um comboio a parar.
Há um ritmo certo para as estações; um ciclo natural para as cerejas. Em Maio, as mãos das raparigas esperam que o tempo curto a que a cereja tem direito seja prolongado para além do razoável. Mas nenhum artesanato pode contra a decadência da casca, da carne, o cheiro a podre que virá. Dentro de alguns horas, a estação fecha, o resto das cerejas vai para o lixo, a rapariga parte no último comboio da noite. Terá de ser assim.
Em Berlim, bancas de fruta e legumes encontram-se nas estações de metro, nos terminais de comboios; por trás da banca, raparigas polacas ou ucranianas vigiam quem passa e esperam que quem passe pare e compre os morangos, os espargos, as cerejas. Meio quilo custa quatro euros - muito mais do que por cá, contrariando a tendência de preços da cidade. O ruído dos comboios, contínuo (passa um de dois em dois minutos), o movimento das pessoas, mais lento do que se poderia esperar, as raparigas de olhos azuis vincados pelo excesso de maquilhagem remexendo na fruta, acondicionando os montes, colocando as maçãs dentro dos sacos, moeda passada de mão em mão.
E as cerejas, brilhando sobre tudo; uma rapariga de lábios da cor da cereja que trinca, relógio da estação no meio-dia, o barulho de um comboio a parar.
Há um ritmo certo para as estações; um ciclo natural para as cerejas. Em Maio, as mãos das raparigas esperam que o tempo curto a que a cereja tem direito seja prolongado para além do razoável. Mas nenhum artesanato pode contra a decadência da casca, da carne, o cheiro a podre que virá. Dentro de alguns horas, a estação fecha, o resto das cerejas vai para o lixo, a rapariga parte no último comboio da noite. Terá de ser assim.
[Sérgio Lavos]
Berlim (excertos) #3
Na minha bagagem, tenho por hábito levar um livro de algum modo relacionado com a cidade que visito. Conhecer os lugares através da literatura sempre foi mais fiável do que usar um guia turístico. Vila-Matas e Montálban acompanharam-me nas viagens que fiz a Barcelona, Virginia Woolf foi comigo para Londres (e Nick Hornby, em espírito). Mas Berlim era um problema. A língua um escolho, o desinteresse pela literatura alemã (excepto a poesia) uma montanha. Parti sem lastro, sem livros. Mas, compensando, levei muitas imagens. E de quem? Haverá Berlim que não seja a de Wim Wenders, a cidade de Asas do Desejo, de Tão Longe, Tão Perto? Um anjo da Vitória a um metro de distância, a meio da cidade, no centro do Tiergarten, o anjo da panorâmica sobre a cidade, o anjo que Damiel não quer ser, sombra vigilante pairando sobre os edifícios de uma cidade a preto e branco, ainda antes da queda do Muro. A memória atraiçoa a memória, no entanto. Já lá vão anos desde a última vez que vi qualquer um dos dois filmes, e pouco me lembro da história; mas recordo o fascínio, o primeiro fascínio do primeiro filme que vi de Wenders. Não há filme imperfeito que não possa captar a perfeição de um lugar. A paisagem precisa do olhar deslumbrado do estilista; a viagem confirmou a impressão deixada pela câmara de Wim Wenders.
Não precisei de literatura, levei as imagens na bagagem. Berlim pelos olhos de um anjo.[Sérgio Lavos]
21/05/08
Berlim (excertos) #2
A sub-população ajuda a justificar o ar limpo e airoso dos transportes públicos; a tradicional eficiência alemã completa a ideia. A verdade é que poderia ter corrido mal noutra cidade qualquer. Mas o modo como a urbe se organiza, de um centro verde, o Tiergarten, para a periferia cortada a meio pelo fantasma de um muro, explica a perfeição da rede de transportes. Os comboios circulam em redor deste centro, cruzando-o uma ou duas vezes apenas, e o metro atravessa diametralmente o círculo sem incomodar o descanso que a paisagem proporciona. E depois é sempre fantástico passearmos por uma cidade que faz lembrar Metropolis, de Fritz Lang, com as linhas de comboio suspensas a alguns metros das ruas, as carruagens deslizando sobre as cabeças, cortando o horizonte verde que espreita a cada esquina. Por duas ou três vezes, vêem-se edifícios ligados por corredores no ar, e parece que a realidade (mais precisamente, os arquitectos que projectaram a estrutura) imita o cinema. De qualquer modo, quem vive em Berlim nem precisa de desfrutar da eficiência da rede de transportes públicos - todas as ruas são dotadas de ciclovias; milhares de bicicletas circulam, e lá se vai a ideia de que viver numa cidade é menos saudável do que viver fora dela.
[Sérgio Lavos]
20/05/08
Berlim (excertos) #1
Na praça Breitscheid, a primeira impressão não foi a melhor; cosmopolitismo sujo, restaurantes de fast-food a espalhar lixo em redor, bric-à-brac de lojas ao melhor estilo de praia, souvenirs e livros de saldo, turistas mais ou menos serenados à procura de um lugar melhor para visitar, freaks de garrafas de tinto na mão a atirar migalhas aos rafeiros que os acompanham, músicos mal amanhados a pedirem meças ao seu jeito desajustado. A igreja Kaiser Wilhem-Gedänichts é uma ruína cuidada no meio de escombros da pós-modernidade. O resto da igreja, o altar que as bombas pouparam, apinhado de pessoas espreitando um princípio da história; a nova igreja em frente - no fundo uma desilusão, com edifício da Bayer e centro comercial Europa à mistura, e o berço do festival de cinema, o Zoopalast, envergonhado a um canto da praça.
Naquele nódulo do tecido urbano, a cidade concentra parte do pior, deixando no entanto entrever, acomodada às linhas planas que se estendem a partir dali, a geometria clara e rigorosa que se ergueu a partir de uma ferida. Uma luminosa cicatriz no mapa da Alemanha.
[Sérgio Lavos]
09/08/07
Lugares
Será sempre necessário voltar a terra para se perceber a verdadeira alma dos lugares. Andar a pé. Apanhar um comboio e sair para fora da cidade. Sentado, e em movimento, a paisagem corre em direcção a sítio nenhum. A milhares de quilómetros de distância dos nossos dias comuns, visitamos as mesmas casas, desfilando, os mesmos ermos entre prédios, vazios, rios esquecidos da sua função inicial, pontes de cimento ligando os homens, fios eléctricos acompanhando a correria das cidades suburbanas, das aldeias perdidas, de tanto em tanto tempo unindo-se a postes, os eléctrodos tremeluzindo no fim de tarde, manchas difusas contra o reflexo na janela, guindastes sobrevoando as ruínas, alicerces de casas por construir, confusão de homens abrigando-se da chuva, alpendres improvisados, a água caindo molemente no zinco, fumo entre cansaço, o ruído de um camião sobrepondo-se ao matraquear surdo do comboio, a paragem, pessoas descem, pessoas sobem, a carruagem pára no lugar, o tempo continua a correr, o movimento impele a carruagem , o tempo desfaz-se lá fora. Lugares por dentro de lugares, a familiaridade, a repetição da mesma vida noutro espaço.
[Sérgio Lavos]
Cidades
As cidades, nenhuma é igual; associamos a paisagem urbana a estados de espírito e depois estes estados de espírito a estações do ano ou a sensações físicas. Dizemos: a alegria das ruas, como se fosse sempre verão; ou a taciturnidade de certa marginal ao fim da tarde, entre o regresso a casa e a preparação para a noite. Quando visitamos uma cidade pela primeira vez, deixamos que o estranhamento se prolongue durante toda a viagem: queremos ficar deslumbrados pela diferença. Por isso se diz que quem viaja foge apenas de si próprio. Duvido que o turista moderno medite nisto ao folhear panfletos de agências turísticas ou ao marcar, com a urgência dos dias entre feriados e fins-de-semana, o resort apropriado para umas férias descansadas. É difícil escapar a isto, impossível fugir à globalização do lazer e do turismo. O estado de espírito é tão raro ser atingido, exige tal esforço de vontade, que arriscamo-nos a passar os dias deslumbrados pelo olhar dos outros.
O objectivo: encontrar nas cidades uma originalidade que seja, algo que julguemos apenas nosso. A ilusão do carácter único do olhar.
O objectivo: encontrar nas cidades uma originalidade que seja, algo que julguemos apenas nosso. A ilusão do carácter único do olhar.
[Sérgio Lavos]
30/05/07
Madeleine

Mas, o convento de Pedralbes. A subida até surgir a torre à esquerda. As casas, do lado direito, o jardim ao fundo, mergulhado no silêncio de musgo que as pedras de séculos respiram. Entrei e fiz a habitual visita turística, os folhetos, o miúdo a correr, alguma história. Pouca gente, era cedo. O claustro, encerrando as freiras numa dupla prisão, era ensombrado pelo som de uma fonte central - a água é sempre o elemento fundamental nos lugares do silêncio. Em Évora há um claustro semelhante - será na Sé? Mas aquilo que, de imediato, me ocorreu foi uma das sequências do último Padrinho, de Copolla. Quando Al Pacino antecipa o fim do seu poder, a sombra dissolvendo a aura de outrora. Espreitei para dentro de algumas celas, imaginei as freiras devotas entregando a Jesus os seus dias; no convento, a entrega é sobretudo física. Joga-se a salvação eterna, mas isso é apenas um pretexto; o que está em causa é o fardo da matéria terrena. Acredito que quem é devorado pela reclusão monástica o faça em desespero de causa - fugindo às dores do agressivo mundo que rodeia os muros do convento. Michael Corleone refugiado não é uma imagem forçada. Há alguma verdade nesta memória.
Mas Pedralbes é mais do que medo e salvação, histórias contadas para assustar crianças. É um fantasma de um filme. Em "Vertigo", de Hitchcock, Scottie persegue Madeleine até uma missão católica, Dolores. Madeleine entra na capela e um som de órgão ouve-se. Julgamos que alguém toca, no filme. Engano, a música está na banda-sonora. Em Pedralbes, entrei na capela atraído pelo som de música. Da rua, quase não se ouvia. Lá dentro, as ondas sonoras, vindas de algum canto invisível, inundavam o espaço. Sentei-me ali, e imaginei Madeleine a desaparecer por uma porta ao canto do altar. Scottie vem depois, a música perseguindo-o. Nasce da tela - a capela mantém-se enclausurada em silêncio. Scottie sai, a música continua. Na capela do convento de Pedralbes, nenhuma porta se via do lado direito do altar, nenhuma porta desembocava no cemitério onde descansa Carlotta Valdes. A música, entretanto, parou. Imagino que não vejo a freira que saiu de uma sala até aí escondida, imagino que a música de Bernard Hermann continua a soar enquanto o olhar triste de Madeleine se detém na pedra fria do túmulo de Carlota, enquanto Scottie espreita, ali perto. No claustro de Pedralbes, um ritual antigo se repete. No silêncio e na sombra, um homem regressa à sua natureza. E reconhece na obsessão o antídoto para o medo.
Saio para a luz do meio-dia, a cidade permanece. No tempo certo.Mas Pedralbes é mais do que medo e salvação, histórias contadas para assustar crianças. É um fantasma de um filme. Em "Vertigo", de Hitchcock, Scottie persegue Madeleine até uma missão católica, Dolores. Madeleine entra na capela e um som de órgão ouve-se. Julgamos que alguém toca, no filme. Engano, a música está na banda-sonora. Em Pedralbes, entrei na capela atraído pelo som de música. Da rua, quase não se ouvia. Lá dentro, as ondas sonoras, vindas de algum canto invisível, inundavam o espaço. Sentei-me ali, e imaginei Madeleine a desaparecer por uma porta ao canto do altar. Scottie vem depois, a música perseguindo-o. Nasce da tela - a capela mantém-se enclausurada em silêncio. Scottie sai, a música continua. Na capela do convento de Pedralbes, nenhuma porta se via do lado direito do altar, nenhuma porta desembocava no cemitério onde descansa Carlotta Valdes. A música, entretanto, parou. Imagino que não vejo a freira que saiu de uma sala até aí escondida, imagino que a música de Bernard Hermann continua a soar enquanto o olhar triste de Madeleine se detém na pedra fria do túmulo de Carlota, enquanto Scottie espreita, ali perto. No claustro de Pedralbes, um ritual antigo se repete. No silêncio e na sombra, um homem regressa à sua natureza. E reconhece na obsessão o antídoto para o medo.
[Sérgio Lavos]
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