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24/11/09

Terceiro Mundo

Não quero saber se Portugal é um país do primeiro ou do terceiro mundo - se não somos mais do que somos, será por não termos qualidades para isso, e a culpa é de todos, dos que fazem e dos que deixam fazer, dos que erram e dos que deixam errar. Mas irrita-me o complexo de superioridade bacoco sempre que nos comparamos com países que têm mais do que dois índices de desenvolvimento inferiores ao nosso. E o desporto é um terreno propício a estas exibições patéticas que comprovam parte do que os pessimistas afirmam. Aconteceu no recente Portugal-Bósnia um desses fenómenos absurdos - durante a semana que antecedeu o jogo da segunda mão, não houve tablóide ou telejornal que não acicatasse os ânimos da nação, numa espécie de simulacro do entusiasmo que naturalmente aparecia no tempo em que Scolari era treinador da selecção. Carlos Queirós não tem carisma nem está preocupado em tê-lo, se ter carisma significar um apelo a sentimentos nacionalistas ligados a uma competição desportiva - se isto é bom, não interessa, uma vez mais temos o seleccionador que merecemos. Durante essa semana, os jornalistas despiram o seu facto de macaco e tornaram-se adeptos da selecção, hábito antigo, e a conversão teve o seu cúmulo durante a transmissão do jogo na TVI, com o chorrilho de insultos lançado contra a FIFA por ter permitido o jogo num campo em mau estado; contra a Bósnia, por ter marcado o jogo para aquele campo; contra os adeptos, porque estavam a torcer pela sua selecção com um fervor fora do habitual. Nada que não tivéssemos visto antes, em outros jogos, mas com uma nuance decisiva: o tom de superioridade que estes "adeptos" exibiram - no fundo, Portugal é um dos países da União Europeia, e apesar de tudo é mais desenvolvido do que a Bósnia. O contraste entre este discurso pacóvio e o outro, o que é mostrado quando a selecção joga contra equipas de países mais ricos, é acentuado: aí, fala mais alto o nosso complexo de inferioridade, que não passa de um espelho do de superioridade - ainda me lembro da mão de Abel Xavier na meia-final do Europeu de 2000 e do coro indignado que se levantou a propósito da decisão, justa, do árbitro: "se fosse a França, não teria sido marcado". O problema é que a realidade se encarrega sempre de desmentir a imagem que temos de nós próprios. Hoje, uma pequena notícia na secção desportiva do Público confirma esta ideia: dois dirigentes da Federação Bósnia de futebol foram condenados por fraude fiscal e desvio de fundos, e sentenciados a 5 anos de prisão. Ora, pensemos no que aconteceu por cá quando foram empreendidas investigações ligadas ao mundo do futebol: absolvições, sentenças suspensas, penas irrisórias. O F. C. Porto perdeu alguns pontos quando o campeonato já estava ganho, os dirigentes não foram afastados dos cargos; Valentim Loureiro continua a ser reeleito para cargos públicos; Vale e Azevedo desviou milhões e continua a salvo da justiça. E falamos só de futebol. Porque se falarmos do resto, o panorama ainda fede mais: suspeitas de favorecimento, desvio de fundos, corrupção, manipulação de meios de comunicação, etc., etc., etc., aquilo que está na ordem do dia, serve apenas para vender jornais e alimentar a cloaca das notícias. Sentenças definitivas, revelações conclusivas, qualquer coisa que não passe da suspeita, nada, nada se passa.
Afinal, qual é o país do terceiro mundo?

07/06/08

Um mês de quarentena

A vida cansa. O Verão está quase aí e a selecção Scolari prepara-se para mais um mês de paciência moída, esperas a jogadores, desvario de jornalistas em reportagem, peregrinações de autocarro, lamentações escatológicas de Pacheco Pereira e outras deambulações pelo lado mais negro da alma humana.

Avanço pelo cinismo dentro, claro, admitindo que talvez, reafirmo, talvez, passe este mês colado ao ecrã, de jogo em jogo, adequando horário laboral às melhores partidas e aos jogos da selecção. Eu sei que assim será, mas bem que me poderiam poupar os preliminares e o cigarrinho posterior. Vamos falar claro: não quero telejornais infindáveis sobre a dieta dos jogadores, os treinos dos jogadores, as mulheres dos jogadores, a ausência de vida sexual dos jogadores, as fãs dos jogadores, os velhos da aldeia que vêem a banda passar sem que a banda se digne a parar por eles (mas um microfone, esse, pára por qualquer coisa); aceito um pouco de comentário do Luís Freitas Lobo ou do António Tadeia, mas por favor não convidem o Oliveira do alho no balneário ou o Artur "olho negro" Jorge para dissertar sobre o trabalho do seleccionador ou as vicissitudes do apoio de um país à selecção; transmitam na televisão as grandes partidas de campeonatos de outros tempos, mas evitem os vislumbres dos toques do Ronaldo (apesar de andarem pelo You Tube umas imagens fantásticas de Ronaldinho e outros jogadores da selecção brasileira a curtirem com a bola num treino); podem mostrar entrevistas do Eusébio a falar do Mundial de 66, mas recusem o facilitismo da conversa com o emplastro sobre as decisões tácticas do seleccionador nacional.

Eu sei que posso escolher: mudar de canal, desligar o televisor, sentar-me a ler um livro - ou até voltar a ligar o aparelho e aproveitar para ver na Eurosport as retransmissões de partidas clássicas de antigos campeonatos. Mas, por defeito cultural (a minha portugalidade), queixo-me. Um mês de paz e sossego (relativos), de cerveja na mão e comemorações na rua, alegria para esquecer o cansaço da vida, uma dieta contida de transmissões sem gordura, sem refegos e enchidos para dar cabo do colesterol e da paciência.

A maior conquista de Scolari? Pôr um país inteiro um mês de quarentena. Aposto: se Cristo voltar à Terra em Freixo-de-Espada-à-Cinta, bem no centro da aldeia, ninguém o notará; Portugal prepara-se para se exilar de si próprio.

(Texto publicado originalmente no Corta-Fitas)

[Sérgio Lavos]

04/06/08

Burgueses e burgessos

Ainda este fim-de-semana lamentava uma vez mais o país em que vivo, e pensava que a lamentação estava-se a tornar repetitiva, e hoje obtenho um indício mais que confirma a suspeita; não é que tenha sido uma daquelas coisas; uma daquelas coisas que nos arruinam o dia, alguém mal-educado ou com uma vulgar tendência para a loucura quotidiana que decide descarregar no próximo. Foi uma frase, uma frase apenas, ouvida de passagem na rua: "Eu sei que sou um "bruguês", e não me importo". Ora, meu caro conterrâneo, companheiro que fumas exilado à porta de restaurante caro, não me vou incomodar a corrigir o teu português burgesso. De burgesso. És "bruguês" mas não leste Eça, não importa. Tu confirmas a impressão deixada no fim-de-semana, e isso deixa-me medianamente satisfeito, ou pelo menos vagamente anestesiado: o rio é a melhor coisa que Lisboa tem, e não preciso que o Miguel Sousa Tavares repita isso bastas vezes para o reconhecer. O espelho de água reflectindo a luz branca da cidade, já sei. Mas a verdade é que a luz, ao chegar ao Tejo, encontra um muro. Entre Alcântara e Belém construiram há uns anos um passeio para peões e bicicletas, mas desgraçadamente esqueceram-se de proibir a passagem e o estacionamento de carros. Apenas num país de "brugueses" burgessos isto é possível. O que poderia ser um agradável passeio de Domingo transforma-se essencialmente numa gincana entre veículos parados de pobres pescadores do lodo fluvial e os carros dos lisboetas que andam ali às voltas, como cães em busca da própria cauda, à procura de lugar para estacionar. Os portugueses são burros? São, sim senhor, porque perdem mais tempo e paciência à procura de lugar para estacionar do que a usufruir do descanso de Domingo. Vê-se pouca gente a caminhar, a correr, a andar de bicicleta. As ruas da cidade são um perigo para os poucos que se atrevem a andar de bicicleta, devido à preponderância dos carros nas vias da cidade. O progresso não é só a possibilidade de mudar de automóvel todos os anos; é sobretudo ter tempo para desfrutar o dinheiro que se ganha. Basta ir a Barcelona, Berlim ou mesmo Londres para ver as diferenças de qualidade de vida de lá para cá. Ciclovias por toda a cidade é impossível (as sete colinas, já sei), mas que custaria fazê-las em toda a zona ribeirinha, proibindo a circulação de automóveis nas zonas verdes que entretanto foram construídas? Vontade política? Apenas isso, mas todos sabem, e ninguém faz nada contra isso, que quem toma as decisões dos políticos são os interesses que sustentam as câmaras. A planeada frente para a cidade será decidida em função do potencial comercial dos centros que planeiam construir - e isso pode incluir a destruição da estação de Santa Apolónia, sob o pretexto de retirar as partidas internacionais de comboios do centro da cidade - sabendo os políticos muito bem que todas as grandes cidades têm estações gigantescas bem no centro, sendo mesmo ícones que os turistas, imagine-se, gostam de visitar. Já se destruiu o Rossio, bem podem deitar abaixo Santa Apolónia.
Mas enfim, de cabeça cheia em consequência do passeio em zigezague, lá cheguei a Belém, bem a tempo de ver aquilo que realmente interessa ao povo português, "brugueses" incluídos: a passagem do autocarro da selecção depois da visita ao Palácio da Presidência; um país a caminho da demência escapista - que se salve quem puder.

[Sérgio Lavos]

02/05/08

Maio de 08

Os tempos nunca foram tão bárbaros para a juventude inquieta a que cada geração tem direito. Faltam causas, é verdade. Sobra materialismo e mil e um gadgets para consumir. Imagine-se, os ideais até se podem comprar no e-bay, enquanto se espera que acabe de descarregar aquele álbum daquela banda que alguém ouviu e acha que daqui a seis meses vai ser ouvida por toda a gente que não está na onda.
Instantaneidade e simultaneidade. Tudo agora e várias coisas ao mesmo tempo - menos o sexo, claro, que os delírios de Zabriskie Point já foram há quarenta anos.
Por isso, a juventude de agora, que tem tudo menos carreira, casa e uma perspectiva estável de futuro, alegremente é alimentada pela teta dos pais de 75, que nada querem fazer para deixar de ser os salvadores de um país perdido no nevoeiro do fascismo.
O problema, caro Watson, é claramente este: isso tudo de que falam, precariedade, desemprego pós-licenciatura, novas oportunidades falhadas, desânimo, depressão e horror com pipocas à mistura é um eterno sonho de uma outra juventude: a dos nossos pais, que com todo o amor do mundo desejam que bem estar, paz, pão e liberdade sejam, não uma escolha dos seus filhos, mas o leite da teta que caridosamente oferecem. Não há uma única solução viável para acabar com o labirinto da falta de escolha que se apresenta a esta geração porque a vontade desapareceu há muito; os pais desta geração puxam a rédea de cada vez que ela se tenta libertar, em perpétuo movimento reaccionário. O resultado de uma revolução sem sangue é uma juventude sem pinga de sangue nas veias.
Independência ou morte? Morte a longo prazo, como o lume de uma vela a extinguir-se (enquanto se ouvem as palavras de uma rock star cantando o oposto).

[Sérgio Lavos]

28/04/08

Um país de sombra

Não poderia ser outra, a pergunta de Francisco José Viegas: em que merda de país é que estamos? Que país é este que vê um jornal nacional fazer capa com uma figurinha tenebrosa, Prince of Darkness de trazer por casa, Cunha Vaz de seu nome, o cromo do mês e dos meses que virão, amigo do seu amigo, no dizer do Henrique Fialho, estratega falhado e com sucesso de Menezes a Carmona, figurinha de cera que se põe em bicos de pés e que deseja ser o maior da aldeia - presumo que mandando num partido, um qualquer, e tornar-se cacique do coqueiro onde vivemos. Ah, lembrei-me: este é o país que teve como primeiro-ministro um homem que perdeu um concurso televisivo para... primeiro-ministro com um sindicalista corrupto, é o país que tem como actual primeiro-ministro um homem que durante alguns anos partilhou o prime-time televisivo com o concorrente de concurso derrotado, em tribuna de excelência para preparar o caminho. Agências de comunicação? Por Zeus, eles apenas partilham a essência do seu mister com as putas: existem porque alguém lhes paga para trabalhar. E os jornalistas? Chafurdam alegremente na lama. Parabéns a todos.

[Sérgio Lavos]

27/04/08

A herança

Levaremos com setenta vezes sete anos de PS, quem quer que seja o futuro líder do PSD. E a culpa, lamentável, não será de MFL, ou PPS, ou até de PSL. A culpa é, não há outra maneira de dizê-lo, de Cavaco. Esse que numa semana assobia para o lado perante o tiranete Jardim e na seguinte afirma que as novas gerações - aquelas que sofrem na pele as consequências de dez anos de cavaquismo - não se interessam pela política, pelos políticos e pela história de Portugal. Curiosamente, a candidata Manuela Ferreira Leite, quando pertenceu ao governo liderado por Cavaco, ocupou um cargo que, ouvi dizer, tem alguma preponderância na hipotética sabedoria da juventude. Pois, parece-me que o facto de ignorância ser uma palavra que poucos jovens conseguem escrever correctamente pode ser uma consequência directa de dez anos entretidos com assuntos tão elevados como o financiamento do Ensino Superior pelo bolso dos portugueses ou os cortes nas bolsas de investigação para pós-graduados; em desprimor da simples educação das questões essenciais da vida: quem somos? De onde vimos? Quem nos governa? E será que merece governar-nos?
O despudor beatífico com que Cavaco assobia para o lado, como se tivesse vindo de um planeta distante para se tornar presidente de todos os portugueses e tivesse deparado com um mundo desconhecido e estranho aos seus hábitos, se não fosse tão repugnante, seria quase digno de um Oscar. E é esta a figura que a direita idolatra.
O problema de Salazar não foi a ditadura de 48 anos; os filhos, legítimos e bastardos, que deixou por aí, são a praga que teremos de suportar sabe-se lá até quando. Para quando a morte, definitiva, do Pai?

[Sérgio Lavos]

25/04/08

25 de Abril

Não me parece ser difícil chegar a uma conclusão: que mais vale viver mal em liberdade do que bem em ditadura. Bem sei que haverá quem não concorde, quem sonhe com um passado em que privilégios e direitos se confundiam, um passado longínquo no qual a manutenção de um estatuto era a única razão para a mudança. Quem suspira pelas criadinhas, o choffeur, a porta aberta e as flores no aniversário, quem lamenta o fim do pudor e o princípio de uma liberdade sexual que conquistou tudo o que havia para conquistar, quem entretém o seu tempo perdendo-se num passado de salões brilhantes e políticos que eram pais da nação, ah, todos estes que foram esmagados pela roda da História, poderia ter pena deles, porque lhes compreendo os sentimentos - a velhice é um cortejo de desilusões, medo e memórias - mas a verdade é que exulto porque são os últimos representantes de um mundo extinto. Nenhuma língua poderá descrever com precisão a sensação de viver em liberdade; esta língua que agora se aproxima apenas se pode usar porque houve uns quantos que se importaram, que recusaram a desistência, que quiseram a mudança, por boas ou más razões, as correctas. Não há derrota que se possa obter que não passe por uma vitória; reclamar contra o 25 de Abril é a principal herança da Revolução. Dizer, falar, escrever. O que somos.

[Sérgio Lavos]

30/03/08

McRúcula

Damo-nos conta de que o mundo caminha mesmo para o abismo quando queremos almoçar rápido, entre um compromisso e um filme, e não encontramos um restaurante decente de fast-food nas redondezas.
É como entrar numa nave espacial, o renovado Monumental; os imaculados brancos escondem cortinas e segredos, autópsias e vivisecções de gente à antiga. Agora, se quero comer um hambúrguer (ou uma hambúrguer, como se dizia antes) tenho de ir ao McDonald's, que, a dois passos, está às moscas, apesar do lifting das saladinhas e dos menus light. Ou então opto por um belo e gorduroso hambúrguer de soja, humm, que bom, não bastava ser soja, ainda é em forma de hambúrguer, ou então apenas resta uma loja Go Natural, outra Become Light, outra ainda de pizzas feitas à base de trigo não transgénico, tudo acompanhado dos habituais sumos de frutos tropicais ou de batidos de feno, ou essa maravilhosa invenção bastante apreciada por clones de vacas, os shots de relva (é a pura verdade, juro); não sei quantas (poucas) calorias apenas e o health-club fica mais barato e evita-se uma ida à Corporacion Dermoestética.
Este é o reino da salada de rúcula temperada com vinagre balsâmico, e temo pelo futuro das nossas crianças quando vejo um suposto dread como Kalaf Angelo a discorrer na sua crónica do Público sobre os horrores que sofre de cada vez que percorre as lojas gourmet em busca de vinagre balsâmico (mas final, o que é isso de vinagre balsâmico? algum néctar produzido no Olimpo, ou será uma espécie de líquido curativo que substitui a água oxigenada na limpeza das feridas?).
Enquanto ainda tento digerir um cozido bem regado a vinho da casa, imagino esta gente que julga que viver significa prolongar o sofrimento e a fome e chegar aos 120 anos, presa nos lares para onde os filhos os enviaram, a recordar o passado com lágrimas nos olhos, aquele prato de beterraba cozida naquele restaurante new age onde iam aos trinta, o sabor da água mineral Evian, apuradíssimo, encorpado, a saladinha de couve roxa, rúcula e tomate cherry a acompanhar e o belo remate, digo, sobremesa; um pedacinho de doce de abóbora lado a lado com raspas de casca de laranja (já dizia a minha mãe: "não queres? come raspas!).
Eu sei que sofrerei por todas as vezes que, em vez de comedidamente passar fome, ter escolhido comer de entrada presunto em vez de salmão, emborcar uma feijoada com tinto e ainda ousar comer um doce de ovos no final. Mas até lá, pelo menos alimento-me, não finjo.
E acabei, claro, por sair do Centro Comercial e ir ao McDonald's. Se há alguma mensagem nisto, é esta: este foi um dos textos em que usei mais termos em língua inglesa; a globalização do gosto, surpreendentemente, não vai lá pelo fast-food. O que nos espera é o império da comida light. Ou será que pensavam que a ASAE era só um acidente de percurso?

[Sérgio Lavos]

07/02/08

Mais logo

À hora a que escrevo, certamente já perdemos 3-1 com a Itália (e vão 20 jogos seguidos) e seguramente não passa pela cabeça de ninguém despedir o treinador. À hora a que escrevo, apenas resta um candidato Republicano nas primárias americanas, John McCain, e dois Democratas, Hillary Clinton e Barack Obama. Não confirmo os factos, apesar de estes terem acontecido. Suponho, adivinho, especulo. Que é, aliás, algo que facilmente seduz. Tenta-se saber menos em que condições estão agora a viver as pessoas que foram despedidas no último ano em Portugal - apesar do interesse pontual de uma ou outra televisão à procura de miséria para transmitir em directo. Procura-se em menor grau perceber o que sucedeu às populações que viram as urgências encerradas nos últimos meses, que dificuldades têm no dia-a-dia, o que fazem quando precisam de cuidados de saúde imediatos. O que está feito, está feito, e a indignação dura o tempo que uma transmissão em directo demora, meia-dúzia de populares concentrados apenas interessa quando é para falar bem do Cristiano Ronaldo. A vertigem é tudo, e poderia pôr-me aqui a adivinhar o que neste momento acontece no mundo, que acabaria por acertar num ou noutro facto - as coisas repetem-se, entediadamente agrupando a totalidade dos dias.
Temos vivido vários momentos históricos, nos últimos meses. O encerramento das urgências, o crescimento da taxa de desemprego, a normalização do nepotismo, da corrupção, da vigarice pura e dura. O momento mais espectacularmente histórico dos últimos anos foi a ultrapassagem supersónica, por parte dos novos países na União Europeia, da velha caravela a que chamamos Portugal. Os buracos acumulam-se no porão, os ratos roem tudo, a água é mais que muita, mas alegremente continuamos a remar em busca de uma mirífica ilha que ora se chama convergência, ora riqueza nacional, ora progresso e bem-estar das populações - aquelas que vão ter filhos a Espanha, lembram-se? A culpa é dos carpinteiros que construiram o bote? Mas se já lá vão séculos, não seria tempo de comprar um meio de transporte mais moderno?
Somos bons em metáforas (um país de poetas, dizem), mas péssimos em gramática; óptimos a gastar dinheiro (telemóveis, casas, carros, férias), menos bons a tentar ganhá-lo da melhor maneira possível; temos os melhores patrões do mundo - apenas quando está em causa o seu próprio bolso. Dar o melhor pelo país, só se for no Second Life. Somos o mais descrente dos países católicos - pomos o nosso bem-estar sempre à frente do do próximo, pensamos viver cada dia como se não houvesse amanhã nem Deus para nos amparar no fim. Todos sabem diagnosticar a doença - devemos muito à hipocondria - mas ninguém consegue descobrir a cura. O doente (ou a nau, ou a jangada separada da Europa) vai morrendo aos poucos. Quem se apieda dele, e lhe oferece o golpe de misericórdia?
Aguardemos até ao próximo Europeu.

[Sérgio Lavos]

10/11/07

House e o tabaco

(...)A ironia de House consiste em repôr o mistério na esfera da interioridade. No mundo me que a saúde se tornou o ponto de articulção das expectativas existenciais e em que não morrer se tornou a contrafacção da Graça, a doença é a boa metáfora da interioridade. House, porém, recusa identificar a Graça com a Medicina: gosta de roubar a doença aos pacientes e assumi-la como sua. É o que está em causa no seu lema "everybody lies", que significa: um doente (ou culpado) não sabe que o é (e não pode portanto ajudar-se). Só a doença existe e, assim, não há nela qualquer interioridade. A impessoalidade deste mistério impede toda a comunhão; e testemunha disso é essa forte imagem de um médico que, através de uma vidraça (ou do véu da ilusão), observa os seus pacientes sem se aproximar.(...)

Não terei lido, até agora, melhor texto sobre House, M.D. Onde? No Ipsílon, ontem, escrito por Francisco Luís Parreira numa recensão a um desses sub-produtos de merchandising associados a uma série de sucesso. Curiosamente, no mesmo dia em que, no mesmo jornal, Vasco Pulido Valente voltava a investir contra o fascismo sanitário que transverte as sociedades democráticas actuais - outra maneira de caracterizar a campanha anti-tabágica que vai alastrando pelo mundo. Um excerto:

(...)Imagino quem, de facto, quererá este mundo sufocante e asséptico, obcecado com a "saúde"? Gente, como é óbvio, com pouca imaginação. Por mais forte que seja o culto e a idolatria do corpo, a velhice chega. E, com ela, a irrelevância, a obsolescência, a solidão. Esta sociedade de velhos trata muito mal os velhos. A ideia (e a propaganda) de uma adptação contínua é uma grande e cruel mentira. Os velhos são um embaraço. Um peso que se atura, que se arruma num canto, que se mete num "lar". Setenta anos de esforço para durar acabam num limbo à margem da verdadeira vida, quando não acabam no sofrimento e na miséria. O Ocidente está a criar um inferno. Por bondade, claro.

É interessante que, ao mesmo tempo que recusamos a morte e a velhice como processos intrínsecos ao acto de viver, e tornamos a vida um simples adiar da morte, nos entusiasmemos por séries como House, que explicitamente defende valores contrários aos dominantes. Gostamos do politicamente incorrecto apenas em forma de ficção? Procuramos uma fuga ao "real", construindo simulacros de vida para tornar suportável o insuportável. Fugimos.

[Sérgio Lavos]

23/10/07

Nossa Senhora Fátima

Visitar o café do bairro onde vivo a um dia de semana de manhã começa a tornar-se fundamental. A um dia do 13 de Outubro, é uma trip bestial ver o programa da Fátima Lopes e a turba de senhoras domésticas e reformados solitários que ainda não receberam o prometido telemóvel, glorificando-a acima de todas as coisas. Grita-se muito, nestes belos magazines matinais. Grita a Fátima, gritam os assistentes, gritam os convidados, gritam os repórteres de rua a entrevistar o Zé Manel que nos fala da Suíça e manda um beijinho a toda a gente lá em casa, lágrima ao canto do olho, caniche ao colo e bandeira do Glorioso numa mão, que a fé católica pode ser perfeitamente compatível com a crença sobrenatural numa entidade que ultrapassa em importância qualquer santinho, vidente ou virgem: o Benfica. Há razões perfeitamente válidas para a gritaria: as velhinhas deste país agradecem não terem de se levantar para aumentar o volume do aparelho – entre a surdez e a artrite, não é fácil a vida de um fã de Fátima Lopes.

Um senhor, emocionado, relata o último milagre da Senhora:

- Eu não via o meu sobrinho, vá lá, afilhado, há pr'aí trinta, bem, foram vinte, quer-se dizer, dez, ou seis ou sete, e encontrei-o, por acaso, numa missa ontem, à uma da manhã, estava atrás de mim, acredite (pausa para limpar a lágrima, o repórter diz: amigo, tenha calma. Respire fundo, se não não se percebe nada), acredite, Nossa Senhora foi quem fez isto, mando um beijinho para a minha filha de seis meses, e à minha esposa, que é belga, estou muito comovido...

Corte para a Fátima, passagem algures ao Algarve, onde se encontra Marco Paulo, que deve a vida à intervenção de Nossa Senhora:

- Foi graças a ela (mão no peito, rosto sofrido, olhos por detrás dos óculos escuros raiados de lágrimas) que recuperei da minha doença, devo-lhe tudo, daqui de onde estou, agradeço, que ela está aqui, a Nossa Senhora não é de Fátima, é do mundo, é do povo.

Regresso ao estúdio, alguém vai cantar, daqui a pouco publicidade e depois voltamos a Fátima, onde os milagres podem acontecer.

Não vale a pena procurar explicações para o fenómeno de Fátima noutro sítio que não seja o Portugal retrógado de 1917. Que, passados 90 anos, continua tão retrógado como era nessa época. Curiosa é a coincidência da Revolução Comunista ter acontecido na mesma época das aparições. Menos curioso é o facto das aparições terem sido utilizadas como arma política contra a emergência da nova potência comunista, a União Soviética. Imagino que as visões de Lúcia, de um apocalipse liderado pelas hordas de proletários, tenham mais a ver com a hierarquia católica ameaçada pelo ateísmo que o comunismo preconizava (apenas há lugar a um ópio para o povo, o belo ideal revolucionário propagado pelo Querido Líder), do que com algum cogumelo mágico encontrado pelos pastorinhos e pelo povaréu que se juntou ali na Cova da Iria (embora haja relatos de uma erva-do-diabo que crescia à sombra da azinheira milagrosa). Há árvores que choram, quadros de santas que sangram, cadáveres que não se decompõem, mas é difícil atingir o estado de delírio a que se chegou naquele dia. Tão delirante, tão delirante, que nem a fiável objectiva de Joshua Benoliel (por sinal, um ímpio judeu) conseguiu apanhar o milagre do Sol rodando sobre si próprio (há uma música sobre isto em “Piper at the Gates of Dawn”). Fixou-se antes na multidão de devotos, braços abertos em direcção ao céu, rostos crédulos e esfomeados esperando por um milagre que os salvasse da miséria em que viviam.

Salazar e a Igreja Católica encarregaram-se do resto. Fim da história.

Noventa anos depois, o delírio entra pelas casas dentro. E, no fundo, entre uma peregrinação a Fátima e uma visita à catedral da Luz não há muita diferença. Cada um dedica-se ao culto que mais lhe convém. E se possível, acumulando. Garantem-se assim maiores possibilidades de salvação. Amén.

(Texto originalmente publicado no irmão lúcia)

[Sérgio Lavos]

18/09/07

Ecos

Desde que saiu, o livro Portugal, Hoje: o Medo de Existir tem resistido a ser lido de uma forma crítica que contrarie a tese central de José Gil. Há muito texto escrito sobre o assunto, mas nenhum que refute de modo convincente as ideias e argumentos desenvolvidos no livro.
O último esforço é de uma ensaísta estimável, Silvina Rodrigues Lopes, na revista Intervalo, como Henrique Fialho dá conhecimento aqui.
Não li o texto da revista, mas pelo que é citado a ensaísta revela mais temeridade do que aqueles que a precederam. Não sei (ou sei, mas enfim), contudo, se um texto de revista consegue atingir a complexidade que se pode alcançar num ensaio de quase 200 páginas, como é o caso da obra de José Gil. Esqueçamos a redundância e estilo de escrita deleuziano de Gil, a circularidade do pensamento, regressando constantemente ao ponto de partida para acrescentar uma ideia mais ao que já foi escrito; o problema é a armadilha retórica que a tese que está subjacente à ideia de não-inscrição levanta - a verdade é que o livro vendeu o que vendeu (e mais, foi efectivamente lido) em consequência de uma leitura complementar à tese da não-inscrição: o problema da inveja. O português (e sim, generalizo) adora ver-se retratado de forma negativa. O livro de José Gil, produzindo um juízo redutor sobre a portugalidade, colheu leitores por todo o lado. A prova mais sólida das teses de José Gil é o facto de o livro ter vendido tanto. O medo de existir não é apenas um excelente slogan. É a prova de um facto, a confirmação de uma ideia de senso comum, de um sentir acerca de nós próprios. Complexificar este senso comum sempre foi a tarefa dos filósofos. A conversa de café transformada em língua escrita é, portanto, o maior mérito de José Gil. E acredito que a obra tenha não só servido de espelho para quem a lê, mas também ajudado a perceber, de uma forma mais profunda, o que podemos fazer para transcender a imagem que o espelho devolve.
Mas convençam-me de que as poucas reacções epidérmicas que se fizeram ouvir contra o livro são mais do que uma prova da tese secundária do ensaio: a inveja como fundamento da portugalidade. Basta ler um pouco do texto de Silvina Rodrigues Lopes para se perceber isso: a insistência na explicitação do destaque dado a José Gil pela revista Nouvel Observateur é um achado em termos de comprovação da tese do filósofo:
«1. a televisão é cada vez mais o lugar do sensacionalismo, e é como tal que recebe um livro que vem de um autor recentemente apresentado numa selecção de «25 grandes pensadores do mundo inteiro» (de e não dos) feita pelo Nouvel Observateur, apresentação que a notícia dada por um jornal português, o JL, converteu, primeiro (5/01/05) em «um dos “25 grandes pensadores do Mundo”» e em seguida (19/01/05) em «José Gil é considerado pelo Nouvel Observateur um dos “25 pensadores mais importantes do mundo inteiro”».

Inveja, disseram? É apenas uma ideia...

[Sérgio Lavos]

27/08/07

O escritor (2)

Robert Wilson acaba por confirmar o cliché que repete: não há como o olhar do estrangeiro para perceber o que somos. Não sei bem o que é o orgulho pátrio. Mas se aquela pontinha de emoção que se sente ao ouvir um estrangeiro descrever na perfeição os cambiantes da nossa alma se aproxima da definição de um orgulho qualquer, então devo senti-lo. O carácter reservado, desconfiado ao primeiro contacto, que esconde um coração necessitado de tempo para se revelar, para se abrir ao outro. Isto e a verdade que tantas vezes esquecemos: somos um povo pacífico; evitámos tantas vezes a guerra dentro de fronteiras que muitas vezes parece que subterraneamente desejamos essa zona de ruptura. Uma tensão que se dirige a nós próprios, conduzindo à tipicamente portuguesa autodepreciação patológica. Preferimos a desobediência ao conflito. A interiorização da violência a actos disruptores. Há quem considere estas características defeitos. Não pode haver moral na História. Mas prefiro a moral à História. Sou português, de facto.

[Sérgio Lavos]

23/05/07

Touradas

Não há apenas uma maneira de pegar o touro pelos cornos. Mas apenas uma é a correcta. De frente, sempre. Qualquer outra hipótese ou é inviável ou um risco, tanto para integridade corporal como para a reserva diária de ego - arriscamos o ridículo. Tourear é coisa de macho. Não me venham com conversas de collantzinho entalado no rego; homem que admite expor-se desse modo não duvida da sua masculinidade. E se alguém duvida, alto. Que enfrentar um falo pontigudo, assim, de ventre empinado, não é para qualquer um. Por isso é que as mulheres se limitam a cavalgar de pau na mão. Longe da besta. Da parelha de chifres. Da tentação que é safar-se do assalto da dupla varonil exposta do touro. E o sangue. Espirrando por todo o lado, ao ritmo frenético das palmas. Não me venham com conversas de roupas de garridas cores, dourados coriscando ao sol, rosas e fuscias manchados de sangue e suor. É de macho. Esquisitices? Tragam um forcado.

[Sérgio Lavos]

11/05/07

Pré-qualquer coisa

Alguém saberá em que época é que estamos? Já passou por nós a doença do pós-modernismo, ou estaremos ainda lentamente a recuperar das suas consequências? Fará sentido falar de movimentos artísticos ou culturais quando a característica mais determinante para a sua definição deixou de existir com os novos meios de comunicação de que dispomos? O enquadramento de um tempo deixou de ser necessário, porque o tempo relativizou-se de uma forma absoluta. Quando deixámos de sentir debaixo de nós o espaço seguro em que nos apoiávamos, o tempo começou a perder o sentido. As ideias circulam a partir do suporte material em que nascem, são independentes da fatuidade e da perversão de um corpo. Encontramo-nos distantes da tertúlia que precisa de um espaço físico onde se reunir; os modernistas encontravam-se em cafés e discutiam novos conceitos e o modo como o futuro podia ser definido por eles. A arte era um acto colectivista, revolucionário principalmente na sua faceta de comunhão entre indivíduos, tentativa de transformar um conjunto de diferenças em semelhanças, como um rolo compressor destruindo o que havia antes. O espaço agora é virtual, velha canção sem importância, e as ideias são apenas veículo de expressão de egos isolados em ilhas afastadas do seu vizinho mais próximo. Não faz sentido falar em pós-modernismo, porque se perdeu o mínimo sentido de unidade possível para a formação de um corpo de ideias. Não há conjunto, movimento, coesão, lógica. Manifestações avulsas, dispersão, exibicionismo fálico. A cura para o pós-modernismo foi a destruição de qualquer fio condutor para uma cultura. A possível solução é o refúgio em tempos que julgamos terem existido. Em vez de pós-modernidade, pré-qualquer coisa menos isto. Menos isto.

[Sérgio Lavos]

28/03/07

Salazar

Entre recordar e esquecer, aposta-se o valor da História. E recordar é sobretudo registar os acontecimentos e as suas consequências. De outro modo, recorrendo a construções mentais da memória, cria-se um mundo diferente daquele que aconteceu. Quem tem acesso a estes registos da História, às linhas criadas pela estatística, aos nódulos formados pelas datas importantes, às dobras no tecido da dimensão temporal provocadas pelas grandes catástrofes da Humanidade? Quem lê, quem aprende, quem apreende o real valor do conhecimento. Apenas os que distinguem informação de conhecimento se incluem neste grupo; a mediatização dos acontecimentos cria bolhas de importância que pouco ou nada têm a ver com o verdadeiro impacto na sociedade ou na História. Famosos, conquistas desportivas, grandes personalidades da nação. Para além do mais, a História dispensa os absolutismos de uma sociedade desinformada. Nunca deixa de ser um conjunto de pontos numa superfície, a que apenas conseguimos aceder em parte, como se pousássemos os nossos olhos numa folha de papel sobre uma mesa a partir de um plano situado ao mesmo nível que a mesa. A História esquece o inútil, o desnecessário. A sociedade mediática sobrevaloriza o absurdo, o passageiro, o que nunca verdadeiramente existe, no sentido em que não se chega a inscrever no inconsciente colectivo de um povo.
Algumas semanas depois da RTP ter comemorado com bolorenta pompa e circunstância o seu aniversário, serviu à massa indiferenciada de espectadores o mais indigesto prato que se pode servir: aquele que já passou há muito do prazo. Não houve apenas um conjunto de circunstâncias a rodear a votação do concurso televisivo; houve um movimento de silenciados do antigo regime, os que finalmente tiveram a oportunidade de expressar em público o que foi durante trinta anos reprimido. A memória que dura o tempo de uma vida não esquece o tempo idílico da infância; para além disso, recupera e reconstrói a realidade rasurando todas as manchas e defeitos que aquela vai ganhando. É por isso natural que muitos dos que admiram Salazar tendam a desvalorizar a sua tendência para a, digamos, opressão totalitária, em favor das suas supostas virtudes salvíficas: o homem que recuperou a economia; o homem que evitou que Portugal fosse à guerra; o homem santo, defensor da fé católica no país, contra a invasão ateia que se vivia no resto do mundo civilizado.
Salazar imaginou um país, no sentido em que criou uma série de imagens que se fixaram no inconsciente colectivo português, reorganizando a consciência de um tempo, tanto presente como futuro. Salazar criou aqueles que agora votaram nele. E, vamos lá ver bem as coisas, já ultrapassámos o complexo de Édipo; no fim de contas, apenas 70000 de nós votaram repetidamente nele.

[Sérgio Lavos]

07/03/06

Tuga

Se há defeito que não estimo em mim é a tendência para a portugalidade, a irreprimível inclinação para o espírito tuga que me impele a ver em todo o político um espelho de mim próprio, às vezes deprimido, às vezes alcoolicamente eufórico, quase sempre ladrão e com uma preocupante fraqueza no que à verdade diz respeito. Não é de agora, e nem preciso de pedir a ajuda do ansiolítico-mor da praça dos comentadores nacionais para referir os escritores de oitocentos que passavam o seu tempo a vergastar costumes de forma desprendida e plena de witt, Eça à cabeça, pois claro. O que me falta, como à maioria dos portugueses, é estilo. Sou azedo, quase sempre, e não suporto a arrogância de quem me toma por semelhante dos milhões de basbaques que desbaratam a educação que o estado lhes ofereceu e a inteligência que Deus lhes deu babando para cima de jornais desportivos ou novelas da TVI, conforme o género, de quando em quando quem sabe treslendo uns tomos daqueles de que as vedetas falam no ecrã, o ubíquo leitor Marcelo à cabeça. E, lá está, quem erradamente presume que o meu entedimento é, por natureza, moldado pelo património genético de uma nação em desespero de causa, não me merece o mínimo respeito. Pense-se em Sócrates, por exemplo. Rabiado pela excelência de um palácio dos longínquos mares do norte, mugindo do lado de fora para a multidão que o segue cá dentro, e, maravilha das maravilhas, descobrindo a dinamite que irá rebentar de vez com o país. Se provinciano não fosse um termo de tão fraca linhagem, poderíamos ficar por aqui, mas aquilo que me ocorre dizer é apenas isto: idiota de frágeis genes. E eu, imbecil, que o aguento, e aguento a desfaçatez de quem acha que, imitando os outros que resplandecem, algum dia alcançaremos o mirífico fim do pelotão de que nos afastamos tão rápido como uma Clara Ferreira Alves à vista de CCS. Paciência é coisa que me falta. A grande originalidade portuga é o umbigo que teimamos em massacrar com o dedo enquanto invejamos a velocidade com que os outros se nos adiantam. Exportêmo-la.