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26/06/13

Joana Vasconcelos, o kitsch e o poder político

O percurso de afirmação de um artista pop acaba sempre por partir das margens para o centro, da descoberta de uma novidade para a institucionalização. Desde o primeiro momento, da primeira peça, ele – o artista – talvez não deseje mais do que isso: que a sua obra acabe na colecção permanente de um museu, que pertença a um canône – qualquer que seja ele -, que seja vista pelo maior número possível de pessoas. E, em última instância, que o poder político a normalize e legitime, tornando a obra de arte aceitável para a esmagadora maioria do público. No limite, a obra de arte apenas se define quando consegue chegar a um público que esteja para lá da crítica e do diminuto círculo de iniciados.
Joana Vasconcelos percorreu todos estes estádios da normalização da arte. De uma nova artista que, desde o início, teve o respeito e o elogio da crítica e do meio, até à massificação da produção artística, começando pelo primeiro passo do processo – no seu atelier um conjunto de pessoas produz em série, à maneira da fábrica de Andy Warhol – até ao derradeiro: as suas obras são vistas pelo grande público e o poder político apadrinha-a, sendo criada uma identificação entre a subjectividade da obra e um “sentir nacional” também subjectivo, mas na aparência fundado em símbolos objectivos, como os galos de Barcelos, as saias nazarenas, o vidro verde das garrafas.
É compreensível que se gere uma resistência entre a obra de Vasconcelos e parte da intelectualidade distante do poder. Durante algum tempo, achei que o risco que ela corre – o de aproximação ao centro afastá-la da periferia que desde o início a legitimou – não compensava os méritos eventuais da obra. Mas a verdade é que o caminho que vai da margem ao mainstream não só é ilusório – toda a criação existe para chegar ao maior número de pessoas possível (dentro do público ideal que o artista visa) e mente quem afirma o contrário – como, no caso de Joana Vasconcelos, desde o início o espírito da consagração popular estava incorporado na obra, na sua essência.
As peças de Joana Vasconcelos caracterizam-se não só pela ironia com também pela apropriação de ícones da cultura popular entretanto tornados obsoletos e esvaziados de parte da sua carga de representatividade. O kitsch, à maneira de Jeff Koons, é simultaneamente matéria-prima e instrumento de trabalho. A pós-modernidade transformou o que antes era um conjunto de imagens exemplares da identidade nacional – por sua vez, estas imagens eram símbolos, imitações da verdadeira arte popular – em ícones de um fulgor nacional ultrapassado. Note-se que a carga simbólica destes objectos implica um uso apriorístico da ironia – os cães de loiça sobre os frigoríficos – no seu uso quotidiano; são tão irónicos os cães sobre os frigoríficos como os que são expostos por Joana Vasconcelos nos museus. As lições de Duchamp ainda são válidas, mas é também certo que o gesto que transporta o urinol para o museu não é bem o mesmo que o que leva o cão de louça para esse espaço. O carácter prático do primeiro não é equivalente à natureza lúdica do segundo. Ninguém encara um urinol ironicamente, a não ser que esteja num museu. O mesmo já não se pode dizer de um cão de loiça ou de um galo de Barcelos. O kitsch existe antes da instituição artística o legitimar enquanto tal.
De que modo podemos então olhar para a própria artista? Se ela, desde o início, procurou, através da ironia, questionar modelos convencionais e teorizar sobre o papel da mulher – a instalação com os tampões ou os sapatos gigantes, por exemplo – ou sobre a herança cultural do país, por que razão não poderá estar, no momento em que se institucionaliza, a confrontar a sua persona com quem legitima a sua obra? É difícil olhar para a fotografia recente da inauguração da exposição no Palácio de Ajuda sem interpretarmos ironicamente a figura de Joana Vasconcelos. As poses institucionais do secretário de Estado da Cultura, do primeiro-ministro e da primeira-dama contrastam com o vestido da artista. Esse vestido, criado intencionalmente para o acontecimento, evoca vários trajes tradicionais, desde o minhoto ao nazareno, e, na mesma medida em que contém diversos motivos referindo explicitamente as preocupações artísticas de Joana Vasconcelos, contextualiza a seriedade do momento. O vestido de Joana é como um fato de carnaval usado por uma criança. Contudo, quem aparece deslocado, no meio do festim kitsch de Joana Vasconcelos, são os membros da instituição legitimadora. Assumindo a ironia de ser apadrinhada pelo poder político, Joana Vasconcelos expõe ao ridículo esse poder e os seus representantes. É um gesto equivalente a tantas obras que recontextualizam os símbolos nacionais – o primeiro-ministro, o secretário de Estado da Cultura e a primeira-dama são os galos de Barcelos e os cães de loiça que a ocasião solene proporciona. Joana Vasconcelos, no processo de institucionalização da sua obra, não deixa de distanciar-se ironicamente de quem lhe atribui importância e poder. A obra exposta em Versalhes – o lugar do kitsch, por excelência -, as photo oportunities com políticos e o cacilheiro a caminho de Veneza não passam de performances, tão plenas de sentido artístico como tudo o que Joana Vasconcelos produziu até aqui. Quem cai no ridículo não é a artista, mas sim o poder político que, sem perceber - ou sem querer perceber - a obra que apadrinha, se coloca como mais uma figura no universo irónico criado por Joana Vasconcelos.

12/11/09

A Luz Fraterna

Não sabia de quem é o quadro que aparece na capa de A Luz Fraterna, o recente livro publicado pela Assírio & Alvim que reúne a obra poética de António Osório. Quando tive a oportunidade de o folhear, espreitar a ficha técnica, li um nome que deveria ter algum significado, Miguel Ângelo Lupi; mas não tinha. Procurei no Google aquele nome e apareceram algumas imagens, retratos, cenas de grupo, um ou dois que eu eu já vira - no Museu do Chiado. O quadro em questão, Contraluz, é um óleo pintado em 1875, e é extraordinário. Falo de uma reprodução, uma imagem sobre a qual repousam letras, imagino que distante do que será aquele quadro ao vivo. Não encontrei nenhuma versão na Internet e na ficha técnica não é referido se ele está exposto em algum museu. Uma mulher descansa na ombreira de uma janela, entre a penumbra da casa e a luz que a invade. O vento parece levantar as cortinas, pintadas de um diáfano dourado, permitindo que se projecte uma sombra laranja que desenha no chão a forma da janela. A mulher, loura, melancólica e bela, olha para um ponto entre o chão e nós, que a vemos, ou não olha, sonha enquanto o pintor a captura. Mas o que torna a pintura soberba são os tons de vermelho - o reposteiro cobrindo as cortinas, mais escuro e denso, e a cor sanguínea da faixa que cinge a cintura.
O que parecia ser um quadro marcado por um classicismo tardio, revela-se algo mais do que isso: o pintor conseguiu representar aquela mulher no momento em que ela se transforma num mistério, do mesmo modo que Hopper o faz, por exemplo; o momento em que sua natureza se revela, ocultando-se. A margem onde não acedemos.

02/01/09

A arte e os seus críticos


Ter um blogger a escrever sobre arte num blogue que não é temático, com uma audiência elevada, deveria ser um luxo. Mas o luxo nem sempre é produtivo. O que está a acontecer ao blogue Cinco Dias, por sinal um dos que leio diariamente, parece-me, no mínimo, um tiro no pé. Depois das desavenças que levaram ao início do Jugular, a estabilidade do blogue volta a estar em causa, e desta vez por causa de ninharias (e não são sempre?). Carlos Vidal, o blogger de que se fala, é professor de estética com obra publicada, e o jorro abundante que tem escorrido da sua pena, com Caps Lock, pontos de exclamação e negrito e tudo, já provocou a saída de Filipe Moura, que, apesar de uma assiduidade intermitente, era dos mais lúcidos a escrever ali. 

De que se trata, então? Da simples e escorreita falta de respeito pela opinião dos outros. O único argumento que Vidal parece conhecer é o da autoridade. Na troca de posts entre os dois, não existe uma contribuição útil que seja para a discussão por parte de Vidal. Tudo se resume ao facto de ele conhecer a arte moderna e a teoria estética melhor do que qualquer outro. Palmira Silva, no Jugular, escreveu um texto sobre o relativismo científico, evocando o caso Sokal, e Vidal, na caixa de comentários, chama de imbecil para baixo a um cientista com muito mais trabalho publicado do que ele e que expôs no livro Imposturas Intelectuais um vício impune dos pensadores pós-modernos: a utilização de jargão científico nas ciências sociais de forma pouco ou nada rigorosa. Descontando os exageros do livro de Sokal e Jean Bricmont - o facto atenuante de alguns cientistas sociais criticados terem formação em ciências exactas, como Deleuze ou Lacan, por exemplo -, a verdade é que a questão é de uma pertinência indesmentível. Mas nem um argumento de Vidal se lê que desmonte o texto de Palmira ou a tese de Sokal e Bricmont; o texto de Palmira, por outro lado, está repleto, como sempre, de referências ao caso em diversas publicações científicas. A tecla de Vidal é repetitiva: que Deleuze e Derrida e Foucault são lidos e publicados e que Sokal desapareceu do mapa. Não me parece que os três filósofos chamados à colação precisem de tão frágil advogado que os defenda. Nem nunca me pareceu que as objecções dos cientistas tocassem de algum modo a importância da obra destes filósofos (já sobre Lacan e Kristeva, enfim, tenho as minhas dúvidas, mas essa é outra história). A crítica de Sokal e Bricmont centra-se na falta de rigor na utilização de termos da matemática e da física. E, aqui para nós, a piada de toda a história está no método que eles usaram para expôr a possível fraude: escrevendo um pseudo-artigo que recorria a palavreado científico usado de forma incorrecta, e que acabou por ser aceite para publicação numa prestigiada revista de ciências sociais.

Qual a moral da história? Filipe Moura sai, Carlos Vidal fica e vamos ter que continuar a vê-lo insultar os adversários em formato Caps Lock e negrito (uma nova forma de fazer crítica, aos gritos), ou então saltar os seus textos e manter a sanidade durante o tempo que demora a visita ao Cinco Dias. Mau serviço ao blogue e pior à arte moderna, que ele tão radicalmente "defende", afirmando, sem se rir, que apenas uma elite a poderá compreender - imagino eu que é a elite (repetidamente, várias vezes por dia) que tem enchido o Museu do Grand Palais em Paris, numa retrospectiva de Picasso, ou a que levou a que o Museu de Serralves tenha ultrapassado o Museu dos Coches como o mais visitado em Portugal, ou ainda a que tenha tornado o Museu Berardo um sucesso, ou aquela que enche diariamente a Tate Modern, para espanto dos críticos que pretendiam que a lagosta de Dali ou os quadros de Rothko apenas fossem amados por uns poucos. É que até a questão do elitismo é um tiro vergonhosamente ao lado - há muito mais gente a visitar museus, e a ler Deleuze, e Duchamp e Merleau-Ponty, do que a folhear revistas científicas ou até mesmo a comprar livros de divulgação científica. 

Não entendi; qual é mesmo o ponto de Carlos Vidal?

[Sérgio Lavos]

15/11/07

NADA 10


Novo número para a revista NADA:

. O Corpo e a Carne: Duplicidades Contemporâneas, JORGE LEANDRO ROSA
. A geração de 60/70, as metamorfoses da política e os dilemas da tecnociência, entrevista a JOSÉ LUÍS GARCIA por Helena Jerónimo e João Urbano
. Intersecções, confrontações, apropriações, incorporações, comparações, relações: A arte biológica vista do laboratório, LUÍS GRAÇA
. E o elevador irrompeu em direcção ao céu,atravessando as nuvens, rumo ao infinito…, SUSANA VENTURA
. Irene Izes, JOÃO OLIVEIRA
. Incontornável, A DASILVA O
. Estudos Culturais e Formas de Arte Pós-Moderna:Os Novos Movimentos Sociais?, BYRON KALDIS
. A Construcção Política da Esperança Colectiva, DANIEL INNERARITY
. O futuro começa agora, entrevista a RUDOLF BANNASCH por Paulo Urbano e João Urbano
. A Máquina Desejante de João César Monteiro SUSANA VIEGAS
. Birland & Balde de FACS, ADAM ZARETSKY
. Reflexões SILVA CARVALHO
. O Homem sem Bagagem JOÃO URBANO

[Susana]

24/10/07

MACE



Um recente passeio pelo norte do Alentejo levou-nos a Elvas guiados pela curiosidade em ver a colecção de António Cachola no MACE que desde Maio ocupa o espaço da Misericórdia de Elvas. Depressa a vontade esmoreceu: ao contrário do que indicava o site do museu, a exposição encerrava às 18h e não às 20h, contratempo que nos permitia cerca de 1 minuto para circularmos pelas salas. Explicada a obtenção de informação desactualizada no site (era Domingo e a alteração vinha de 4ª feira...) e graças à boa vontade dos funcionários, foi possível fazer uma visita relâmpago à exposição. Olhando para o conjunto de artistas, reparo que metade estão ausentes, talvez emprestados a outros museus ou exposições, talvez guardados à espera da sua vez.

Fez-se notar a ausência de algumas obras, nomeadamente, A Noiva, de Joana Vasconcelos, que rumara para Nova Iorque. No entanto, era forte a sua ausência na sala do Consistório onde se via ainda o grampo deixado no tecto. Este facto revela-se positivo: ainda assim, a sua ausência permitiu imaginar o contraste interessante que terá havido entre A Noiva, lustre feito de tampões OB, e os azulejos azuis e brancos da 1ª metade do séc. XVIII que cobrem as paredes da sala, e questionar, não só o valor das obras da arte contemporânea, mas os elevados níveis de sucesso que alguns artistas portugueses alcançam e que, parece, se multiplicam por todas as bienais e exposições. Este é, aliás, um problema clássico neste tipo de colecções exclusivas de arte contemporânea. Como o tempo é bom conselheiro, só a sua passagem irá permitir a imprescindível sedimentação dos objectos expostos, distinguindo o objecto decorativo, por vezes um produto fraudulento do marketing, das obras de arte, as que sobrevivem ao nome do artista, como testemunho da própria função educativa dos museus, salvaguardando o acumular de tralha.

[Susana Viegas]

26/09/07

Arte

Queremos que a loucura tenha método? Deixemo-la andar por aí, com as garras de fora, caçando a imagem mais correcta (e menos evidente), os pormenores que escapam a quem não consegue escapar do colete-de-forças do decoro e da razão. A arte dispensa o método, alimenta-se do caos que governa o mundo (a física quântica tenta explicar isto através de números, esse belo alfabeto de Deus). A arte ordena o mundo, "corta o caos" (Deleuze). Ou cria uma singularidade que se destaca do caos, apesar de ser, ela própria, caos.
E depois, a parte da visão; o artista acede a esse plano desordenado e move-o para o plano da razão. A viagem é perigosa; o artista arrisca-se a ficar perdido nesse plano (tantos os casos, tantos). E mesmo quando regressa, os efeitos da viagem continuam a fazer-se sentir - o artista é um espectro do caos, espelho pálido da verdade que serve de corrente de transmissão de uma mínima centelha da energia essencial da criação.
Olhamos o artista: parece-nos louco. Contudo, sabemos (se tivermos coragem para isso) que a loucura é outra forma de recusarmos a viagem, a entrada no caos. A ordem aparente do mundo, perfeita coisa mental, para que se possa viver.
Entramos em museus, olhamos as imagens nos livros, para quê? Para, através dos olhos do artista, espreitarmos o caos que nos governa. Aquele que, para lá das portas do museu, tentamos a todo o custo não ver. Que nos governa.

(A pintura é de Paula Rego, e intitula-se "o celeiro")

[Sérgio Lavos]

17/07/07

Edit!

Collier Schorr

Matthew Barney

João Tabarra

Douglas Gordon

Até 9 de Setembro pode ser vista no CAV- Centro de Artes Visuais em Coimbra (entrada gratuita) a segunda parte da exposição EDIT! Fotografia e Filme na Colecção Ellipse.

[Susana Viegas]

26/06/07

Days of Heaven

Christina's World (1948), do pintor realista americano Andrew Newell Wyeth (n.1917), uma influência directa para Terrence Malick em Days of Heaven (1978), marcando a compreensão do contraste entre a vastidão dos campos cultivados, da obra do homem, e a solidão e isolamento da figura humana.

[Susana Viegas]

04/06/07

Arte e imanência (3)


engraçado que tenha enveredado por tal exercício de hermenêutica. Engraçado. Eu próprio já fui tentado a fazê-lo, como pós-modernista que sou. (Também gostaria de ser um dos pós-modernos, mas aí pareceria que era verso de uma letra do Rui Reininho, e há coisas que eu não posso tolerar).
Ora, não é necessário ser tão paciente (ou insone) para perceber contradições no meu discurso. A verdade, cara Miss Allen (mas eu julgo que já tinha percebido isso) é que ando perdido. Eu sou de agora, claro, nasci depois do 25 de Abril, sou filho da evolução. Mas antes de mim, já muita gente andava perdida há, pelo menos, trinta anos. E não era só aqui, no mundo inteiro. O problema da nossa época (além da excessiva crença no fatalismo do fim da fé) é não saber em que prateleira arrumar o tempo que vivemos. Mas, imagino eu, terá sido sempre assim. "Narrativa exageradamente classificatória"? Será, mas precisamente porque os historiadores e os críticos de agora não têm a vida facilitada. Todos se colocam de fora do círculo. Ninguém quer ser pós-moderno. Tempos houve em que meia-dúzia de génios loucos se juntavam a meia-dúzia de loucos que se julgavam génios e formavam um grupo. Reuniam-se com intenções de, no mínimo, mudar o mundo - quase sempre apenas conseguiam mudar as suas próprias vidas. Os "ismos" saltavam-lhes da boca para fora como pipocas. Todos os conhecem. Mas cada historiador de arte tem o fardo que merece. Os actuais resignam-se ao terror de terem que viver com a desterritorialização de toda a arte. Cada artista é uma ilha. E os arquipélagos há muito entraram numa oportuna deriva. O mais interessante é que todo o pensamento pós-moderno teoriza sobre seu próprio fim. Ou, num sentido mais lato, sobre o fim do pensamento. De Jean Baudrillard a Slavoj Zizek, os fins vão-se repetindo numa infinita cadeia. Ter medo de "perder o pé" faz parte desta maneira de pertencer ao tempo presente.
E o tempo, lá está, fugiu-nos de debaixo dos pés. Não foi preciso nenhum Einstein para provar isto. O regresso a um tempo mirífico que Nietzsche perseguiu durante toda a vida contemplava não só um movimento em direcção a um tempo que passou (o tempo dos antigos), mas também um movimento em direcção a um futuro provável. A actualização desse tempo não foi possível. Mas serviu de prenúncio para o século em que o tempo deixou de fazer sentido. Um mundo sem Deus é um mundo que corre fora do eixo do tempo. Não se trata aqui de "desacreditar o tempo". Já houve alguém que fez esse trabalho sujo. Nos últimos cem anos, nenhuma teoria conseguiu inverter o curso da História - regressamos a uma era que nunca existiu, a era de Dioniso - mas apenas porque alguém falou disso em tempos. As palavras produzem o tempo - "e a luz fez-se". "Precisamos da tabela cronológica"? Apenas porque não temos mais nada a que nos agarrar.
Mas falávamos de arte. Julgo que as minhas contradicções não são apenas um exercício de estilo (mas já nem sei até que ponto é que eu acredito nisto). Se reparar, quando eu escrevo que "o passado já não interessa" não quero afirmar que o artista não se interessa por quem o antecedeu. Não vou citar, mas insisto neste ponto: o que mais interessa ao artista é matar o pai, para poder criar a partir daí a sua obra, livre do peso da hierarquia. Criar é um exercício de liberdade, sempre absoluto. A "angústia da influência" é o cordão umbilical que, enquanto não é cortado, estrangula a critividade necessária para a produção de novidade, diferença. O "reconhecimento do passado" é operativo. A obra-de-arte é reacção e apenas se torna decisiva quando deixa de ser repetição e passa a ser diferença (Deleuze disse-o em vários livros). Ora, não existe nenhum catastrofismo nesta ideia de esquecer o tempo que passou. Vivemos fora do eixo do tempo (um suave exercício de loucura controlada) e por isso podemo-nos dar o luxo de deitar fora tudo o que evitamos repetir. O problema é que já não existem vanguardas. Quase tudo é repetição, emulação dos mestres. Todas as características associadas ao pós-modernismo (a paródia, a auto-citação, o pastiche, a intertextualidade) remetem para um passado, debicam nos cadáveres apodrecidos de antigos movimentos artísticos e teóricos. Há interesse neste estado de coisas? Como não, escrever num blogue este tipo de reflexão compromete o meu desprendimento. Não digo nada de novo. Mas não sou diferente de grande parte dos meus contemporâneos. Pós-moderno. Como um verso de Rui Reininho. Triste sina.

[Sérgio Lavos]

17/05/07

Arte e imanência (2)

Se quisermos ser pessimistas (e banais) podemos afirmar que a arte é sobrevalorizada. Recontextualizar significa quase sempre valorizar o que, no seu contexto de partida, pouca importância tem. E recontextualizar significa também, quase sempre, teorizar sobre a arte produzida, desse modo atribuindo séries de intenções, de sentido, ao acto do criador. Temos de dar esse passo, claro, caso contrário a arte deixa de ter qualquer razão para existir. O acto de descodificação da possibilidade, isto é, da eventualidade do criador ter pensado de determinado modo quando estava a produzir a obra, é por si só um acto criativo. O crítico e o teórico (eles existem, não é?, mesmo que não necessariamente por esta ordem) intervêm no processo criativo unindo as pontas soltas desse processo. Falam de escolas, de sentido, de alusões, de intertextualidade e, evidente, de contexto. A questão será: até que ponto precisa a arte da carga teórica que lhe sucede? Falsa questão, por uma simples razão: esta carga teórica surge sempre como ferramenta, voluntária ou não, do criador. Mesmo as escolas que menos dependem da conceptualização e se gabam de produzir arte da forma mais aleatória ou inconsciente possível - pense-se no surrealismo ou no expressionismo abstracto de Pollock - não se conseguem desprender do lastro da teorização. A desconstrução da arte, que no fundo é o fundamento principal do modernismo ( e do que se lhe seguiu, seja o que for que se lhe queira chamar) necessita sempre do reconhecimento de um passado. A "construção" (aqui entendida como o oposto de desconstrução), ainda que não exista formalmente, acaba por intervir no processo criativo; quem desconstrói conhece aqueles que o antecederam, estudou-os, amou-os e por fim odiou-os, mata o pai e julgar criar uma coisa completamente nova no seu lugar. A arte deixou de se interessar pela imitação e vive da re-criação, colou-se à vida e integrou-se no quotidiano. Desistiu da transcendência porque se deu conta que os mestres não podiam ser sobrepujados. Apenas repudiados e destruídos. E, no melhor dos mundos, esquecidos.

[Sérgio Lavos]

13/05/07

Arte e imanência (1)

A história do violinista famoso que decide tocar para uma multidão de transeuntes em hora de ponta não é exactamente original, mas prova qualquer coisa. Há aquele video do Badly Drawn Boy, aqui há uns anos, em que ele aparece a tocar na rua perante a ausência de reconhecimento de quem passa. Julgo que o video testava sobretudo a notoriedade do músico, e neste aspecto distinguia-se da experiência de Joshua Bell, incentivada pelo "Washington Post". O que prova ao certo, então? Havia uma resposta, e procurei-a nos meus apontamentos da última viagem a Londres.
No mesmo museu que expõe uma réplica de "The Fountain", de Marcel Duchamp, supremo cliché da arte auto-reflexiva, gente de todo o lado formava fila para descer por um dos tubos que tinham sido montados a partir de cada um dos três pisos do museu até ao solo. Aí está, pensei ao entrar, o aspecto lúdico atraindo público para a arte, o carácter utilitário destes anglo-saxónicos nunca pára de me surpreender. Engano meu, claro. A Tate Modern, quando abriu as portas em 2000, cumpria logo à partida os requisitos dessa função utilitária da arte. Aproveitando o espaço de uma central energética do século XIX abandonada, ali à beira do Tamisa, a arte ocupou o seu devido lugar na história. Houve a preocupação de não criar uma obra de arte arquitectónica do zero para receber o espólio de arte contemporânea da Tate. O edifício já existia, e de um modo completamente orgânico, foi reformulado por Herzog e de Meuron para servir um objectivo diferente do inicial. A função ecológica da intervenção também não é desprezável, claro; nos dias que correm, o caos urbanístico deixou de ser aceitável, e existe uma cada vez maior ligação entre sensibilidade ecológica e planeamento urbanístico.
No interior do edifício, a obra de Carsten Höller, o escorrega, perdia a intensidade de obra-de-arte (duvido que a maior parte dos visitantes que pagaram para descer por ali soubessem que aquilo era uma instalação artística) para se reduzir a um objecto do quotidiano, exclusivamente utilitário. Parecia ser apenas um extra na oferta do museu: para além de arte, diversão.
A ideia não está muito distante do uso que uma criança pode dar a muitas instalações ou performances modernas. Uma escultura de Rui Chafes pode ser um banco ou uma construção lúdica; um trabalho colocado numa rotunda para os lados da antiga Expo um escorrega com múltiplas pistas (acontecimentos presenciados na primeira pessoa). Por isso, não admira que apenas algumas crianças tenham parado para ouvir um pouco de Bach interpretado por um dos mais conhecidos violinistas do mundo, no metro, em plena hora de ponta. A música, para uma criança, perde a importância que qualquer melómano com o ouvido treinado lhe atribui, e reduz-se a simples acontecimento inserido na corrente contínua do quotidiano. Belo e fugaz, decerto, mas apenas mais uma experiência, sem qualquer transcendência inerente. Como o escorrega de Höller. Como o urinol de Duchamp. Como deveria ser a Guernica de Picasso. Ou o fuzilamento pintado por Goya. Ou não será assim?

[Sérgio Lavos]