11/09/06

Um dia na vida

Rui Tavares, um dos historiadores entrevistados hoje no Público a propósito da data que ninguém gostaria de recordar, escreveu no seu "Pequeno Livro sobre o Grande Terramoto" sobre as ondas de choque que o acontecimento teve na História, alinhando um paralelismo entre o presente e o passado; o terramoto foi notícia por toda a Europa, como o continua a ser o atentado ao WTC. Uma imagem da realidade, fragmentada e repetida até à náusea, até que reste apenas uma vaga reminiscência do original. Há semelhanças, claro, mas as diferenças ultrapassam-nas em número. Como acentuam os historiadores que são entrevistados na peça, começamos a perceber que o impacto terá sido menos forte do que aquilo que parecia inicialmente. Do terramoto de Lisboa guardamos a memória incompleta dos relatos da época, do 11 de Setembro temos e iremos ter durante muito tempo tudo, a verdade e o seu contrário, versões sérias, versões oficiais e versões fantasiosas. Esperemos pela cristalização do acontecimento. Mas será que tão cedo se irá fixar, sem espaço de manobra, na História?
Como Slavoj Zizek escreve no seu livro "Bem-Vindo ao Deserto do Real", de resto conceptualizando uma ideia que foi comum a muita gente logo na altura em que as imagens entraram de modo violento no nosso Real (para utilizar o termo do filósofo esloveno), a máquina de Hollywood (assim como muitos escritores de ficção científica ou de ficção de antecipação) já esboçara os contornos da tragédia, prevendo e ajudando à tarefa dos terroristas. O 11 de Setembro, portanto, antes de acontecer já pertencia ao imaginário do Ocidente, globalizado por uma cultura americana predadora da velha cultura europeia. Seria inevitável, se nos quisermos sentar na poltrona do nosso cinismo ou da demagogia ideológica. A realidade imita a arte, ou a arte irrompe pela realidade dentro, abre um rasgão que ainda não parou de sangrar? Do ponto de vista dos terroristas, a segunda hipótese, alucinação pura, é o mais brilhante possível. Na matriz de qualquer terrorismo está a possibilidade de mediatização; a essência do acto terrorista não é a matança indiscriminada, nem sequer a disseminação do terror na sociedade (a primeira é uma inevitável consequência e a segunda o fim básico); o que submete o acto de terror à prova final, à sua inscrição na realidade, é a existência de jornalistas; e de câmaras. Será esta a razão decisiva para a mudança de natureza do terrorismo - a religião é (quase) sempre um pretexto. O espectáculo da morte torna os terroristas actores num teatro que os transcende - a possibilidade da vida eterna nada tem a ver com religião, mas sim com eternidade, que é uma coisa bem diferente. Se quisermos, nunca os cinco minutos de fama de que falava Andy Warhol foram tão espantosamente gozados.
Apanhados na vertigem da ficção, saberemos de facto medir a importância do acontecimento? A tese de Fukuyama, catastrofista e provocante, não estará de facto perto da verdade? Num mundo dominado por dois eixos que se cruzam a cada segundo - a mediatização, puro acontecimento de superfície, e a velocidade de informação, que não chega sequer a tocar essa superfície - saberemos integrar o presente que não para de passar na História, cristalizando os acontecimentos, a única via de atingirmos o conhecimento? Ou estaremos condenados a esquecer, a conviver com simulacros da coisa verdadeira?

[Sérgio Lavos]

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