27/09/06

Traições

...o caminho errado que tomámos... um verso de um poema que encontrei por um acaso perdido a meio de uma frase de um romance de Enrique Vila-Matas. Perdi-lhe o rasto há uns anos, quando ainda encontrava alguma utilidade em duas actividades que hoje em dia se tornaram obsoletas: a pesca de almas a partir de prédios altos e a escrita feérica de poemas. O gajo não me conheceu. Fingiu não me conhecer, o sacana. Sabem como é, quando encontramos um amigo há muito desaparecido e ele imita na perfeição um perfeito desconhecido. Não se pode censurar esta atitude. É que se torna difícil conciliar dois tempos. Imagine-se: o passado e o presente podem ser por vezes como duas peças de roupa de cores contrastantes. Ninguém gosta de parecer mal quando veste o fato domingueiro. Ainda assim, censurei-o na intimidade. Enfim, o verso ignorou-me ostensivamente, como um daqueles fulanos que se pavoneiam nus no meio de um evento desportivo. Perguntam: poder-se-á ser ostensivo na ignorância? Há exemplos diariamente observados, trabalho de campo que se deve levar a sério. A ignorância é exibicionista. Não há qualquer dúvida neste ponto. Seja como for, virou-me as costas achando que eu ia dar de barato aquela tão evidente traição. Pôs-me os cornos com um escritor famoso, ou pelo menos não prosseguiu uma conduta leal: quando eu o criei, esperava dele o mínimo de respeito. Insuflei-lhe vida. Tornei-o verbo no mundo. É pouco? O suficiente para que sacasse de uma caneta assassina e riscasse o verso do livro de Enrique Vila-Matas. Contudo, há traições que são difíceis de apagar.

[Sérgio Lavos]

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