21/07/06

Desejo

África é o destino preferido das personagens de filme irremediavelmente românticas. Penso em Rimbaud e na sua desistência fulgurante, os longos anos passados como comerciante, tentando esquecer a sua vocação de artista maldito. Mas Rimbaud não é personagem de filme. Vou saltar também Rudolfo Valentino e os filmes do deserto, e Humphrey Bogart e Ingrid Bergman perdidos de amor em Casablanca. O rosto duro e luminoso de Peter O'Toole como Lawrence já me diz mais, serve de contributo para a minha geneologia pessoal do ocaso. Vou desembocar fatalmente em Um Chá no Deserto, em Debra Winger raptada por berberes e tomada pelo calor das areias, John Malkovich uma sombra projectando-se contra o céu de zinco que se abate sobre as infinitas dunas.
Eles viajam para se perderem de si próprios. O cliché imagético e literário recorda-nos o fatalismo de África. Se não contarmos com (alguns) filmes de Atom Egoyan ou Sharunas Bartas, ninguém foge do mundo procurando refúgio nas paisagens geladas do Ártico. Não há qualquer mistério no facto. O frio e o gelo tornam a solidão humana menos significativa. A paisagem nórdica é desoladora, mas no mau sentido, inspira apenas quem nela habita ao recolhimento e à mísera depressão sazonal, vazia e passageira. A existência vacila quando a temperatura sobe, terá a ver com a nossa condição de animais de sangue quente. Esqueçamos Kierkegaard. Esqueçamos Stig Dagerman - essa vergonhosa paixão de adolescência. Voltemos a Paul Bowles e a Al Berto, a Luís Miguel Nava e a Malcolm Lowry (o calor mexicano é o espelho do calor sahariano), a Camus, regressemos a David Lean, Ondaatje e Bertollucci. O paradoxo do deserto: como, em tal vastidão libertadora, pode o Homem sentir o apelo da morte? Camus é um exemplo desta irreparável falha. Se compreendemos em Kafka o sortilégio da representação do medo humano, porque sabemos como a Praga daquele tempo poderia ser inspiradora, mais admirável se torna a obra do escritor francês. Conseguir transpôr para o deserto norte-africano a angústia experimentada por Kafka - e, por extensão, pelo ser humano - não é apenas um feito, é inevitável. A incompreensão perante os actos de Mersault torna-se avassaladora. Se o labirinto kafkiano não tem solução pela própria mecânica da encenação, as obras de Camus encerram em si um sentido trágico que imita o teatro grego. Em Kafka, o destino não intervém na acção das personagens; tudo é aleatório e imprevisível. Camus, por outro lado, dá a entender que desde o início tudo está previsto, a queda é inevitável. O deserto conduz os homens à perdição - e sem pathos.
Por associação, recordo Caché, o filme de Haneke que, vou descobrindo, me deixou uma impressão profunda. A morte do amigo da infância, violenta vaga regressando do passado da personagem que Daniel Auteuil encarna, é marcante. Não por acaso, a personagem é argelina. A violência pode ser o resultado de milénios de convívio com as paisagens desérticas. A areia (tempo); o calor (corpo); e a extensão de luz até onde a vista abarca (eternidade). Faz sentido.

[SL]

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