Ó Rui (podia tratá-lo por caro mas não tenho vontade alguma de fingir que sou um moço bem educado), claro que a pop é três acordes, meia bola e força. Por acaso tem azar, porque até cita discos que são razoavelmente complexos, mas enfim, ofereço-lhe essa de bom grado.
Mas quer-me parecer (acho graça quando alguém escreve quer-me parecer; a pobreza da expressão comove-me) que há aqui um pequeno preconceito que passo a explicar (passo a explicar também é das minhas preferidas): a pop é coisa menor que qualquer um pode perceber e/ou executar/criar. Logo, a escrita sobre pop é menor e idem os que sobre ela escrevem. Estou quase tentado a concordar consigo (repare que já lhe atribuí esta ordem de pensamento, mesmo que não seja a sua; perdoe-me o maniqueísmo), assinalando como excepção eu próprio, visto gostar muito de mim.
A partir daí, grosso modo, a gente escreve tudo da mesma forma e somos, vaga e geralmente, uns patetas - ou escrevemos patetices. (Gosto da parte em que dizem que não temos referências. Aprecio sobremaneria quando indivíduos que não me conhecem me reduzem intelectualmente sem saberem se estudei engenharia ou fotografia, se leio Heidegger ou livros de culinária. Não leio Heidegger, claro - acho-o um pateta.)
Ora, não augurando, da parte que me toca, a escrever, em jornais, mais que patetices (pois, grosso modo, essa é condição essencial para ser publicado - um bom texto nunca foi, nunca será publicado num jornal, e qualquer pessoa que tenha estudado, por exemplo, filosofia, sabe isso), acho caricato que, digamos, um texto de Manuel Gusmão não seja considerado uma verborreia inenarrável de referencialidade abusiva exclusivamente centrada em maus poetas e escrita apenas e só para gáudio onanístico de um pequeno salão de medíocres, mas um texto bem escrito sobre uma canção não possa ser algo respeitável. (Eu pessoalmente não quero que seja respeitável; por mim tornava os textos - e o jornal - desrespeitador; mas isso são opções.) Da mesma forma não vejo o mesmo furor em esventrar a prosápia medíocre de um Vasco Correia Guedes, ou o péssimo - péssimo - português da maior parte dos nossos cronistas, que me abstenho de mencionar (doem-me os dedos se premir certa sequência de teclas).
É mais difícil, percebe, porque essa gente (termo que roubo ao bom Correia Guedes, Eça de quinta com amargura no lugar do cérebro) escreve sobre assuntos "respeitáveis". E, meu Deus, se o portuguesinho gosta de respeitabilidade e seriedade. Essa gente sabe (acha o Rui) de CINEMA, essa gente sabe de LITERATURA. Essa gente por vezes, mas só por vezes, até ouve pop, mas quando ouve não cai nessa armadilha dos pobres de a engrandecer ou tratar com respeito. Não, essa gente não cai nessa patetice porque essa gente LÊ (ao contrário destes moços, trabalhadores indiferenceiados resgatados à estiva).
Duvido, por exemplo, que o Rui Manuel ache os seus textos uma patetice, ou pomposos, ou pedantes. Chame-lhe intuição. Eu não lhe noto capacidade para tratar a literatura por tu, mas antes por sim minnha senhora como vai.(E no entanto, consta que a senhora é devassa.) Nada disto o diminui, note-se; apenas que padece do mesmo mal (ou ainda pior) que aponta; não tem, é certo a obrigação de ser claro. Também me parece que dando de barato que a pop é sempre a mesma coisa (como um romance), seria aborrecido ler o mesmo texto, apenas com uma ficha técnica diferente.
Enfim, tropeço na minha (inexistente, como decerto já notou) argumentação.
Quero com isto dizer (outra expressão que merece a minha comoção) que o assunto define o olhar dos pretendentes a intelectuais sobre os textos sobre o assunto. Posso por outro lado (hipótese a considerar) estar ressabiado.
Termino dizendo que não me leve a mal tanto impropério. Nas minhas horas menos problemáticas (tem dias que a gordura no fogão me conduz a um fugaz abismo existencial) gosto de o ler.
Desejo-lhe bons discos, já que do resto não percebo puto(excepto BD, é bom de ver, os moços da pop gostam sempre de BD).
Ouço o disco dos National e saudinha.
João Bonifácio
(Esqueçam o texto do
Rui Manuel Amaral. Esqueçam as vezes que já sentiram vontade de escrever um texto com o mesmo sabor a fel a propósito do, sei lá, Manuel Gusmão. Gosto especialmente da referência ao Manuel Gusmão. E também ficava bem, digamos, um Joaquim Manuel Magalhães. Ou assim. E lembrem-se que um texto é apenas composto de palavras. A música não precisa delas - e ainda assim, alguém tem de fazer o trabalho sujo).
[
Sérgio Lavos]