Quando saí da sala de cinema, pensei num sítio agradável para se estar com algum tempo, lendo o jornal ou um livro, fumando um cigarro, ignorando a urgência das horas. Não que o filme (A Lula e a Baleia) me tenha causado uma impressão duradoura. Rara é a vez em que saio para o dia um pouco diferente por dentro, mas não sei se o defeito é meu - excessivo rigor ou escolhas dúbias - ou se é apenas a normalidade a funcionar como sempre: em cada ano, talvez apenas cinco ou dez filmes se fixarão na memória, talvez menos. A mediania da obra - repetindo os clichés de um certo cinema americano recente, desde Wes Anderson até Todd Solondz - evita que se escreva muito mais sobre o assunto.
De qualquer modo, não era sobre isso que queria escrever. Queria antes falar da escassez de casas em Lisboa para se fazer uma coisa tão simples como beber um café e ler o jornal demoradamente, sem correr o risco de sermos apressados pelos novos clientes que chegam ou incomodados pelo volume de ruído ou a agressividade de uma sala cheia de fumadores. O meu fumo, prefiro que seja o mais solitário possível. O ideal seria eu poder fumar em salas para não-fumadores, quase vazias, duas ou três mesas ocupadas, um casal discutindo baixo, uma mulher solitária escondendo os olhos num livro que podia ser "A Espuma dos Dias" ou um volume dos contos escolhidos de Raymond Carver, as pernas cruzadas por baixo da mesa espreitando do joelho para baixo, saia suficientemente comprida para um espírito púdico, curta quanto baste para sugerir o desejo.
(Lia há uns tempos um historiador a falar dos passeios da Avenida de há cem anos atrás, por onde cirandavam homens tentando surpreender num palso em falso os tornozelos das mulheres que se tapavam - e se mostravam simultaneamente à sociedade. Cada tempo tem os fetiches que merece ter. E isto não pretende ser um aparte reaccionário.)
A abundância de espaços comerciais gigantescos é inversamente proporcional ao vigor da nossa economia terceiro-mundista e directamente relacionada com o atitude dos nossos empreendedores - provincianos megalómanos vivendo à custa de uma exploração intensiva das pequenas ideias que têm. Não tardará muito até que o país retribua esta pobreza de espírito. Enquanto isso, continuemos assistindo de balcão ao empobrecimento do estilo de vida dos portugueses - centros comerciais, créditos desnecessários, entorpecimento das ideias e do pensamento, iliteracia sem solução. Sobre o assunto, ler também o livro de José Machado Pais, Nos Rastos da Solidão.
Acabei por encontrar o tal lugar que procurava, a cafetaria Continental, quase vazia, dia de Julho sem estudantes - a minha FCSH ali a dois passos - os sofás gastos onde me posso recostar sem culpa, durante uma, duas horas, pegar no bloco de notas e escrever sobre o bloco de notas que acabei de retirar da mala. Deitei depois o texto fora, e não fumei um cigarro - estava na zona de não-fumadores. Meia-dúzia de pessoas olhando para o ecrã que passava vídeos musicais, dois ou três yuppies (ainda existem?) no intervalo para descanso, mais duas ou três raparigas e rapazes com aquele ar vago de estudante, semelhante ao que eu ostentava quando por ali também andava - pouca coisa muda, talvez as roupas, pouco mais.
À noite, vi um filme de Godard que nunca tinha visto, em casa - Pierrot Le Fou. Entre este e o filmezinho da tarde um abismo, um universo de distância. Engraçado, o facto de Jean-Paul Belmondo ser citado em A Lula e a Baleia. O Belmondo de O Acossado, passando o dedo pelos lábios à maneira de Bogart. Engraçado.
De qualquer modo, não era sobre isso que queria escrever. Queria antes falar da escassez de casas em Lisboa para se fazer uma coisa tão simples como beber um café e ler o jornal demoradamente, sem correr o risco de sermos apressados pelos novos clientes que chegam ou incomodados pelo volume de ruído ou a agressividade de uma sala cheia de fumadores. O meu fumo, prefiro que seja o mais solitário possível. O ideal seria eu poder fumar em salas para não-fumadores, quase vazias, duas ou três mesas ocupadas, um casal discutindo baixo, uma mulher solitária escondendo os olhos num livro que podia ser "A Espuma dos Dias" ou um volume dos contos escolhidos de Raymond Carver, as pernas cruzadas por baixo da mesa espreitando do joelho para baixo, saia suficientemente comprida para um espírito púdico, curta quanto baste para sugerir o desejo.
(Lia há uns tempos um historiador a falar dos passeios da Avenida de há cem anos atrás, por onde cirandavam homens tentando surpreender num palso em falso os tornozelos das mulheres que se tapavam - e se mostravam simultaneamente à sociedade. Cada tempo tem os fetiches que merece ter. E isto não pretende ser um aparte reaccionário.)
A abundância de espaços comerciais gigantescos é inversamente proporcional ao vigor da nossa economia terceiro-mundista e directamente relacionada com o atitude dos nossos empreendedores - provincianos megalómanos vivendo à custa de uma exploração intensiva das pequenas ideias que têm. Não tardará muito até que o país retribua esta pobreza de espírito. Enquanto isso, continuemos assistindo de balcão ao empobrecimento do estilo de vida dos portugueses - centros comerciais, créditos desnecessários, entorpecimento das ideias e do pensamento, iliteracia sem solução. Sobre o assunto, ler também o livro de José Machado Pais, Nos Rastos da Solidão.
Acabei por encontrar o tal lugar que procurava, a cafetaria Continental, quase vazia, dia de Julho sem estudantes - a minha FCSH ali a dois passos - os sofás gastos onde me posso recostar sem culpa, durante uma, duas horas, pegar no bloco de notas e escrever sobre o bloco de notas que acabei de retirar da mala. Deitei depois o texto fora, e não fumei um cigarro - estava na zona de não-fumadores. Meia-dúzia de pessoas olhando para o ecrã que passava vídeos musicais, dois ou três yuppies (ainda existem?) no intervalo para descanso, mais duas ou três raparigas e rapazes com aquele ar vago de estudante, semelhante ao que eu ostentava quando por ali também andava - pouca coisa muda, talvez as roupas, pouco mais.
À noite, vi um filme de Godard que nunca tinha visto, em casa - Pierrot Le Fou. Entre este e o filmezinho da tarde um abismo, um universo de distância. Engraçado, o facto de Jean-Paul Belmondo ser citado em A Lula e a Baleia. O Belmondo de O Acossado, passando o dedo pelos lábios à maneira de Bogart. Engraçado.
[SL]