07/01/14

Existir

Dando mais um passo na invasão da privacidade dos utilizadores, a Google adicionou uma funcionalidade ao interface mail/blogue/rede social, e agora podemos ver todas imagens postadas no Facebook e no blogue. Esquecendo a questão da privacidade - se eu estivesse verdadeiramente preocupado com isso, não existiria na virtualidade real por onde ando -, a verdade é que o conjunto das imagens associadas ao que vou fazendo mostra parte do que sou, da minha identidade - forjada, claro que está, até porque sabemos que todas as identidades são uma fabricação, o pano que deixa a descoberto outro pano sobre o palco.
Muitos frames de filmes são o sinal evidente que a vida virtual compõe-se sobretudo de ficção. Os filmes que vejo, as actrizes - várias mulheres, quase todas mortas e a preto e branco -, os enquadramentos que me marcaram. É uma história paralela da minha vida - olho para trás e quase que consigo saber quem fui quando me apaixonei pelo "Paciente Inglês" ou quando me comecei a perder nos labirintos mentais de David Lynch. 
É claro que muito do que fui publicando no blogue reporta-se a um tempo anterior às redes sociais. A passagem para a vida adulta, aquele momento em que se estabelecem os pilares de uma personalidade - ponto de partida da identidade que floresce a partir da inevitabilidade melodramaticamente metafísica dos trinta anos - é pontuada pelas inúmeras vias divergentes, os mil e um focos de interesse numa rede que se afigura quase infinita, como se sentindo tudo de todas as maneiras fosse o único modo de viver. Estão lá os livros, os filmes, as bandas, os quadros reproduzidos no espelho ausente do mundo virtual. Sei o que fui quando gostava do que fui publicando, mas já não tenho tanto a certeza de que aquilo que fui tenha sido mesmo. Aquele começo de dúvida subjectiva, entre o espanto e a desconfiança, que transforma a vida num filme projectado contra uma parede de vidro, a transparência e a luz, a evidência e a incerteza concentradas num intervalo de sombra. 
Os dois passados coabitam no mesmo espaço. O código de programação que marca o avanço do tempo pode ser facilmente subvertido. Consigo mudar datas, alterar acontecimentos, mentir. Mas enquanto a falsa identidade que vamos construindo no passo dos dias é dificilmente rebatível pelos outros - o que passou, passou -, a que vamos por aqui deixando deixa uma pegada mais nítida. A única vantagem desta existência de bits é a curta distância entre o ser e o nada, o clique na tecla delete. Vale isto alguma coisa, enquanto quero. A ilusão de controlo é tudo.

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