02/01/08

Eu, pecador, me confesso

Nos últimos tempos, tenho-me comovido por tudo e por nada. A sério. Comovo-me com filmes, com gestos públicos de afecto (essa palavra tão cara a pedopsiquiatras), com a caridade dos outros pelos outros, comovo-me. E comovo-me porquê? Porque tenho sentido bastante carinho por parte de 70 por cento da população portuguesa, e isso não é, de maneira nenhuma, desprezável. Imaginem, 70 por cento! (O uso do ponto de exclamação deve ser bem ponderado, empregue apenas em ocasiões excepcionais, como esta). Setenta por cento de portugueses que se preocupam, que pensam em mim, quem sabe se todos os dias, olham para mim com olhinhos de piedade quando me vêem na rua, quando me sento nos cafés, abandonado, adormecem a pensar em mim e no meu futuro, meu Deus, na minha saúde. Como não comover-me? Conheço gente que por muito menos chora a toda a hora. Eu nem por isso, sempre fui poupado no gasto de tal líquido (não noutros, não noutros). Não choro. Mas comovo-me. Como não me comover com tão grande acto de benevolência, de caridade, de altruísmo cristão, raríssimo nos nossos dias? A grandiosidade dos que me comovem é tanta, o amor que sentem por mim é tão grande que conseguiram convencer o Estado a pensar em mim, a cuidar de mim, a olhar por mim, velar pelo meu futuro, e o dos meus descendentes, ameaço agora mesmo chorar, eu choro mesmo. Eu que nunca me comovo, agora entro num café e olho para aquele sinal vermelho e quase choro; desfaleço, tremo, sacudo-me como se chovesse cá dentro. Quando me sento, derrotado por tamanha bondade, compungido por tal consideração, quase que não consigo pedir a bica do costume, o croissant, a meia de leite. Sinto as lágrimas a vir, mas contenho-me. Tanta filantropia merece o respeito de alguém que não devia ter tanto; por isso, comovo-me mas não choro; vacilo mas aguento-me, como um forcado perante o touro. Não choro. Mas comovo-me. Aquele sinalzinho, "Proibido Fumar", deixa-me quase de rastos. As pessoas gostam de mim! Portugal gosta de mim! O Mundo gosta de mim! E eu tento não chorar com tal gesto de bondade. Obriguem-me, isso, obriguem-me a não fumar, protejam-me das tentações do Demo, protejam-me, por favor, de todo o mal; eu, pecador, me confesso! Por favor, preguem os avisos contra o tabaco à porta de casa, espalhem tabuletas por toda a cidade, instiguem a criação de uma Inquisição anti-tabaco! Obrigado por tanto amor, tanto, tanto! Em troca, apenas posso dar uma certeza: não vos incomodarei mais com o fumo; e se o fizer, podem deixar de falar comigo, dizer mal de mim nas costas, virarem a cara quando me virem entrar com o ar macilento do pecado. Talvez não mereça o vosso amor, a preocupação, o afecto. Mas mereço ser banido se algum dia cair em tentação. Punam-me!

[Sérgio Lavos]

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns por este texto.

Local Livre disse...

Consultar:

http://locaispermitidofumar.blogspot.com/

Anónimo disse...

Magnífico e comovente. Confesso que até me ri de tanto chorar (ou o contrário, não importa).

Pois eu, como pecadora também confessa mas não arrependida, tenho tido de ouvir alguns discursos paternalistas, do género:"então mas se custa tanto não fumar, porque não toma aqueles químicos que existem nas farmácias?" É aqui que começo a duvidar do altruismo - querem intoxicar-me com químicos? Alguns deles até provocam instintos suicidas!! (Um momento, será por isso mesmo??)

E não se pense que esta recomendação vem só do cidadão anónimo: no dia 1 de Janeiro, a repórter da RTP 1 massacrava os pestilentos dos fumadores renitentes com perguntas como:"então, está a custar muito?" e quando termina a reportagem, apela aos caros telespectadores, embora frisando não querer ser moralista, que recorram aos métodos existentes no mercado para deixar de fumar, nomeadamente os tais químicos!! Temos 70% de população licenciada em medicina, especialização em cretinice???