23/01/08

Cifra

Deus não é o meu co-piloto, foi recusado nuns testes que eu lhe fiz há vinte anos.
Quem acabou por perder o sono, pelo menos durante algum tempo, fui eu. Ele voltou para a sua vida eterna, dia após dia, até se esquecer dos dias, e eu nunca mais voltei a vê-lo. Mas, de vez em quando, ele manda-me cartas. Nunca mails. Cartas. Longas missivas? Nem pensem, por duas razões: quanto mais curta a mensagem, mais possibilidade tem de ser importante; e porque escrevendo "longa missiva" estaria a cair num lugar comum. As cartas recordam-me que ele ainda não me esqueceu. E isso deixa-me feliz. Mas, infelizmente, a angústia, usando as serenas vestes da insónia, continua a guardar o meu leito.
Na última carta, falava-me daqueles que morrem jovens. Gente da minha idade, pouco mais velha, pouco mais nova, gente, e é aqui que eu quero chegar, que podia ser eu. Ninguém lamenta o desaparecimento de um velho; quando muito, elogiamos a sua vida, se foi um modelo ou deixou obra, admiramos a pessoa que foi. A morte é uma doença irreversível. Mas se derrota um velho, reconhecemos justiça no mundo. Quando, no seu voo, a morte rapina alguém que teria muito mais tempo de vida, lamenta-se, e de verdade, sem falsos sentimentos. Mas não há qualquer altruísmo nisto: medo, sim. Muito medo. A morte do outro é um pesadelo para nós: sabemos que não é real, mas pode a qualquer momento suceder. O pesadelo transformado em realidade.
Enquanto escrevia estas palavras, Deus tinha colocado o seu ar grave, sério. Falava verdade, e a nossa verdade (humana) dita pelo próprio Deus que alimentamos é um peso insuportável, não há verdade mais clara e mais certa. Eu reconquistei o sono, quando esqueci a recusa de Deus em ser o meu co-piloto (mas fui eu que recusei, não esquecer, fui eu - o espinho cravado). O tempo apaga tudo, mesmo oportunidades perdidas de negócio, parcerias para a vida. Neste momento, ou readmito Deus ao meu serviço, ou terei de pedir que deixe de me escrever cartas. Fale por sinais de fumo. Se mantenha calado, no seu retiro de mim. A verdade tem um rosto que eu não quero conhecer.

[Sérgio Lavos]

1 comentário:

Happy and Bleeding disse...

mais dois posts do caralho :)