25/06/06

A Literatura no Estômago

Disperso-me do futebol. Não vejo, estou fora. Assisto com pouco ânimo ao jogo de logo à noite. Há excitações tão breves que nem valem a pena. Há entusiasmos tão tocantes que me deixam a pensar no tempo que perco com as breves excitações que por vezes me transportam.
Um livro em duas partes brilhantes, o prefácio de Ernesto Sampaio e o texto de Julien Gracq: A Literatura no Estômago. Não é uma novidade, um livro recente, um clássico em nova tradução, um autor inédito em português ou uma poderosa revelação. Não é um livro que fale de uma conspiração secreta, nem do amor nos tempos modernos, nem de uma figura esquecida da nossa História que urge recuperar, não é um livro que fale do estado da crítica em Portugal. Bem, talvez seja. Esta última hipótese. Um panfleto feroz contra o situacionismo da literatura francesa em 1950, digo, e tentarei explicar já de seguida o que este assunto tem a ver com o nosso burgo em 2006.
Julien Gracq pagou a ousadia, mas teve a última palavra. Afirmo (seguindo Ernesto Sampaio): o combate de Gracq contra os poderes ocultos do establishment cultural francês da época, contra o coma em que estava mergulhada a literatura francesa desde a revolução do manifesto surrealista de Breton, contra os nomes que decidiam o gosto do público, desde os comunistas aos anti-comunistas, e Gracq tem a coragem de os convocar todos - Camus, Gide, Malraux, etc. - teve como imprevista consequência a atribuição, dois anos depois, do mais prestigiado prémio francês, o Goncourt, trazendo na cola a quase mortal frase de um dos membros do júri: "Um surrealista que escreve como um professor - ora aí está o laureado ideal." Touché? Não, Gracq recusou o prémio. O livro? O fabuloso "Le Rivage des Syrtres", que li há uns anos numa tradução de Pedro Tamen (ed. Vega).
Leio num jornal (interessa saber que é o Público?) a resposta de um desses críticos ubíquos que se queixam da exiguidade do espaço mediático a uma inventiva de outro crítico que se reclama defensor do último bastião de pureza e independência do pensamento cultural português. A mesquinhez faz-me uma certa impressão, lembra-me sempre as matanças a que assistia na minha infância, quando o porco era dependurado pelos pernis com uma corda e lhe abriam a barriga de alto a baixo, escorrendo para fora sangue e tripas, fígado e estômago e pâncreas, os vapores digestivos espalhando-se em redor numa nuvem nauseabunda. O meu pai dizia-me para estudar com atenção as entranhas, não porque possuíssem estranhos poderes divinatórios, mas porque no corpo do porco poderia descobrir o meu próprio corpo, modo ancestral de aprender anatomia. Eu observava então a autópsia do animal com uma curiosidade comedida, entre o nojo e o respeito a uma sabedoria que eu intuía verdadeira.
Os blogues por vezes também discutem as mesmas miudezas a que se atiram circunstancialmente os críticos. É um assunto que vai e volta, como a carreira que João César Monteiro tomava todos os dias. Sugeria então a quem se interessa pela espuma dos dias que lesse o livro de que falo, A Literatura no Estômago, editado pela Assírio e Alvim em, veja-se lá, 1987, de modo a perceber o mecanismo quebrado da História. Os ciclos que se repetem. Gracq insurge-se contra a busca fácil da novidade, e duvida do critério de gosto do leitor, habitualmente guiado pelo gosto do crítico. Resta a dúvida: valerá a pena discutir o carácter de quem habita esses espaços privilegiados que decidem o critério estético do leitor? Nunca o leitor saberá reconhecer em si um gosto estético firme, se não dispuser das ferramentas para o estabelecer. A verdadeira questão é: estará o leitor disposto a isso?

Um excerto:

"Desde que existe um público literário (quer dizer: desde que há uma literatura) o leitor, colocado diante de uma grande variedade de escritores e de obras, reage de duas maneiras: por um gosto e por uma opinião. Instalado diante de um texto, vai produzir-se nele o mesmo clic interior que sentimos, sem regra e sem razão, quando encontramos alguém: "ama" ou "não ama", sente ou não sente, à medida que vai virando as páginas, a sensação de ligeireza, de liberdade pura, embora suspensa, que se pode comparar à sensação dum galope sobre um cavalo de raça."

E o prefácio do tradutor, Ernesto Sampaio, é exemplo de uma utilização da língua portuguesa rara, de tão exemplar. Pudessem dez por cento das novidades editoriais serem tão essenciais como este livrinho e o buraco onde o país se encontra por certo já estaria um pouco mais raso do que está. Quase perfeito.

[SL]

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