19/01/07

Scoop

Havia qualquer coisa que me escapara quando, há cerca de um ano, me desiludi com Match Point, de Woody Allen. Não seria a construção de um olhar estrangeiro, perfeito na sua estranheza cínica que não se importava de enumerar clichés e citá-los com a graça e a sabedoria de quem já nada tem a provar ao mundo. Também não poderia ser a ausência de punchlines. A atitude deliberada terá sido um risco, mas o registo mais pesado de Woody Allen não deixava de ser eficaz em quase todos os aspectos. Terá havido um erro de casting ao ser escolhido um actor com uma figura pouco masculina, Johnathan Rhys-Meyers, para encarnar o jovem oportunista tornado assassino por interesse. Não cabe nestas considerações o desempenho de Scarlett Johansson; cada vez mais me convenço de que qualquer papel se lhe adequa, e prova-o Scoop, onde ela veste a pele de uma personagem a milhas de distância da sedutora despeitada de Match Point, apenas para nos ficarmos pela outra colaboração com Allen.

O que não tinha notado quando vi a anterior obra de Allen fora a ironia predadora que não se importava de pegar num mito em forma de livro (Crime e Castigo) e conferir-lhe um tom de fábula moderna. O modo ridiculamente acidental como Scarlett Joahnsson leva um tiro, no vão de uma escada, é apenas o culminar da mal-disfarçada sátira. Woody Allen brinca com a seriedade e com a tendência para o drama, características tipicamente britânicas, ou pelo menos vistas pelo prisma do lugar-comum como sendo tipicamente britânicas, sem nunca revelar abertamente a farsa. Há chaves no filme, claro, desde a visita da americana leviana em pleno countryside inglês (terreno fértil para a ficção desde, pelo menos, Henry James) até ao fascínio quase infantil que Allen sente pela paisagem urbana inglesa, com os seus tons de cinzento e a chuva intermitente, o seu cosmopolitismo educado que contrasta de modo evidente com o caos multicultural de Nova Iorque.

Woody Allen apaixonou-se por Londres, mas não consegue sacrificar a sua verve a uma boa paixão passageira. Em Scoop, prova-se. Um regresso à comédia e o Dr. Jekill para o Mr. Hide que foi Match Point. A sátira aprimora-se, e as linhas de continuidade entre as duas obras ainda acabam por acentuar o carácter irónico de Match Point. Aqui, o assassino é desastrado, descontrolado, um arrivista que usa a sorte que tem (a bola na rede é, sem dúvida, a metáfora que explica melhor o filme e que rima directamente com a moeda sobre o rio e o acaso que não deixa que ninguém suba as escadas durante aqueles cinco minutos em que são cometidos os dois crimes) para ascender na escala social. Em Scoop, o milionário com aspirações políticas, frio e calculista no crime que comete, é derrotado pela incongruente jornalista e pelo clown decadente, ajudados pelo destino e pela divina providência, encarnada na figura do jornalista que regressa do rio do esquecimento. Tudo improbabilidades, claro, mas não será disso que trata o cinema?

Jogo de acasos que apenas se afirmam como tal depois de acontecerem, a vida nunca imita o cinema, que está, por princípio natural, escrito à partida. Aos setenta anos, Allen pode mostrar cansaço e desencanto, mas conseguiu apurar a sua inteligência cinematográfica a um extremo que, roubando espaço à novidade e à surpresa, conquista território em termos de depuração formal e técnica. Que a sorte continue a bafejar quem gosta de Woody Allen, de modo a que continuemos a provar a colheita anual a que estamos habituados.

[Sérgio Lavos]

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