29/04/06

O Atlântico e a direita

De tanto andar a blogar por aí, ainda me arrisco a acordar um dia transformado num insecto, ou então num convicto liberal de direita, a abundante praga que fundou esta coisa virtual e que dela se sustenta.
Como o risco é elevado, todos os dias mergulho num comboio suburbano para não perder de vista as minhas origens, e lembrar que nem todos os privilegiados têm motorista e iacht.
(Abro um parêntesis aqui para agradecer publicamente a Rui Tavares o facto de me ter obrigado a ler todas as semanas as crónicas de Helena Matos no Público. Antes, bastava passar os olhos por duas ou três frases para ficar com uma ideia geral daqueles doces devaneios de mulher às direitas. Agora, dado o ameno convívio com os textos de Rui Tavares, detenho-me mais demoradamente naquilo que a senhora tem a dizer, e que prazer! E que coincidências entre as duas colunas. Hoje, por exemplo: O Rui fala de privilégios, a Helena de carenciados. Um tratado, o evidente contraste. Os pobres e mal-agradecidos que Helena Matos, de forma tocante, cutuca na sua crónica, têm o seu espelho logo ao lado, onde passam a ser privilegiados. As palavras de Rui Tavares, premonitórias, confirmam os palpites de Helena Matos. Desta é que acertaste, José Manuel Fernandes.)
Mas a verdade é que acabei por comprar a revista Atlântico, à custa da publicidade que se espalhou pela blogosfera fora. Tenho uma certa vontade de me debruçar sobre alguns artigos da revista, e sobre o tom geral de uma publicação que mudou há pouco de director e que agora acolhe nas suas páginas meia-blogosfera reaça. Neste número, as excepções são Medeiros Ferreira e Bruno Cardoso Reis (excelente texto). Mas o tempo não abunda. Por isso, limito-me ao fait-divers e ao bitaite de circunstância.
Com alguma curiosidade, avancei logo de chofre para as páginas dedicadas à polémica da providência cautelar da Margarida Rebelo Pinto. Do lado esquerdo, Carla Quevedo faz uma comparação absurda entre o facto de Margarida se copiar de livro para livro e o facto de ter uma vida privada. Não compreendi. A sério. Será necessário explicar quais são os deveres do crítico, e de que modo João Pedro George os cumpre? Adiante, porque o texto ao lado tem muito mais sumo a espremer. Paulo Tunhas, que me dizem ser um professor universitário de reconhecido mérito intelectual - seja lá o que isso for - fala dos dois livros que levou para férias: "Sei Lá" e "Ensaio sobre a Cegueira". Desculpa a Margarida com o Saramago. É assim mesmo. Se não deixa de colocar a prosa da escritora light ao nível zero da literatura, por outro lado aproveita para achincalhar o escritor que fica sempre bem achincalhar, seja por ter recebido o prémio Nobel, seja por pertencer, simplesmente, ao PCP. Isto, apenas. E Tunhas, armado em George da direita, descobre a pólvora. Saramago copia-se! Saramago usa a mesma técnica de Margarida Rebelo Pinto! Fui ver, dado o favor que ele me fez ao deixar pespegadas no artigo as páginas onde tal cópia acontece. E logo num livro que até me parecera dos mais bem conseguidos de Saramago, um autor que, de resto, não me diz nada há muito tempo. Tiro ao lado, falhanço irremediável. A verdade é que existem mesmo dois trechos que se repetem, mas por uma razão de estilo. Bastava ler com atenção aquelas 5-10 páginas para se perceber o alcance do efeito estilístico. "Ensaio Sobre a Cegueira", páginas 284 e 295-296. Confere. Será abuso da minha parte acusá-lo de desonestidade intelectual? Ou de coisa pior? Nem a cuidada súmula da obra de Fernando Gil que encerra a revista salva Tunhas do tropeção. Há uma razão literária, sim. Indiscutível.
Fins-de-semana em casa sem muito para fazer dá nisto. Ócio sem ofício, e peço desculpa pelo trocadilho sem sentido.

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