02/04/06

Maria Filomena Mónica ao Domingo

O Domingo é, desde que me lembro, o pior dia da semana, toldado pela melancolia proletária do trabalho avizinhando-se, inquinado pelo tempo livre minguando a caminho da sua lua nova. Partilho este sentimento com qualquer ser humano médio, e julgo que também com alguns fora da média, a fazer fé nestas palavras de Morrissey - "everyday is like sunday/everyday is silent and grey". Descontado o costumeiro miserabilismo do músico (repare-se no exagero de todos os dias se tornarem silenciosos e cinzentos... bem, falamos da Inglaterra, evidente. Esclarecido.) Ficamos então com um dia para esquecer. O facto de, nos últimos anos, ser obrigado a trabalhar neste dia apenas ameniza um pouco o sofrimento. As horas apressam o seu passo, mas a noite continua a ser, como dizia Baudelaire, "um profundo abismo negro". Ou coisa que o valha. Mas adiante. Tenho sempre a Pública para distrair os humores. E desde há dois meses que uma razão mais concorre para a minha mínima diversão dominical: as crónicas de Maria Filomena Mónica. O fogo-de-artifício do seu "Bilhete-de-Identidade" espalhou ondas de imprevisível consistência. Pode-se mesmo dizer que a vida da senhora mudou com a saída do livro. Uma das consequências foi a promoção, na hierarquia do "blogue dirigido por José Manuel Fernandes" (João Camilo dixit), da apagada crónica no suplemento "Mil Folhas", a maior parte das vezes versando sobre assuntos tão pouco estimulantes como a sociologia ou a obra poética de Boaventura de Sousa Santos. Passámos a lê-la na anteriormente referida revista, com as necessárias mudanças que daí decorrem: agora é a vida da senhora que interessa ao público. Ela vista ao espelho, com todas as rugas e arrependimentos que a idade acarreta. Com orgulho. Como se fosse uma fadista. Saltando de tema em tema, semanalmente, inevitavelmente teríamos que aportar a um dos assuntos do dia, que a vida não é só feita de encontros furtivos com académicos de renome em campus de universidades inglesas e outras futilidades várias; enfim, o terrorismo. Salto até ao fim do texto em questão, e vejo lá estampada uma obsessão antiga: o bom do Boaventura e a sua defesa de uma espécie de negociação com os terroristas. E por que razão começo eu pelo fim da crónica? Para mostrar como um artigo de opinião pode vincular uma e uma pessoa apenas: quem a escreve. Tudo o resto pode ser mentira, ou inverdade, como se tornou hábito dizer. Repare-se, que interesse pode ter uma crónica escrita pelo sociólogo na revista "Visão", em 2005? Não querendo parecer ingénuo, um interesse absolutamente nulo. Ou então servir o propósito de uma argumentação fraca e falaciosa. Evocar um artigo diametralmente oposto e que padece de igual fraqueza argumentativa eleva o texto de MFM a um patamar onde ele não merece estar. O que diz ela, por pontos:

- O primeiro parágrafo é extraordinário; uma perversa alusão ao hipotético desejo de conquista por parte dos muçulmanos (note-se a correcção seguinte para uma mais suave afirmação "a franja extremista dos muçulmanos", essa fantástica abstração) do "universo", através do terrorismo. A infantilidade do termo usado dispensava um comentário adicional, mas o nível de paranóia que transparece desta afirmação é estarrecedor. Acrescente-se isto. Eles estão aí, por todo o lado, são as invasões bárbaras.

- O segundo parágrafo trata do currículo da religião islâmica; as suas conquistas, as atrocidades cometidas, o punhal enterrado no coração da Europa durante três séculos. O que eles trouxeram ao Ocidente, o avanço que antecedeu as trevas da Idade Média cristã, não interessa porém a MFM, mau-grado a sua formação autodidacta na área de História. Nem tão pouco lhe interessa o facto de qualquer império trazer em igual medida a civilização e a barbárie, a liberdade que o progresso permite e a escravatura dos povos conquistados; a bondade das culturas é uma história contada para adormecer tolos, mas que importa isso nos tempos que correm?

- De seguida reproduz a afirmação de um fanático qualquer desconhecido que ameaça conquistar Roma, e eu sorrio pensando no maluquinho que se julga Napoleão brandindo a espada e assustando as crianças que passam. O medo pode ser uma coisa terrível.

- Por fim, lá vem a conversa do costume: não gosta da tese defendida por Eduard Said, a que diz que o terrorismo islâmico é uma consequência da miséria dos povos muçulmanos, porque sim. Porque Said, e os que com ele concordam, são, vá lá, perigosos extremistas de esquerda. Note-se, isto basta. E culminando o brilhantismo da ideia, a comparação do costume: anarquistas e terroristas, gente sem fé que se diverte a praticar malfeitorias no seio da sociedade burguesa em que vivemos. A cereja no topo é a habitual citação de Eça - também pode servir uma frase de um qualquer académico inglês - reclamando do burguês acomodado e simpatizante da causa anarquista. As elites, culpem as elites por todas as revoluções do mundo. Karl Marx sabia muito bem o que fazia.

O fascínio pelo terrorismo. É esse o título da crónica. Se não fossem estas alegrias breves, que colorido teria o cinzento dos meus Domingos?

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