14/07/07

3-3

É uma reacção normal, ou apenas o ciclo natural deste assunto, pelo menos desde o século XIX; depois de alguns anos em que a religião foi o tema mais importante, regressamos ao ateísmo. Dir-se-ia que o assunto é o mesmo. Ideia errada. Ateu não é antónimo de religioso, assim como crente não é o contrário de ateu. Eu, como produto do ateísmo, me confesso: creio na não-existência de Deus. Já senti mais vontade de abandonar esta fronteira - crer em deus simplificar-me-ia a vida. Mas também já ensaiei a minha dança como o niilismo ateu. Contudo, acredito firmemente em algo: nenhum dogma perdura. Nem Deus nem falta a dele, deste modo.
De qualquer maneira, Deus ri nas minhas costas. Eu estou aqui a escrever esta oratória das coisas perdidas e ele sabe que levará a melhor no final (caso exista). Se não existir, também não será por isso que resistirei ao poder das minhas palavras. O problema é a sua omnisciência. Nenhuma blasfémia ficará sem castigo. Se peco contra deus, arrisco o Inferno. Se peco contra a Razão, e acredito, aproximo-me do inferno em vida. Há quem seja mais sensato, claro. Quem não questiona, quem não duvida, quem piamente se dedica a uma causa - e não falo do comunismo. Mas, por qualquer defeito de fabrico, eu duvido. Desde a adolescência, essa idade maldita, que duvido. Horas e horas de insónia, revirando-me no escuro da minha pobre condição humana. (Há muito de invenção poética nesta imagem; era pior no Verão, quando as melgas se juntavam a Deus no meu martírio).
Mas se defendo alguma coisa em abstracto, é a tradição dos rituais religiosos. Não me sinto confortável sabendo que há gente, a esta hora, caindo de joelhos, convulsivamente, a ser curada de uma qualquer doença fatal. A ideia de que um qualquer iluminado poderá, apenas com a força de um gesto sobre o rosto, apagar qualquer inevitabilidade da vida, deixa-me pouco menos que perplexo. Se um milagre é algo potencialmente acessível a qualquer um de nós, onde se esconde Deus? Um dos melhores episódios de House é aquele em que ele perde com Deus* (3-2, salvo erro, é o resultado). Um adolescente com delírios místicos entra no hospital doente. House aposta a sua crença na razão científica contra a vontade de Deus. No fim, descobre-se que o rapaz peca de modos pouco menos do que ímpios - não há poder inspirado por Deus que resista ao desejo humano, esse diabo de muitas caras; e Onan não é apenas um exemplo a não seguir.
A vontade humana não é coisa fácil de domesticar. Talvez a razão de não entender muito bem os misteriosos poderes da Fé. Agrilhoar-se a uma incerteza parece-me tão insensato como negar de forma definitiva essa mesma incerteza. (E Deus acena a cabeça em concordância comigo). O meu ateísmo suave permite, no entanto, que concorde com uma ou duas coisas: uma delas, na ordem do dia, é a missa em latim. Manter as massas na ignorância? Não, não entenderam nada. Tornar a religião humana, atribuindo-lhe a qualidade mais humana de todas: a capacidade de maravilhar, deliciar esteticamente. E Bento XVI, intelectual distante do paganismo inerente à religião católica, percebeu o que está em causa. Apenas a Razão pode estabelecer o catolicismo, e a Razão nasce da contemplação do mundo: o ritual, a envolvência, o confronto com o inefável. Nós, pobres ateus, nem sabemos o que perdemos.

*House empata no final, de acordo com um leitor. Devo ter adormecido a meio do encontro.

[Sérgio Lavos]

10 comentários:

Orlando disse...

House empata 3 a 3!
Convémver os episódios até ao fim:)

Anónimo disse...

Obrigado pela correcção. Se calhar, distorci a verdade de forma intencional...

Luís Daehnhardt disse...

Meu Deus! Podemos comentar no Auto-retrato. Que outras mudanças nos esperam? Qualquer dia ainda deixas de ser ateu... Recebe o meu abraço gnóstico.

Anónimo disse...

Deus não dorme no ponto. Foi inspirado pela sua graça divina que decidi instituir a modalidade de comentários neste tasco, pelo menos até à próxima quaresma. Vá, advento. Bem, pelo menos até ao Dia de Finados. 13 de Outubro? A próxima quinzena? A meu ver, aproveitem enquanto Deus está de olho em mim.

Vítor disse...

A não existência de Deus é simples de provar. Impossível conceber, por exemplo, que um Jeová sério, omnisciente e omnipotente, pudesse empregar o seu tempo de forma tão fútil a brincar com manequins e - o que é ainda mais incongruente - restringisse as suas brincadeiras às horrorosamente banais leis da mecânica, química e matemática, e nunca - repare bem, nunca - mostrasse a sua face, mas se permitisse espreitadelas sub-reptícias e circunlocuções, e murmúrios furtivos (revelações, francamente!) sobre verdades controversas por trás das costas de alguma histérica inofensiva.

V. V. Nabokov, Desespero, Editorial Presença

Um abraço,
V.

Luís Daehnhardt disse...

Se o Nabokov diz que não há Deus é porque não há! E se ainda por cima o escreveu e publicou num livro, isso, então, não deixa qualquer espaço para dúvidas. Finalmente um pouco de paz interior... Graças a V. (e, já agora, ao Nabokov)!

Anónimo disse...

Caro Vítor:

tenho uma regra na minha vida: não confio em caçadores de borboletas para assuntos tão sérios como a existência de Deus ou a pederastia, mesmo que, como é o caso, no resto - i.e., a literatura - ele não tenha de dar cartas a ninguém. Mas a literatura tem tão pouca importância perante tais assuntos...

Luís-Carlos: não sei que te diga. E dizes tu que não aprecias ficcionistas. Gosto de te ver convertido por um simples comediante como Nabokov.

pedro vieira disse...

sim, não se tome demasiado a sério um autor susceptível de ser chalaceado com um simples "não gostas de nabo, kov"? e por aí fora

Anónimo disse...

Pode-se medir (?) a importância de um escritor pelo tamanho do... trocadilho que se pode fazer com o nome. Bom critério, irmão lúcia.

Vítor disse...

Sérgio,
Perante um assunto tão importante como a religião, não vejo outra forma tão eficazmente sanitária de o encarar como emular as palavras de VN. As verdades de VN, essa e outras que não convém agora nomear, são o melhor tributo que poderei prestar à soma dos assuntos importantes, à Vida - o máximo de atenção, o mínimo de seriedade.
Ficaram anotadas as tuas palavras através das quais te referes em termos concretos à superioridade da religião perante a literatura.
Quanto à tua última questão: não, não se pode medir a importância de um escritor pelo tamanho do trocadilho que se pode fazer com o seu nome. Isso equivaleria a dizer que a sopa de letras é a mais literária de entre as sopas, mais literária do que, suponhamos, uma sopa de nabo/couve.

Um abraço,
V.