04/06/08

Burgueses e burgessos

Ainda este fim-de-semana lamentava uma vez mais o país em que vivo, e pensava que a lamentação estava-se a tornar repetitiva, e hoje obtenho um indício mais que confirma a suspeita; não é que tenha sido uma daquelas coisas; uma daquelas coisas que nos arruinam o dia, alguém mal-educado ou com uma vulgar tendência para a loucura quotidiana que decide descarregar no próximo. Foi uma frase, uma frase apenas, ouvida de passagem na rua: "Eu sei que sou um "bruguês", e não me importo". Ora, meu caro conterrâneo, companheiro que fumas exilado à porta de restaurante caro, não me vou incomodar a corrigir o teu português burgesso. De burgesso. És "bruguês" mas não leste Eça, não importa. Tu confirmas a impressão deixada no fim-de-semana, e isso deixa-me medianamente satisfeito, ou pelo menos vagamente anestesiado: o rio é a melhor coisa que Lisboa tem, e não preciso que o Miguel Sousa Tavares repita isso bastas vezes para o reconhecer. O espelho de água reflectindo a luz branca da cidade, já sei. Mas a verdade é que a luz, ao chegar ao Tejo, encontra um muro. Entre Alcântara e Belém construiram há uns anos um passeio para peões e bicicletas, mas desgraçadamente esqueceram-se de proibir a passagem e o estacionamento de carros. Apenas num país de "brugueses" burgessos isto é possível. O que poderia ser um agradável passeio de Domingo transforma-se essencialmente numa gincana entre veículos parados de pobres pescadores do lodo fluvial e os carros dos lisboetas que andam ali às voltas, como cães em busca da própria cauda, à procura de lugar para estacionar. Os portugueses são burros? São, sim senhor, porque perdem mais tempo e paciência à procura de lugar para estacionar do que a usufruir do descanso de Domingo. Vê-se pouca gente a caminhar, a correr, a andar de bicicleta. As ruas da cidade são um perigo para os poucos que se atrevem a andar de bicicleta, devido à preponderância dos carros nas vias da cidade. O progresso não é só a possibilidade de mudar de automóvel todos os anos; é sobretudo ter tempo para desfrutar o dinheiro que se ganha. Basta ir a Barcelona, Berlim ou mesmo Londres para ver as diferenças de qualidade de vida de lá para cá. Ciclovias por toda a cidade é impossível (as sete colinas, já sei), mas que custaria fazê-las em toda a zona ribeirinha, proibindo a circulação de automóveis nas zonas verdes que entretanto foram construídas? Vontade política? Apenas isso, mas todos sabem, e ninguém faz nada contra isso, que quem toma as decisões dos políticos são os interesses que sustentam as câmaras. A planeada frente para a cidade será decidida em função do potencial comercial dos centros que planeiam construir - e isso pode incluir a destruição da estação de Santa Apolónia, sob o pretexto de retirar as partidas internacionais de comboios do centro da cidade - sabendo os políticos muito bem que todas as grandes cidades têm estações gigantescas bem no centro, sendo mesmo ícones que os turistas, imagine-se, gostam de visitar. Já se destruiu o Rossio, bem podem deitar abaixo Santa Apolónia.
Mas enfim, de cabeça cheia em consequência do passeio em zigezague, lá cheguei a Belém, bem a tempo de ver aquilo que realmente interessa ao povo português, "brugueses" incluídos: a passagem do autocarro da selecção depois da visita ao Palácio da Presidência; um país a caminho da demência escapista - que se salve quem puder.

[Sérgio Lavos]

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