29/01/14

O duelo


Rússia, pátria de Dostoievsky e de Gogol, a nação dos funcionários irascíveis e das paixões exacerbadas - pelo frio e pelo álcool. O carácter sanguíneo da alma russa - não posso falar com certeza sobre isso, mas acredito no que os escritores me vão dizendo - é um dos traços distintivos da literatura produzida, assim como da sua história. Raskolnikov, levado a um extremo de violência por necessidade, ou Ivan, o Terrível, o tirano retratado por Eiseinstein no filme homónimo, partilham características únicas. 

Depois de há uns meses ter sido notícia uma discussão sobre Kant que acabou com um disparo de pistola, hoje voltamos a ter mais uma prova da singularidade da alma russa. Dois homens envolveram-se num combate de ideias que acabou por ganhar uma fisicalidade inesperada, tendo tudo terminado na morte de um deles, à facada. Podemos lamentar o desfecho trágico da peleja, mas certamente temos de admirar que tudo tenha começado por causa da literatura. O eterno combate entre poesia e prosa teve o seu corolário lógico numa casa em Irbit, nos Urais, onde um convidado, antigo professor de literatura, não conteve a paixão na defesa da sua dama, a poesia, e assassinou o seu anfitrião, fervoroso defensor da prosa. Certamente que o álcool - se tudo tiver corrido de acordo com o esperado, terá sido vodka - e o frio extremo daquela região terão contribuído para tão funesto fim, mas a verdade é que a essência da discussão é tão original e irresolúvel que, de certo modo, acaba por ser natural o extremismo das duas posições. Vejamos: quem, na realidade, poderá preferir Tolstoi a Pushkin (que, recorde-se, morreu ao vigésimo nono duelo em que esteve envolvido, imitando Lenski, personagem da sua obra mais conhecida, Eugene Onegin), ou Tcheckov a Mandelstam? Será Dostoievski o escritor que melhor exprime as angústias da existência ou Tsvetaeva consegue ir mais longe na representação de todas as particularidades da condição humana? Será a poesia de Boris Pasternak superior à sua prosa? E Nabokov, o russo que escrevia em inglês, emigrante na América, representará melhor a literatura russa do século XX do que Anna Akhmatova, que lutou contra o regime estalinista sem nunca ter abandonado o país?

Na aparência, estes combates literários parecem fáceis de dirimir: a escolha entre poesia e prosa é absurda, pela sua natureza e pela sua forma. Contudo, não devemos menosprezar as contradições e o fogo da alma humana. No fim de contas, quem poderá afirmar com convicção, além de qualquer dúvida, que a literatura não é mais importante do que a vida?

8 comentários:

Anónimo disse...

Alter-retrato

"Men in cold large territories shouldn´t avoid the pursuit of kindness"

Os russos têm mau vinho:)
(Só uma zurrapa a q chamam vodka)

Joe Strummer

Sérgio Lavos disse...

A alternativa não é uma verdadeira alternativa, parece-me. E os russos podem ter mau vinho, mas têm boas causas. Poesia vs prosa é das melhores possíveis.

Anónimo disse...

Não, não é uma alternativa, só uma piada.

Não sei se têm boas causas...sei q são brutalmente sinceros e parece-me q excessivos. Um contraste com a amenidade e cinismo da cultura mediterrânica.Prefiro esta ultima com todos os contras associados.

Anónimo disse...

O norte-americano Nabokov tem feito mais mal que bem à literatura. Ressentido com as perdas sofridas pela família, nas universidades do seu país levou uma carreira a dizer mal da escrita onde perpassassem ideias, como se a escrita pudesse ser ma apenas por ter ideias.

Uma coisa que epígonos medíocres reproduziram nas newsmagazine norte-americanas e que reles plagiadores transpuseram para as páginas dos indepentes, das leres e doutras latrinas imprensariais, antecâmaras para secretarias de Estado onde se adoece.

Andam aí todos, ululantes que nunca mais dão o nobel ao Roth, como se Roth tivesse trazido novidade sobre Bellow ou como se os seus livros fossem mais que uma ideia de judeu com estudos e de mal com a vida e com o uso que dá ao caralho.

Antónimo

Sérgio Lavos disse...

Confesso que Nabokov conheço mal, só li dois livros dele: "Lolita" e "Fogo pálido". Teria de ter lido mais para poder dizer que é um grande escritor.
Quanto ao Roth, concordo: já li suficientes livros dele para dizer que não é o grande mestre de que toda a gente fala, e sim, pouco ou nada traz em relação a Bellow. Nos contemporâneos vivos, gosto muito mais do senhor que está no cabeçalho do blogue. E gostava de David Foster Wallace. E de Jonathan Franzen.
Mas enfim, a literatura tem muitas vezes pouco a ver com os meios que a promovem e com as modas que decidem quem lê o quê em que altura.

Sérgio Lavos disse...

Caro Joe Strummer:

Eu também prefiro a cultura mediterrânica, clara, os russo têm demasiadas coisas sinistras. Mas, e é esse o meu ponto, coisas sinistras são um dos principais interesses da literatura. E nisso eles são muito bons. Mesmo quando a realidade, regada a vodka, supera a literatura.

Anónimo disse...

De acordo.

Já agora, vi q só citaste clássicos russos. Não existe nada mais recente digno de menção na literatura russa?

Joe Strummer

Sérgio Lavos disse...

Confesso que conheço mal os contemporâneos (são pouco traduzidos). Li há uns tempos outro autor do século XX que achei muito bom, Vassili Grossman, o seu livro sobre o cerco de Leninegrado, "Vida e destino". Há, e depois o Bulgakov, "Margarita e o mestre". Mas estes dois são da primeira metade do século XX. Mais recente não li, nem sequer o Soljenitsin.