16/09/13

Uma história simples

Uma História Simples revela-se, com o tempo, o meu filme preferido de David Lynch. Será aquele em que o realizador decidiu iludir a mão que guia a sua obra e deixar a câmara apanhar um pouco da vida americana, tal como ela é.
Há marcas, sinais de reconhecimento, nesta história de um homem que decide fazer 510 quilómetros através de dois estados do Midwest americano - a paisagem de americana - para visitar o irmão desavindo que está às portas da morte, montado num cortador de relva. O modo como Lynch vai apresentando as figuras que se vão atravessando no caminho de Alvin Straight condensa o mesmo espanto sobre as peculiaridades do Homem comum, do americano vivendo nas pequenas cidades do interior, que existe em Twin Peaks ou Veludo Azul. No entanto, Lynch suspende por momentos o seu olhar voyeurista e sente verdadeira empatia por aquela gente simples. É como se durante o tempo que dura o filme Lunch fizesse aquela viagem com Alvin, ao lado dele e não em panorâmica sobre o tractor viajando a 10 à hora. A estranheza lynchiana aparece a espaços, nos curtíssimos planos entre cenas mostrando chaminés de fábricas abandonadas ou nas intrusões da música de Badalamenti, quando a normalidade do dia a dia do americano médio se torna subitamente estranha. Sobretudo quando Alvin acampa ao largo de um cemitério, a morte em fundo de conversa com um padre, e naquele momento os três tempos coincidem: o passado de Alvin - a matéria de que é feito o seu presente -, o presente contínuo, real a partir do momento em que há um objectivo que o conduz, uma imagem de futuro; e o futuro em si, em fundo e personificado pelo padre. 
Alvin é um fantasma atravessando o interior da América. Um fantasma vindo de um passado remoto e comum a tantos outros, contando histórias de guerra que mudam para sempre um homem. Mas é também um fantasma de um género, o road movie. Em câmara lenta, a caminho de uma redenção final, responde quando lhe perguntam o que fez durante a vida: "andei por todo o lado". Pouco é dito, porque o passado apenas interessa ao presente na medida em que possa ser o cimento de uma identidade. Poderia ser um motoqueiro de Easy Rider, ou um dos noivos sangrentos de Badlands - e que Sissy Spacek apareça também no filme de Lynch não pode ser coincidência, assim como não o são os planos filmados à hora mágica de Malick. 
A um homem, depois de certa idade, tudo pode ser perdoado. Filmar a vida de Alvin Straight com uma tal doçura e pudor é de mestre. A bizarria parece não entrar neste filme. O silêncio entrecortado pelo motor de um corta-relvas. Haverá algo mais bizarro do que a própria realidade?

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