25/01/09

Vicky Cristina Barcelona

Na Visão desta semana, Ana Margarida Carvalho escreve um excelente texto sobre Woody Allen, ou melhor, sobre o modo como devemos gostar do cineasta. Acaba com uma referência ao final de Manhatan, aquela enumeração do narrador (Woody) das coisas que ele adora, apesar de todo o mal que lhe acontece - sendo o mal, naquele caso, a partida da ninfeta Mariel Hemingway em direcção a paragens menos neuróticas (teremos sempre Paris). 

Os filmes de Woody Allen; teremos sempre os filmes de Woody Allen, caso tudo corra mal, cinematograficamente falando. E falando de Vicky Cristina Barcelona  - título que, não se desse o caso de estar eivado de uma desarmante ironia, era um sério concorrente ao pior de sempre - tudo corre quase sempre bem. Direi mesmo que há muito não se via num filme de Woody Allen tanta coisa boa: o grupo de actores é perfeito (o que não acontece sempre); qualquer seriedade da história é boicotada pela ironia da voz-off; temos Scarlett Johansson; e temos Scarlett Johansson deixando-se enredar na teia de Penélope Cruz - sonho molhado do ano. Assim como o seu duplo moreno (piscadela de olho a Hitchcock), uma magnífica Rebecca Hall que rouba quase todas as cenas a Scarlett.

E Barcelona, apesar das más línguas, não se limita a ser postal turístico. A ideia de Allen é mesmo mostrar a sensação de desenraizamento de um turista longe de casa (com várias alfinetadas ao solipsismo norte-americano pelo meio). Vicky e Cristina chegam à cidade, fotografam, falam com as pessoas que encontram, mas o mais próximo que estão de uma verdadeira relação acontece quando Vicky faz amizade com uma expatriada americana. A relação de Cristina com Juan Antonio (Javier Bardem) e Maria Helena (almodovariana Penélope) nunca chega a convencer. Quando por fim Christina volta ao que era, em plano narrado com mar e olhar perdido à mistura (como se Woody Allen ainda continuasse a ver Scarlett como a personagem de Lost in Translation, mas sem pathos e com muito cinismo), o círculo encerra-se, atingindo a perfeição, a sua explicação. Vicky (Rebecca Hall) e Cristina partem, e a primeira é quem perde mais - mas a ameaça de liberdade não é, nunca será, compatível com qualquer aspiração burguesa. O amante latino, a viagem, a tese sobre cultura catalã, caprichos de rica entediada e vagamente neurótica - o actor que mimetiza os tiques de Woody Allen, neste caso, é Rebecca Hall. 

O olhar de Woody Allen é límpido, por baixo da crosta de cinismo do narrador em voz-off: ele foi convidado a filmar em Espanha, "promover" o turismo da região, e decidiu inventar uma história à altura do desafio. O olhar de um estrangeiro de passagem, resignado ao sedutor charme da transitoriedade.

[Sérgio Lavos]

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