06/01/09

A forma da realidade

Chega uma altura em que olhamos para todos os inícios que nunca tiveram continuação, contos inacabados, poemas compostos de medonhos versos, fragmentos incompletos de coisa nenhuma, escolhas de vida interrompidas sem razão.

Somando tudo, chegamos a nada; um texto literário (onde incluo também ensaios e crónicas) não é, claro, a simples soma das suas partes. Apesar dos indícios em contrário, evidente: abrir o Livro do desassossego, de Bernardo Soares, ao acaso não é brincar com o destino; há poucas hipóteses de não depararmos com uma frase genial ou um aforismo significativo; ler diários de gente acima de qualquer suspeita é sempre compensador. Mas a genialidade tem escolhos no caminho; O ofício de viver, de Cesare Pavese, é exemplar: análises da sua própria produção literária seguidas de observações a livros de outros, intercaladas por lamentos narcisistas de natureza sexual que deixariam orgulhoso qualquer adolescente.

Somando tudo, nada fica, não existem obras que mereçam ser chamadas de tal por publicar. O livro chega às mãos do leitor como um objecto definitivo; o processo de escrita é tão moroso e dramático como o da Natureza criando montanhas ou glaciares. Escrever fragmentos é destruir momentos preciosos de vida, o que obriga à grande reflexão: se não tiver continuidade, vale a pena o esforço?

Por isso, um diário é sempre uma traição à literatura. Qualquer escritor que se dedique ao registo minucioso dos seus dias, arrisca-se a cair na pequena vaidade, ou pior, na redundância. André Gide deixou à posteridade quarenta anos de vida em letra de forma, que no fundo nada acrescentaram à sua obra. E saber que os diários de Kafka foram despojadas de qualquer marca humana — as imagens eróticas que recentemente foi revelado terem sido encontradas nos manuscritos deixados pelo escritor checo — apenas confirmam a suspeita: a irrelevância de um diário apenas interessa a estudiosos monográficos de um autor ou a incuráveis curiosos; esqueçam a literatura.

E assim, chegamos à idade plena da Web 2.0. Aqui estamos, publicando fragmentos diarísticos, pedaços de criatividade mais ou menos sofrível, pensamentos para o mundo ler — mesmo que não queira. A internet, esse círculo dantesco de despojados do conhecimento real, deixou que blogues, fotoblogues, fóruns tomassem conta da vida de muitos que deveriam confiar os seus escritos ao morno conforto da gaveta. Estamos no século XXI e podemos usufruir, quase em tempo real, das confissões de milhões de aspirantes a Gide e a Kafka. George Orwell, blogger involuntário, daria a sua permissão para o serviço que estão a prestar aos seus diários? A luta é constante: quem publica na blogosfera pretende o reconhecimento da importância desta actividade, e converter escritores mortos aos blogues não é um pecado que não possa ser perdoado.

Mas podemos apontar o dedo. Os diários de Orwell, enquanto foram sendo escritos, aspiravam a nada menos que à clandestinidade, no tempo mais próximo. A escrita diarística, mesmo quando cultivada por escritores publicados, não tem como objectivo imediato a publicação. E quando esta acontece, é resultado ou da posterior notoriedade do escritor, ou das incontroláveis maquinações do ego do autor, ou, quase sempre, da doença incurável que é a vida — os diários póstumos servem muita gente, desde os editores famintos de novidades do mundo dos mortos até às viúvas inconsoláveis em consequência do fim abrupto de um rendimento fixo.

Certamente que a rapidez e a facilidade que a escrita bloguística permite são fortes incentivos ao facilitismo. Mas a questão é esta: que semelhanças existem entre o acto de manter um blogue e escrever um diário privado? À partida, lamento, poucas, apesar da origem da palavra blogue (de weblog, diário da web). A verdade, que à partida já não é um valor absoluto, ainda é menos quando falamos de um blogue. O simulacro de real, que no fundo a internet é, alberga outra simulações: de literatura, sobretudo de vida. O que leva alguém a partilhar com o mundo inteiro o seu quotidiano, quando o poderia esconder num diário secreto? As motivações contam pouco, mas teremos sempre de conviver com a diferença, em termos de forma, entre um blogue confessional e um diário. O cadeado e a chave que as crianças usam são precisamente os objectos que o blogger dispensa ao clicar no “publish post”.

Entrar no jogo da realidade, escrever falando dos outros como se falássemos de nós próprios; falar de nós próprios como se os outros não estivessem a ler. Introduzir no circuito autor — leitor um terceiro elemento: a passagem do tempo. Um diário, quando publicado, segue a seta do tempo de forma natural, do passado ao presente; um blogue guarda o passado em arquivos que ninguém consulta e vive do presente do mais recente post, invertendo o avanço do tempo. A internet acelerou o tempo, é facto aceite, e sobretudo apagou o passado, transformando esse tempo numa amálgama indestrinçável de acontecimentos. Quando fazemos uma pesquisa no Google sobre determinado assunto, deparamos com páginas publicadas em alturas diferentes, muitas vezes sem uma referância directa à data original. A Wikipedia, na sua febre de constante actualização, arrisca-se a ter permanentemente informações erradas ou contraditórias; a fixação da verdade é impossível.

A realidade é, por natureza, fragmentada. A literatura é essencial para o ser humano porque sistematiza a realidade, oferece-lhe um fio condutor, uma continuidade, um sentido. Ao contrário da vida, que muitas vezes parece não ter uma finalidade, um romance caminha para um fim, e o Deus que o escreve (o autor) não é cruel como aquele que escreve o Universo — as personagens, quando nascem, sabem exactamente como irão acabar; uma obra de ficção é uma parcela de realidade atemporal, sem o peso da existência, e mesmo assim é o que mais se aproxima de uma explicação para o mundo (esqueçamos a racionalidade absoluta da filosofia). A consistência de um texto literário, a obrigatória unidade de tempo e espaço (Aristóteles ainda tem razão), é subvertida pela escrita diarística. O diário e o blogue imitam a forma da vida e, por isso, são menos perfeitos que um conto ou um romance. Até quando irá resistir essa forma arcaica de transcender a realidade, a literatura?

Sejamos optimistas: algum dia se publicará em blogues uma Odisseia que sublime o género humano. Assim acredito.

(Texto publicado antes na revista Malagueta)

[Sérgio Lavos]

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