03/11/07

Dylan/Blanchett


Todd Haynes, de quem vi dois filmes bons e de quem não vi mais dois que também serão bons - sendo os bons que vi Safe e Velvet Goldmine e os que não vi Poison e Far From Heaven -, decidiu homenagear Bob Dylan, em I'm Not There. Há imagens que correm no youtube, o filme estreou em Veneza, parece-me, e o buzz já soa há muito tempo. O hype começou com o próprio Dylan, é claro, quando caucionou a abordagem de Haynes. E continuou pela escolha de vários acores para desempenhar os vários Dylans, incluindo Cate Blanchett, a actriz com o rácio beleza/inteligência/talento mais alto da actualidade.
Teríamos, falando de Haynes, de passar pelo camp. Ele fez o mesmo em Velvet Goldmine, é esse o seu programa - mais acentuadamente do que Gus van Sant, por exemplo, que se limita a filmar adolescentes de modo mais ou menso discreto - em Elephant como agora em Paranoid Park. Senti-me ligeiramente defraudado quando, a meio de um filme quase intocável, Last Days, há uma sugestão qualquer de homossexualidade da personagem. Não é que talvez não se justificasse - o tom crístico do filme, a figura andrógina do pseudo-Kurt Cobain poderiam levar facilmente a esta alusão. Mas a verdade é que, ao derivar para esse aspecto, e sabendo nós quem van Sant é, a obra perde alguma credibilidade.
Van Sant e, no caso que me interessa, Haynes, passeiam-se por um mainstream marginal, se assim se pode dizer, repisando temas fortes e não deixando de deitar uma pitada da sua própria agenda nas obras que produzem.
Mas Bob Dylan talvez justifique o ângulo enviesado - dúvido que seja original. As faces de Dylan, as múltiplas personagens que constroem o nome - Bob Dylan - são tão falsas como o pseudónimo que arranjou para usar em vez do mais vulgar Robert Zimmerman. O documentário de Martin Scorcese, No Direction Home (o melhor filme dele, já o disse e repito-o) desenvolve-se formalmente de acordo com todas as regras do género - existem entrevistas, imagens de arquivo, perguntas a Dylan. Mas o resultado final vai muito mais longe que a soma das partes. A montagem, entrecortando episódios polémicos com as justificações do músico, colando em sequência as críticas dos detractores e as canções mais emblemáticas, serve de bússola para o olhar do cineasta. As palavras das figuras entrevistadas estão constantemente a ser dinamitadas pela força das imagens, das músicas. A trupe folk denuncia Dylan pela traição, por se ter vendido ao capitalismo; Dylan responde cantando, a afirmação de uma serena fúria de liberdade - e a liberdade mais pura, a do indivíduo perante os seus próprios desejos e visão do mundo; sem compromissos.
O que há a destacar, enquanto o filme de Haynes não estreia, é então a espantosa (e surpreendente) semelhança física entre Blanchett e Dylan. Daquilo que tenho lido, é mesmo o actor que mais se aproxima do fantasma Dylan. Não do verdadeiro - nunca saberemos quem é - mas da imagem que o mundo tem dele. O documentário de Scorcese prova duas coisas muito simples: é impossível sabermos realmente quem Dylan é (no limite, qualquer aproximação a qualquer um de nós é sempre parcial, e portanto, falsa); e, que importa, a realidade da vida de Dylan é apenas ficção, não poderia ser de outra maneira. Não é muito, para um cineasta - a dança entre realidade e ficção deve ser a principal preocupação que Scorcese deve ter, quer se movimente num registo ou no outro. Mas, para quem vê, saber que chegamos ao fim do documentário conhecendo ainda menos Dylan do que conhecíamos ao início, pode ser frustrante. Se quisermos saber mesmo quem é Dylan.
Eu não quero. Prefiro construir uma imagem mais ou menos verdadeira, contento-me com a ficção - afinal, tudo o que interessa; a realidade é demasiado escorregadia para que se deixe tocar.

[Sérgio Lavos]

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