20/07/07

Literatura e fantasma

O mito do escritor recluso não interessa apenas a outros escritores ou a leitores com pretensões de escrita. Compreende-se, de resto, que os primeiros se fascinem com o mecanismo que o acto criativo envolve - sendo o acto de escrita e de publicação na essência uma acto de exposição, o que leva alguns escritores a não se mostrarem, a recusarem algumas etapas do processo de publicação, a entrevista, a sessão de autógrafos, o "aparecer" de maneira a vender o livro? Parece evidente, contudo, que o acto de não aparecer também possa ser uma manobra de marketing - para além de uma extraordinária ego-trip. A criação de uma persona não é um aspecto a menosprezar no escritor. Há alguma criatividade no desaparecimento de J. D. Salinger, e há bastante mistificação no jogo do esconde-esconde de Thomas Pynchon. Mas a coragem também desempenha o seu papel, até porque muitas vezes o escritor sofre de uma insuportável lucidez, que lhe permite vislumbrar a medida da sua importância, não só no conjunto de todos os escritores como, principalmente, no mundo. Um escritor pode ser uma de duas coisas: ou um pavão mediático que quase sempre vale menos do que aquilo que as suas penas apregoam, ou um verdadeiro criador, que pode ou não sujeitar-se ao exercício de existir para além dos livros que escreve. Cormac McCarthy, há bem pouco tempo, emergiu da condição de figura maldita e foi entrevistado por Oprah Winfrey, o que de modo nenhuma desvaloriza o conjunto da sua obra ou em particular o livro que publicitava. Quanto muito, destruiu um pouco o mito: e o mito muitas vezes vale mais do que a obra em si. Paul Auster é outro exemplo recente deste ensaio com o vazio, apesar de ninguém o ter levado a sério: disse numa entrevista que nada mais tinha a dizer ao mundo. Até ao próximo livro (ou filme), acreditamos.
O problema é: a quanto de encenação é que se deve a admiração que um leitor pode ter por um escritor? Desaparecer é sempre aparecer num lugar diferente: quando imaginamos a vida de Salinger depois da sua decisão, estamos a criar uma história nova. Prescindimos de notícias do mundo dos mortos - a nossa história será talvez mais interessante do que qualquer mudança na realidade. Fala-se de mitos por muito menos do que isto.

[Sérgio Lavos]

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