16/08/06

O holocausto

Quando um jornal faz um reparo a um artigo de opinião - que, para cúmulo, é uma resposta a outro artigo de opinião -, chamando a atenção para um pormenor relacionado com o uso de maiúsculas, será exagerado considerar o caso um abuso de poder da direcção. Mas algumas palavras carregam uma carga emocional que não desculpa a intervenção. Será Holocausto ou holocausto ou, como já vi escrito, "holocausto"? A chamada de atenção da redacção do Público não serve outra coisa senão a defesa de uma tendência, ténue, da sua direcção editorial. A opinião de uns colaboradores conta mais do que a de outros - para mais, escrevendo Isabel do Carmo excepcionalmente para o jornal, no âmbito do (julgo eu) pluralismo que se forjou à volta da intervenção do exército israelita no Líbano.
Esquecendo a grafia com aspas, existirá ou não uma gradação de sentido na passagem da caixa alta para a caixa baixa no termo "holocausto"? Não seria necessário repetir que a resposta será irrelevante. O que Isabel do Carmo pretendia ao grafar a palavra em caixa baixa não deve ser preocupação da redacção do jornal, apenas dos leitores. Matéria para o provedor do jornal tratar.
Mas tudo pode servir de arma de arremesso. O que conta não é a opinião de Isabel do Carmo sobre o conflito, mas sim a nota de rodapé relevando um detalhe que, de outro modo, passaria despercebido à maioria. Quase-polémica, como lhe chama Carlos Leone, ou nem isso, um sintoma apenas de modo de travar o "combate cultural" publicitado pela nova direita que emergiu nos últimos quinze anos. Que, coincidência ou não, cheira a velha esquerda reciclada. O politicamente incorrecto, movimento beto de rebeldia controlada, é um derivado bolorento de uma juventude militante em movimentos de extrema-esquerda, agora tão energicamente repudiados. Mas o moralismo das antigas companhias não desapareceu - é o que se chama crescer. A estes antigos esquerdistas junta-se uma geração que aprendeu no Independente a mal-comportar-se de forma controlada, à maneira de um Miguel Esteves Cardoso com menos tino.
É uma atitude estética, e isso é notável. Quem se importa com os velhos barbudos que aparecem nas fotografias de cravo na mão e punho fechado? Ou com os jovens barricados nas ruas de Paris clamando por revoluções de pavio curto? Eurico de Barros, na sua crítica ao recém-estreado filme de Phillipe Garrel (sem link), Os Amantes Regulares, mostra como se faz. Fazer crítica com ideologia, cartilha estalinista bem-estudada. De invejar o mais emperdenido patrulheiro (outro termo acarinhado pela nova direita betinha) da esquerda saudosista. Será que viu o filme, sequer? Que interessa que cheire a mofo do Maio de 68, se for bem feito? Uma pose, acima de tudo, irritante pelo chico-espertismo que denota. O armar ao pingarelho no seu esplendor moderno. (Sobre a barbaridade do crítico, ler também este texto de Alexandre Andrade).
Admirável mundo velho.

[SL]

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