21/05/06

Rule Britannia

Uma honrada linhagem de vilões ingleses tem assombrado o cinema americano desde a sua fundação, e terá de haver alguém que me convença que o caso nada tem que ver com a sublimação do ego edipiana que a grande nação yankee vem ensaiando desde o seu nascimento. Um caso difícil, para todos os efeitos; já lá vão trezentos anos e, no fim de contas, George Washington continua a ser um inglês descontente com o Rei, liderando uma revolta de colonos contra a Coroa Britânica. Declaração de Independência? Carta dos Direitos? Pequenos acidentes da História. Se o teimoso parlamento inglês tivesse baixado os impostos sobre o chá que entrava na colónia, por que ruas se arrastava agora o orgulho pátrio americano? O rancor é, portanto, ancestral. E a arte, já se sabe, quando não se supera a si própria, imita a vida.
Descontando períodos específicos da História da América em que outros tomaram o lugar de mau da fita - nazis, comunistas, franceses - quando os argumentistas de Hollywood precisam de um vilão, charmoso e inteligente, carne para canhão no eufórico fogo-de-artifício final das grandes produções, contratam um britânico. Esqueçam Laurence Olivier. Nas adaptações de Shakeaspeare, são todos ingleses. Pensem em grandes psicopatas, desequilibrados, viciosos, gente ruim com uma dicção perfeita: britânicos. O filme que inaugurou um género, "Psico"; o vilão, inglês, o alucinado Anthony Perkins. O filme que culminou o género, "O Silêncio dos Inocentes"; outro Anthony, este Hopkins, frio, calculista, diabolicamente inteligente. As quase-paródias, a série "Die Hard", com dois vilões marcantes para o cinema xunga americano: Alan Rickman no primeiro e Jeremy Irons no terceiro. O defeito físico está quase sempre presente. Irons gageja, Hopkins é um louco para além de qualquer salvação usando um açaime que limita o seu desejo de carne humana. A prótese substitui o órgão defeituoso. Não é fundamental que as personagens sejam inglesas, basta que os actores o sejam. Rickman e Irons interpretam alemães e Hannibal é apenas britânico no filme; no livro, não. A América esquece o viveiro de loucura em que o seu território se especializou, a produção em série de serial-killers que se tornou um ex-libris distorcido do american way of life, e culpa os pais ancestrais por todo o Mal que a atingiu. Claro que há Robert Mitchum em "A Noite do Caçador" ou Robert de Niro em "O Cabo do Medo", mas repare-se na diferença. Quase sempre o vilão americano é um pobre atormentado com o seu passado, anti-herói apenas com uma redenção em vista: a morte, de preferência imolado pelos heróis acidentais e inocentes arrastados na espiral da violência fílmica. O inglês é um vilão sem passado, saco de pancada do voluntarioso herói americano, quase sempre um grunho G.I. Joe derrotando no final o sofisticado adversário com alguma esperteza saloia e muita sorte à mistura; no fundo, o ideal do self-made man aplicado ao mais básico entretenimento. Pense-se em "Senhor dos Anéis", por exemplo: quase todos ingleses, menos o rei que se torna o salvador do mundo: Aragorn. Gandalf, claro, é inglês. Os hobbits, também. Mas quem lidera as tropas é o herói com sotaque americano. A vocação militarista da América brilha no esplendor do celulóide. E o vilão, o very british Christopher Lee, derrotado e humilhado, sujeito à escravatura em vez de lhe ter sido proporcionado o destino de Sauron, a destruição gloriosa.
Nada como o velho maniqueísmo para separar as águas. Com o Atlântico pelo meio, a colónia e a metrópole continuam a perpetuar o seu jogo de dominação e conquista. O fluxo mudou, agora vem do lado de lá do oceano. Aliados? Apenas quando dois países estão ao mesmo nível. E quem subjuga quem, neste jogo perigoso das metáforas?

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