25/04/13

O plano

Se toda a vida te fosse oferecida sabendo tu de cor o que iria acontecer, aceitarias? Aceitarias saber que o que viverias está escrito, que ao nascimento se seguirá a infância, e a esta a juventude, e depois o lento declínio para a morte? Sabendo que cada alegria é calada pelo apaziguamento, que precede o tédio de nada relevante acontecer, a que se segue a angústia da alegria não voltar, depois o medo, e depois a alegria mais atenuada, sabendo que o ciclo irá repetir-se, e que nada do que prende à terra ou do que se eleva do chão dura mais do que um instante? E que o longo deserto que nos separa do próximo momento nos seca a boca e exaure o coração? E que, no deserto por onde caminhamos sem saber quando dele iremos sair, mais do que a areia onde vamos enterrando os pés, corremos o risco de apanhar áreas movediças, e quando dermos por elas poderá ser demasiado tarde para nos salvarmos? Enterrados, presos, na areia que nos engole, a longa lengalenga dos dias da qual escapamos, ao longe na fundura das colinas aguarda o que não conhecemos, o que não podemos conhecer. O lento declínio para a morte. Caminhamos de regresso a um início familiar, restabelecemos o percurso a partir dos sinais que fomos deixando para trás e enredados vamos recolhendo panos, perfumes e memórias para que nos atavios da despedida encontremos o derradeiro calor a que temos direito. Se a vida te fosse oferecida sabendo que tudo irá acontecer de modo contido e planeado, cada desmesura prevista e cada desvio consentido, aceitarias viver? Sabendo tu que não sabes nada de nada desse rosto branco que te canta e desses brandos braços que te salvam. A medo e a fogo te derrotam. Não aceites o plano.

22/04/13

Notas para uma crise (1)

Não posso dizer que nunca tenha pensado em estar desempregado. Mil e trezentos milhões num país de dez milhões é muito, demasiado. Podia calhar a mim, como calhou. Dez dias e uma visita ao Instituto de Emprego e Formação Profissional depois, tenho tudo para poder embarcar no maravilhoso mundo do empreendedorismo. Ou então emigrar, como a maioria das pessoas com vontade e capacidade está a fazer. O país desperdiça os seus mais valiosos recursos, blá blá blá, e aqui estamos. Claro que o país não desperdiça nada; quem nos desperdiça é quem nos governa, e desperdiça-nos porque na realidade não nos governa, mas isso é outra história. Quando tudo acabar, estaremos todos muito mais felizes - menos os que morreram pelo caminho.
Na sexta-feira, a tal visita. Esperava mais gente, confesso. Meia dúzia de pessoas, mais um grupo alargado de desempregados que foram chamados para um acção de formação. A chamada parecia a de uma parada militar ou de uma revista na prisão. Uma senha pedida a um segurança de uma empresa privada que me pareceu claramente estar ocupado em funções - distribuir senhas - que não deveriam ser suas. Os serviços públicos estão com falta de pessoal - Portugal é mesmo o país da UE que mais funcionários públicos despediu, desde 2011, à frente da Grécia e da Irlanda. Não interessa. O Governo quer despedir mais 50, 100 mil, o céu é o limite. Que se lixe. 
Esperei pouco tempo e lá me chamaram. O funcionário foi fazendo as perguntas do questionário - sim, estive empregado na empresa doze anos; sim, rescindi contrato porque tinha quatro meses de salário em atraso; sim, estou disposto a abdicar de parte do que vou receber de subsídio se tiver uma proposta de trabalho minimamente aceitável. E sim, prometo apresentar-me quinzenalmente na junta de freguesia, como se fosse um arguido com pulseira electrónica. Desempregado está suficientemente próximo da situação de arguido, somos todos suspeitos aos olhos do poder político. Os desempregados de longa duração, sem subsídio e com RSI, terão de fazer trabalho escravo para justificarem os 80 euros que recebem do Estado. É justo. 
Um mundo de oportunidades espera-me, se calhar não estou a ver as coisas bem. Voltei para casa a pé - vou aproveitar o desemprego para finalmente fazer o exercício físico que ando a adiar há tantos anos. O que vem por bem compensará o que perdi. Não posso bater punho porque não sou um perfeito idiota; ou provavelmente sou e ainda não me dei conta disso. Os cretinos tomaram conta do navio porque nós permitimos, vamos permitindo. Há maneiras piores de um país apodrecer.

20/04/13

Chet

Até sempre

O dealbar arrastado da madrugada
traz consigo os escolhos da noite,
a festa, o movimento das ruas
desaparecendo na corrente,
o regresso dos mortos, dos cansados da vida,
da gente para quem a alegria
se fixou naquele ponto distante
do passado a que apenas traidores
conseguem aceder.

O incêndio da Rua do Alecrim
lavra no seu derradeiro fôlego.
Grupos esparsos de amigos
que se abraçam, dizendo adeus;
táxis passando e recolhendo quem
desiste; dois rapazes e uma rapariga
abrandam o passo na penitência da bebedeira,
arriscando beijos mais rápidos do que o amor
permite.

Vozes ao longe, no eco das ruas,
ensaiam despedidas no torvelinho musical
que ainda dança nos ouvidos.
Um grupo de eslavos oferece a quem passa
a boca de uma garrafa, gritando impropérios
ou versos – não sei – em russo.

A reseda cheira à agua,
amor à maçã rescende
mas agora já sabemos –
só o sangue cheira a sangue.

Um fogo deflagra
nos dedos que oferecem o esquecimento.
Aquele grupo aceita, os amigos
bebem o sangue dos estrangeiros
que fugiram de Babel e ficam por ali,
trocando cigarros e palavras que serão
sempre justas e finais, as mais belas.

Ao lado de Eça, alguém vomita. Ninguém nota.
A vida passa à margem de quem se perdeu,
o turista a caminho do hotel
ou o velho que paga à ultima puta da
Praça de São Paulo.

Demasiado tarde para arrependimentos.
Estão à vista do rio aceso pela cidade
e enquanto esperam pelo primeiro autocarro
da manhã, repetem beijos e despedidas.

Há sempre uma casa à espera,
louça suja do jantar,
o cinzeiro cheio, a transbordar.

Até sempre.

18/04/13

Um reconhecimento

É uma ideia recorrente: se um dia pudesse encontrar-me com quem fui aos dezassete anos, reconhecer-me-ia? O mesmo rosto, menos envelhecido, sem óculos ainda. Seria mais alegre, mais aberto à vida. Não teria a amargura que por vezes não consigo disfarçar. Não sei se as sombras já rondavam, se apenas começaram a aproximar-se depois. As dúvidas e as preocupações eram outras. Mas não as recordo. Não sei quem era aos dezassete anos. Se agora me reencontrasse, não teria muito interesse em estabelecer uma conversa que ultrapassasse as banalidades que se trocam com estranhos. Há quem diga que se ganha, com o correr dos anos; mas não sei. Talvez duvide. O que se perde não é substituído pelo que se conquista ou se adquire. Não se trata de decadência, nem de medo. Mas de um reconhecimento, vagamente melancólico. O pior é que não tenho a certeza de quem era nessa idade. Sei que aconteceu, mas não consigo aceder ao que fui, como se o que fui tivesse guardado num ficheiro protegido do disco rígido. Não vale a pena repassar a ideia. Mas ela dança no meu espírito, como um demónio inquieto. Terei de viver com isso.

22 anos

(Daqui.)

16/04/13

Canto nómada

Não há como fugir: de cada vez que leio Bruce Chatwin lembro-me da sua técnica de escrita, relatada na biografia escrita por Nicholas Shakespeare (um tijolo com centenas de páginas pelo qual passei devoradoramente há alguns temporadas): pegar em vários livros de autores clássicos, abrir páginas ao calhas e copiar frases. Não sei se este método era apenas usado nos romances - que não li - ou também nos livros de viagem. Nestes, há aquela impressão de realidade que imprime em nós a sensação de que qualquer frase que viesse de outro livro não faria ali sentido. Aquelas frases, aquelas palavras, aquele caos que vai saltando de citações directas para os diálogos esquivos trocados com as personagens - as pessoas que ele vai conhecendo deixaram de existir na realidade quando ele as tornou figuras dos seus livros -, e daí para relatos poéticos, de uma poesia sem rodriguinhos, seca e certeira, irónica quanto baste. Tudo aquilo misturado não pode ter como origem a reles cópia. Talvez metáforas, imagens, figuras de estilo. Não sei. Mas não a essência da sua literatura, verdadeira como apenas a escrita de um poseur consegue ser.
Reli então Canto Nómada e descobri muito que me tinha passado ao lado na primeira leitura, ensaiada vai para mais de quinze anos. Estava lá antes, claro, tudo o que agora me pareceu novo. Mas também é evidente que eu há quinze anos não era o mesmo. À superfície: talvez julgue saber hoje muito mais do que antes, sobretudo de algumas das matérias científicas a que Chatwin recorre para defender a sua tese - da paleontologia, biologia, evolução do Homem; e em profundidade, isto é, em apneia: ainda sou suficientemente ingénuo para gostar de muito, quase tudo, mas os truques são tão visíveis como uma lua cheia num céu limpo - para quem não está a olhar para o outro lado, claro. 
A viagem pela Austrália, tentando perceber o que é o canto dos aborígenes, o canto da terra, o canto que é um mapa que conduz os povos através do seu continente, é uma jornada em perda de si próprio, mais do que descoberta. Chatwin vai perdendo a pele que usa em sociedade. Mas nunca consegue totalmente. Quem o guia é um ocidental; e os aborígenes parecem estar sempre além da compreensão. Como Chatwin, julgamos entender a sua cultura, mas a cada frase escapa-se. Não há final feliz, revelação, epifania. Apenas um reconhecimento - implícito - de que nenhum viajante poderá conhecer verdadeiramente as gentes que vai encontrando. Mas o fascínio é este: pensar que na diferença dos outros podemos encontrar o que perdemos.

14/04/13

Warsazwa

Passagens para jardins
onde nenhuma planta cresce,
onde encontramos a soma
daquilo que nos foi pedido
reduzida a uma pilha de ensaios e mentiras.

Se nos dispomos a perder,
quando partimos,
que seja na solidão dos iludidos,
na sombra que nos retiram
e na memória do que não saberemos guardar.
Se oferecemos os despojos
a braços mais felizes do que sonhámos ser,
percorramos no silêncio a contrição
e a recusa, a derrota a que entregamos
o sangue e o desejo, o sopro
que anima a carne, o amor.

A nosso lado caminha o animal possível.
Vida que não lhe pulsa nas veias,
luz que não lhe sobe aos olhos,
fogo apagado pelo vento frio do tempo.

Animal sabendo que na vida vai morrer.