28/09/08

Wall-E (2)


A técnica, de filme para filme, aprimora-se. Tem sido assim com a Pixar, desde Toy Story. Felizmente, cinema não é só técnica, e a atenção que o guião dos filmes de animação digital tem tido é o que tem permitido a estes filmes serem mais do que estéril fogo-de-artifício. A concorrência da Dreamworks também tem sido essencial - de filme para filme, a Pixar sente a obrigação de provar que ainda é melhor; daí, a sequência que tem sido prosseguida em contexto de escalada de qualidade: Toy Story - À Procura de Nemo - Wall-E; com Monstros pelo meio. Os dois últimos da cadeia são obra de Andrew Stanton, o que diz muito sobre o seu contributo para um género que começou com Walt Disney (a referência, é claro, não incorre em qualquer displicência ou exagero). 

Wall-E, por tudo e mais alguma coisa, deverá ter atingido um ponto difícil de superar por quem se segue. O segredo, parece-me, é o filme ter sido feito com todos os meios digitais disponíveis, e simultaneamente passar uma mensagem retro a quem se sente ultrapassado pelas novas gerações. É um filme digital com um espírito analógico; e vamos ser optimistas: não há qualquer contradição ou cinismo nas intenções de Stanton, ele é tão romântico como o tradicionalista Miyazaki. Não é novidade, Carros já tinha ensaiado esta aproximação metaficcional; mais é mais eficaz do que nunca, como se a velocidade do tempo presente fosse bruscamente desacelerada por um travão divino.

E falamos de lentidão, do seu elogio, de coisas antigas e do fétichismo que as envolve. Desde o robô Wall-E, modelo ultrapassado, ternurosamente ferrugento, até à revolta dos robôs high-tech defeituosos - a diferença como elemento de progresso -, passando pelas imagens analógicas de Hello, Dolly digitalmente manipuladas por um gadget do robô, o coração do filme é uma homenagem às coisas antigas, ultrapassadas, a um modo de vida em vias de extinção, a caminho da ruína. Que tudo isto seja mostrado recorrendo a tecnologias de animação avançadas é uma ironia que enriquece ainda mais o filme.

(continua)

[Sérgio Lavos]

27/09/08

Paul Newman (1925-2008)


Não é quem ganha - ninguém ganha; mas quem vai a jogo.

[Sérgio Lavos]

Palin e os homens

O que me parece ser o texto mais sensato sobre Sarah Palin, o único que coloca os pontos nos i's. 
Não sei até que ponto Luís Rainha não terá criado anticorpos no blogue que o acolhe, mas é verdade o que ele afirma: a campanha que alguns blogues de esquerda têm feito desde que foi anunciado o nome da senhora para vice de McCain cheira a enxofre, roçando o puro marialvismo, à moda de Miguel Sousa Tavares. 
A reacção de alguma esquerda não é um acidente; é um sintoma. É como o rancor contra as mulheres muçulmanas que decidem usar um lenço nos cabelos ou aceitam a poligamia. O progresso, muitas vezes, tem de ultrapassar questões tão incómodas como a individualidade ou a liberdade pessoal. Sarah Palin, mulher independente que conseguiu chegar a um cargo de poder num estado dominado por uma cultura ancestral predominantemente masculina - a caça, a pesca, a luta contra a natureza agreste - deveria ser um exemplo para a condição feminina. Contudo, Camile Paglia foi a única feminista conhecida que se pronunciou em favor da escolha da candidata, e fê-lo não por apoiar as suas ideias, mas sim pelo simbolismo de ter uma mulher com valores conservadores como provável vice-presidente. Por isso, será para mim estranha a série interminável de posts publicados por Palmira Silva no Cinco Dias sobre Palin. Eu sei que Palmira, como cientista, detesta por princípio qualquer criacionista - e faz bem. Mas julgo que um limite racional deverá ter sido ultrapassado - e não sei se a cientista se apercebeu disso.
E diga-se que todos os valores que Palin defende estão no espectro oposto daquilo que eu defendo. No entanto, lutaria de bom grado pelo direito de ela poder concorrer a um cargo político sem ser apelidada de "dona-de-casa do Alasca". Felizmente, a frase de Miguel Sousa Tavares vale o que vale, nada, tanto como o respeito que ele deve merecer: nenhum.

[Sérgio Lavos]

Wall-E


A infância é o período da nossa vida em que as coisas complexas parecem mais simples. Somos adultos, agora, mas haverá sempre perguntas para as quais não haverá resposta, e é curioso que tenha havido um tempo em que essa resposta existia.

Envelhecemos, complicamos. E erramos. Para que serve a arte? Nem sempre para divertir ou provocar o espanto; cada vez mais, a arte serve de porta de entrada a realidades que preferíamos não enfrentar. A arte moderna, sobretudo, especializou-se em copiar os nossos dias, esqueceu o seu propósito inicial: transcendê-los. Vamos a um filme para ver pessoas sofrer, como se o nosso sofrimento não bastasse. E não me falem da tragédia clássica: o ciúme de Otelo é insuperável; a culpa de Édipo é intransponível; o amor de Romeu e Julieta é sublime, divino. O maravilhoso deixou de ser uma categoria para grande parte dos criadores modernos. Em consequência disto, os critérios estéticos mudaram: relevantes são agora as intermináveis conversas sobre nada de Beckett em desfavor do mundo criado por Tolkien. Nada contra, apesar de não se perceber porque não serão as duas obras manifestações do mesmo espírito (e perdoem-me os propósitos românticos).

E a infância, que tem a ver com isto? É verdade que a pós-modernidade arrancou a sério (Lawrence Sterne foi um avô excêntrico e extemporâneo) com duas obras que teimam em ser consideradas como de literatura infantil ou juvenil: Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho. Mas o que se seguiu tem sido uma tentativa séria de manter as crianças no seu mundo, encarando-as como adultos em ponto pequeno ou pior, adultos imperfeitos. Apesar de todos os psicólogos infantis que aparecem na televisão a falar com voz de algodão doce, como se as crianças sofressem de sensibilidade auditiva extrema, nunca como agora elas tiveram tão pouca atenção. Todo o conhecimento pode ser adquirido pela literatura, mas já ninguém conta histórias às crianças sem receio de provocar medo ou ferir susceptibilidades; as fábulas, que, mais do que ensinar uma moral, estimulam a imaginação da criança, habituando-a a relacionar acontecimentos e a colocar-se no lugar dos outros, são um género em vias de extinção. E a praga dos contos tradicionais politicamente correctos ainda não terminou.

E o que nos pode salvar o futuro? Os adultos Peter Pan que ainda sonham com tempos de outra época, os criadores conservadores que, ainda que com outros meios, continuam a efabular o mundo. O cinema, a animação, é o meio; por isso mesmo, um filme para crianças sofrerá sempre o preconceito de todos os adultos, e a injustiça tantas vezes é radical neste aspecto. Se as longas-metragens de Miyazaki, por exemplo, são obras de arte absolutas, alguns filmes produzidos na era digital conseguem ser únicos na forma como conciliam a apetência de um público abrangente e o gosto crítico; são as obras-primas que nunca irão ser consideradas como tal, apenas por pudor dos adultos que estabelecem o cânone - mas esperem até as crianças que agora se maravilham com filmes como Shrek, Toy Story, Finding Nemo ou Wall-E crescerem. O mundo será delas. E será melhor.

(Continua)

[Sérgio Lavos]

26/09/08

Boas notícias

Um trocadilho capaz de rebater a frase chave repetida por Tom Cruise em Magnolia, Tame the Kant, apenas podia ser airoso, inteligente e feminino; e as três condições são mutuamente inclusivas; claro.
A Alexandra regressou, com um texto sobre Primeiro Amor, de Turguénev, que estranhamente evoca Wall-E e a sua história de amor pueril e primitiva. As condições do amor são iguais, na grande literatura como no cinema de Hollywood? Se não fosse um filme de animação digital, seria uma obra-prima (como 2001 - Odisseia no Espaço)?
E esta semana, o melhor texto lido nos blogues não é sobre a crise financeira, Sarah Palin ou casamento de pessoas do mesmo sexo. Através do vidro duplo, espreita esta entrevista de Damian Hirst ao Guardian, na qual ele fala sobre Francis Bacon. Uma preciosidade.

[Sérgio Lavos]

Desvios


[Sérgio Lavos]

22/09/08

Deaf Sentence


Depois da aproximação ficcional à vida de Henry James em Autor, Autor, o regresso de David Lodge aos romances é um reconhecimento de temas e obsessões antigos. Não que Autor, Autor não fizesse sentido em Lodge, tendo em conta o seu percurso académico e a obra ensaística, sempre empenhados em descobrir os caminhos que se foram desbravando entre modernidade e pós-modernidade; Henry James acaba por ser um dos escritores que fabricaram a ponte entre dois tempos, com o seu apurado estilo de pendor classicista e a sua atenção a temas contemporâneos, muitas vezes polémicos, que por uma ou outra razão continuam a ser actuais.

Em Deaf Sentence, acompanhamos um período de vários meses na vida de Desmond Bates, professor de Linguística a gozar os prazeres da reforma, académico conservador sofrendo as contrariedades da velhice: o fantasma da impotência sexual, a decadência do corpo, a surdez. A velhice, em Lodge, apenas poderia ser retratada como uma farsa, nunca como tragédia. Desmond é surdo, e a situação apenas pode piorar. O seu pai, também surdo, vai tombando progressivamente na senilidade, por entre ataques de casmurrice e aflitivos episódios de amnésia. A sua mulher, por seu lado, tem um negócio que segue de vento em popa e uma vida social mais activa do que nunca. Os filhos vivem longe e levam vidas que ele não quer compreender na totalidade. E para cúmulo acaba por conhecer uma estudante americana de doutoramento que agressivamente se introduz na sua vida simples como um insidioso cancro. A velhice, para Desmond, não é uma sentença de morte, mas a surdez acaba por ser. (A dedicatória de Lodge aos tradutores justifica-se; não se imagina qual possa ser a tradução em português de Deaf Sentence, por isso boa sorte ao sofredor a quem calhou a tarefa.) O que se segue é um calvário de privações devidamente registado em forma de diário, com uma ou outra incursão pela ficção, em jeito de exercício de escrita criativa ensaiado pelo professor Bates – o narrador.

Na verdade, o livro não é (apenas) esta história. Como sempre em Lodge, o material narrativo é um pretexto para pensar a narratividade e a ficção enquanto construção artificial de uma realidade. O narrador do livro nunca é o autor (já sabemos há muito), apesar das coincidências biográficas entre os dois; e quando a narrativa salta para a terceira pessoa, o leitor começa a perceber o artifício em toda a sua plenitude. Mas o brilhantismo de Lodge é conseguir pensar a literatura, divertindo. Leitura fácil, calorosa, sustentada parágrafo sim, parágrafo não, pelo humor britânico que o leitor habitual identifica: aquela maneira de tornar o ridículo digno tanto de pena como de simpatia; as personagens criadas por Lodge, muitas vezes académicos pomposos e sexualmente inoperantes, homens em fatos cinzentos que sonham com a saia mais curta da mulher do colega da faculdade (como acontece em A Troca e O Mundo é Pequeno), transformam-se em heróis reticentes da idade moderna.

Imaginamos que possuir todas as ferramentas teóricas para poder detectar cirurgicamente as estratégias de um romancista seja uma vantagem injusta; Lodge sabe muito bem que mecanismos um escritor usa para criar vida e torná-la interessante para o leitor. Contudo, imaginamos também que o passo entre teoria e prática seja tão difícil de dar como sobreviver como um surdo num mundo repleto de sons. Lodge consegue desenvencilhar-se melhor da tarefa do que o seu pobre protagonista. E é sempre um prazer reencontrar velhos amigos.

(A edição inglesa é da Harvill Secker; por enquanto, não há informação sobre uma edição portuguesa; espera-se que a deglutição da editora Asa pelo grupo Leya não acabe com velhos hábitos, e Lodge continue a ser fielmente traduzido por cá).

(Texto publicado antes no Arte de Ler)

[Sérgio Lavos]

21/09/08

Chemical Brothers/Star Guitar



Confesso que demorou a conversão a música que fosse mais electrónica que os sintetizadores dos Nine Inch Nails ou dos Young Gods; mas falamos de há mais de uma década atrás, águas passadas e estagnadas que nunca moveram moinhos. A primeira banda (?) exclusivamente electrónica a que dei a atenção devida foram os Chemical Brothers, e um especialista dirá que comecei quase pelo fim e pelo mais evidente - não há problema. Ser pop não é necessariamente um defeito, e os irmãos químicos nunca deixaram de prezar essa veia na música que fizeram. E ser pop, no caso dos Chemical Brothers, significa entregar os vocais a uma série de gente conhecida, de Noel Galagher a Richard Ashcroft, passando por Wayne Coyne, dos Flaming Lips, tudo gente estimável. Mas mesmo as músicas exclusivamente instrumentais (ou quase), contaminadas pelo big beat ou pelo house por vezes quase europop, são tudo o que o povo quer: delírios épicos em crescendo, psicadelismo que, prolongado por um DJ numa pista de dança ou numa rave, se aproxima perigosamente do trance (Hey, boy, hey girl, por exemplo).
Quem também ajudou foram os realizadores que foram convidados ao longo da carreira do duo para criar os videos. Se Fatboy Slim precisou de um brilhante empurrão de Spike Jonze (em Praise You), os Chemichal Brothers convidaram o melhor de todos, Michel Gondry. Em Let Forever Be, uma brincadeira com espelhos e uma bailarina multiplicada antecipa Being John Malkovich num ritmo sincopado perfeito. Mas o preferido é Star Guitar, tour de force de montagem que representará um cúmulo na arte de casar imagens com música; além disso, com um tema que se adequa à canção, electrónica etérea e planante, de forma perfeita: as viagens de comboio.

[Sérgio Lavos]

19/09/08

Ando com um livro numa mala

Ando com um livro na mala há pelo menos duas semanas. Sem pegar nele. É um livro de contos, sobre os quais já escrevi para o blogue e no papel a que gosto de chamar diário (mas não tem chave nem fita cor-de-rosa), e estava a gostar bastante do que lia. Mas não tenho lido. A cada livro que começo, penso que poderá ser o último que leio. Não por razões de fatalismo ou por culpa de uma qualquer absurda premonição, mas porque acho que, a qualquer momento, deixarei de precisar de ler. Não será assim tão difícil; conheço muita gente que leu por obrigação durante anos, licenciou-se em literatura e parou de ler, com a ocasional Rebelo Pinto pelo meio para desfastiar. Se os outros conseguem, eu sonho com o dia em que também conseguirei, sem culpa nem segundos pensamentos.
Pensando bem, a minha natureza é essa: sempre comprei mais livros do que li, e se passasse os olhos pelas estantes com certeza confirmaria as minhas suspeitas: muitos livros permanecem intocados, outros tocados mas não desflorados (existem outras formas de coito); outros ainda bem avançados pelas páginas dentro, mas não totalmente saciados. É assim a minha vida.
Por isso, um dia iniciarei um blogue que será o anti-Ouriquense: um diário dos meus começos soluçados, dos romances titubeados, dos contos abandonados, dos poemas sacados a livros de centenas de páginas sem qualquer esperança de alguma vez serem lidas. Descreverei no blogue a exacta circunstância em que comprei o livro, quando o comecei, quantas páginas li, e o triste, miserável, abandono. 
Os bons, os grandes livros, continuam depois de os termos terminado. Quantas vezes não desejamos que o livro não acabe, prolongar a leitura como uma boa refeição partilhada com a pessoa certa? Abandonar um livro, no fundo, é distorcer esta ideia: se nunca verdadeiramente começarmos, não iremos sentir a falta do livro. Falhar a leitura? O livro não nos merece, ou não merecemos o livro. Um diário das leituras falhadas? E não chega este diário, o de uma vida?

[Sérgio Lavos]

17/09/08

Aquele Querido Mês de Agosto (2)

Apercebo-me, através da Sara Pais, de que Aquele Querido Mês de Agosto já foi visto por dez mil pessoas. Dez mil, um resultado que parece distante das centenas de milhar que a Soraia Chaves atraiu aos cinemas, mas que confirma a impressão com que eu ficara ao ver o filme: um potencial êxito também de bilheteira. E que bom é dizer "um potencial êxito de bilheteira" associado a um filme português. Adoro o sabor do jornalístico lugar-comum a propósito de um objecto pouco menos que perfeito, reflexão séria, como poucas vezes se vê, sobre a arte de captar a realidade.
Ao regressar a casa, em conversa, delirei ao imaginar a gente que é retratada por Miguel Gomes a ir às salas de cinema (de resto, esta ideia é glosada no filme, na cena da projecção do filme de zombies na aldeia); e não me pareceu irrealista ou improvável. O povo embarca nas dietas televisivas em que embarca porque, lamento o cliché, não tem escolha. Ainda que tenha, ainda que haja dezenas de canais disponíveis na TV Cabo, na realidade não tem escolha. Liga-se qualquer canal nacional e a enfardadeira vai vomitando a papa do costume: novelas pela noite fora, até às tantas, ou concursos que, fingindo serem cultos, promovem a ignorância dos concorrentes. Há escolha? Não, não há, porque uma sociedade mediática que se preze não deixa que a escolha seja verdadeira. É mais fácil e barato produzir lixo do que boa televisão, e a publicidade, essa bela invenção de um perverso demónio, encarrega-se do resto; ver novelas é sobretudo discutir o enredo com alguém no dia seguinte, é ler as dezenas de revistas que elevam ao estrelato a vacuidade e ter conversa para trocar sobre esse vácuo, e o circuito mediático que rodeia a televisão que temos limita-se a desfrutar das facilidades que lhe são concedidas.
Não seria difícil imaginar o filme de Miguel Gomes no prime-time da TVI, em vez da enxurrada de novelas; não sei até que ponto isto é uma coisa positiva, mas aposto que o realizador não se sentiria incomodado pela companhia. Será assim tão difícil dar ao povo o que ele não sabe que quer? Em vez de persistir em oferecer o que as elites julgam que ele pede? Manter no escuro o que nunca de lá deveria ter saído - a luta de classes não é apenas um velho conceito marxista; é o nosso dia-a-dia.

[Sérgio Lavos]

Percalços

O capitalismo constipou-se. Curiosamente, os pingos dos espirros podem demorar a atingir-nos. Parece-me bem. Os idealistas liberais dizem "calma", que é apenas o mercado a regular-se (como o fazem as gasolineiras que não baixam os preços do combustível quando baixa o preço do petróleo ou os construtores, em tempo de crise imobiliária, que continuam a construir e a manter os preços das casas - o poeta falava do problema da habitação há muito, não é de agora); os idealistas marxistas têm a oportunidade de lançar um ou outro fogacho envergonhado, sábio, de quem prevê um futuro em que tudo se recomporá; os realistas viram-se para o outro lado da cama e adormecem. No fundo, quem pegou a constipação foram os pobres, malandros, que andaram anos e anos a viver acima das possibilidades, levando desse modo o caos aos mercados.
Seria necessário explicar em linguagem de criança o funcionamento da máquina capitalista - o esforço de imaginação, a simplicidade da engrenagem que contém em si o seu próprio fim: a falência de gigantes financeiros, de empresas, é sempre previsível. Que depois do Crash de 1929 milhões de pessoas tenham passado fome por todo o mundo, nem chega a ser um grão que emperre o movimento. Pormenores da história, crises económicas que redundam em regimes enlouquecidos, países de rastos que se transformam em ameaça à paz no mundo. 
Sobretudo, é necessário manter o optimismo; que ainda não é desta. Que o desemprego, a inflação e a provável (atenção, provável) miséria são, já se sabe, prova de que os mercados se auto-regulam. O declive acentua-se, mas a ilusão de equilíbrio ainda não foi estilhaçada. A cura é inevitável. Rejubilemos.

[Sérgio Lavos]

14/09/08

América


Passamos mais tempo a ver imagens da América do que do nosso país. Suponho que será a isto que chamam globalização cultural, por isso mais vale aceitar as consequências.
O burburinho que se tem vindo a cristalizar em torno das eleições americanas é desta vez mais audível. Tropeçamos diariamente nos especialistas em política e cultura norte-americanas; parece que toda a gente tirou uma licenciatura em Relações Internacionais com tese escrita sobre a América. Não há, na essência, nada de errado nisto. As coisas acontecem, estão aí a acontecer, esvoaçam à nossa volta, e se tivermos uma rede perto, é de aproveitar, capturemo-las. É para isso que os jornais pagam e os blogues não. 
Mas a milhares de quilómetros de distância, saberemos nós mais que os americanos que irão votar? O que é uma opinião, quanto vale? Que interessa o fulgor de Obama, ou a armadilha de Palin? Tudo bem, falamos do nosso futuro, quando discutimos as eleições americanas. O que impressiona não é esta vontade de ter uma opinião sobre tudo (admito que neste momento estou a fazer exactamente o mesmo); é a certeza com que se estranha o apelo da candidata a vice-presidente americana ou o esforço que se faz para tentar compreender por que razão Obama continua a ser incompreendido para, lamento, a maioria da população americana.
A América profunda que se apaixona por uma dona-de-casa que adora armas ("chicks with guns") e ama a vida não se compadece com os receios de uns quantos europeus; vota com o coração, que é o mesmo que dizer que vota em valores que ultrapassam a razão. A América que eu conheço não será diferente daquela que a maioria opinadora conhece: a América mediada pela televisão e pelo cinema, uma América idealizada ou estereotipada, mas que, apesar de tudo, escolhendo as imagens certas, se aproxima das representações que dela fazem.
Seria sensato rever, por exemplo, Twin Peaks, que neste momento repete no canal FX, e aprender com o olhar cirúrgico de David Lynch a conhecer a América que votará McCain por causa de Sarah Palin. Imagino eu, claro, que nunca lá estive. Mas é tão fácil cair na ilusão de saber algo se tivermos as imagens certas.

[Sérgio Lavos

12/09/08

Tudo

Ele dizia-me (era eu, mas poderia ser outro qualquer):
- Eu tinha tudo. Ganhava bem, numa boa empresa, dois camiões, dois armazéns, patrão francês, tudo, tinha tudo. Agora, nada, que vou fazer, não sei que vou fazer. 
E os comboios passavam.
- Não tomo banho há duas semanas. Falo sete línguas. Sete. Não sei o que vou fazer. A peça partiu-se.
O telemóvel ainda oferecia uma hipótese de remendo. Eu ouvia-o:
- A merda da peça. Partiu-se. Um Mercedes, só se vende na Mercedes, e a peça vem da Alemanha. Tenho uma pistola.
Há histórias de loucos que começam assim. O telemóvel tocava.
- Tenho uma pistola, e roupa suja, não tomo banho há duas semanas. Conhece algum russo ou ucraniano?
Um comboio mais, o telemóvel parou, rosto jovem, nenhum traço aparente de loucura, mas que sei eu?
- Tinha tudo na vida, e a merda da peça... antiga. Partiu. O camião levado pela polícia, protegido, ninguém rouba.
Tudo calmo, as pessoas passam e olham para nós desfrutando a dose diária de bizarria. Ou então sou eu que vejo tudo mal.
- Tinha tudo, amigo, tinha tudo, e a merda da peça partiu-se.
O comboio pára, desejo-lhe boa sorte, ele vai pedir trabalho à fábrica ou tentar encontrar um russo ou ucraniano que de lá saia. O silêncio do telemóvel; onde estará agora?

[Sérgio Lavos

09/09/08

José Vítor Malheiros

Não sei o que possa ser um bom cronista - procurei no dicionário a entrada correspondente e deu em nada. Mas leio nos jornais tanta coisa decorada por uma fotografia mais ou menos debotada do seu autor, que alguma coisa deverei ter aprendido sobre o assunto. Na verdade, compro jornais quase só pelos artigos de opinião e as reportagens; e enquanto que os primeiros abundam, espalhando mediocridade opinativa pelas ruas do país, as segundas começam a escassear, dizem que por razões de economia. Lá saberão os directores dos jornais, e eu não quero perceber por que razão é mais fácil vender o que a concorrência - televisão e internet - também oferece: notícias. Que os bons jornais lá de fora cada vez mais apostem em artigos de fundo não poderá ser apenas coincidência - o Público chegou a publicar há uns tempos um artigo com uma entrevista a um guru dos media que defende ser o esse o futuro, um regresso em força ao novo jornalismo ao estilo da New Yorker e do movimento com o mesmo nome que surgiu nos EUA nos anos cinquenta. Mas o risco deve ser grande - não se vê nenhuma mudança neste sentido.
Enquanto isto, vou lendo as escassas vozes, e entre elas uma tão discreta quanto certeira e clara: José Vítor Malheiros. A sua coluna de hoje, dedicada aos ritmos do tempo moderno, é um exemplo. O estilo, entre o cínico e o sério, cativa desde o primeiro parágrafo; o texto começa por ser sobre as mudanças que vão ocorrendo na sociedade de hoje, e sem darmos por isso vai construindo a sua argumentação de forma subtil, até culminar na sua essência secreta: o silêncio; de Manuela Ferreira Leite, quem mais? Nem me tinha dado conta de que entráramos em território da política; são assim os bons escritores: lançam o laço no momento mais imprevisto. O parágrafo final, apenas para que se prove o que afirmo:

A democracia deve ser também o conhecimento destas tarefas, do ritmo e dos objectivos do trabalho político, porque ele deve ser transparente e possuir uma racionalidade evidente, cujos resultados se inscrevam com sentido na nossa vida. A inexistência desse sentido é um sinal de que a democracia está colada com cuspo. Mas é também um reflexo de uma incompetência dos políticos. Dar visibilidade e racionalidade ao seu trabalho é uma das tarefas de qualquer político. É por isso que a afasia do PSD, o silêncio de Manuela Ferreira Leite ou a banalidade do seu discurso quando finalmente fala é tão lesivo da democracia como as práticas de que acusa com razão governo.

Ninguém disse sobre o não-acontecimento da rentrée social-democrata nada tão sensato e incisivo. Apenas isto. Isto, apenas.

[Sérgio Lavos]

08/09/08

House of cards/Radiohead



Um ano depois de ter sido lançado via Internet In Rainbows, é extraído o 5º single, o que acaba por ser indicativo do êxito do álbum. Nada mau para uma banda que decidiu ser original, rompendo com a editora EMI e colocando o seu trabalho à disposição em troca de um valor à escolha dos fãs, que podia ir do zero ao infinito. Eu lá acabei por gastar dez euros digitais, mais dez libras pelo CD alguns meses depois, e da minha parte continuo a achar que ainda não está pago. 
No outro dia, em conversa com amigos, meditava sobre um possível top 5 de bandas e a única facilidade com que me deparei envolvia o primeiro lugar: Radiohead, sem discussão. Vale o que vale, e vale o facto da minha banda preferida ser liderada por um maníaco-depressivo paranóico com um rosto assustadoramente assimétrico. Adiante. Não seria de estranhar, por isso, que eu ache todas as músicas deste álbum potenciais singles. O mais acessível desde OK Computer (mas não o melhor, esse será Amnesiac), letras minimamente, digamos, mentalmente equilibradas, o que é um contra, fragmentos de melodias flutuando numa cápsula espacial vazia. Mais do mesmo, portanto.
Quanto ao vídeo, excelente. A desolação digital no seu esplendor frio e extraterrestre, paisagens naturais e rostos humanos transformados em pontos, linhas e rectas, as dimensões espaciais reduzidas ao que realmente são: um conjunto de nada, quarks animados por uma aleatória vontade. Criado em computador a partir da colocação de pontos sensoriais na matéria (os corpos e a paisagem), dispensando o uso de câmaras ou de luz, será talvez o vídeo que melhor traduz em imagens as sensações transmitidas pela música da banda. Emoções à flor da pele metálica de um andróide depressivo. Eis os Radiohead.
  
[Sérgio Lavos]

06/09/08

Velhas canções

Sentei-me para esperar, e fui buscar uma cerveja ao balcão. Paguei de imediato, não sabia quanto tempo iria ficar, beber mais. Regressei à mesa e retirei um livro da mala, folheei-o sem prestar atenção ao que estava escrito. 
Os anos matam os hábitos. Sabia que a conversa se iniciaria como se nunca tivesse sido interrompida - assim são os amigos. Mas perdemos alguma coisa - e a chuva lá fora obrigava a um prolongamento, a um rumo incerto para a conversa, desembocando sempre em antigas recordações, que a mim me parecem batidas (a ele também?); seguir em frente, será pedir muito? Perdemos, ganhámos, nada conta, as coisas acontecem. 
E os defeitos, esbatidos na memória, evidenciam-se. A música não é uma máquina do tempo; é um espelho que reflecte o passado, nem sempre de forma clara, ecoa acontecimentos de que se perdeu o sentido.
Somos outros? Bebemos da mesma maneira, e quando a noite chega ao fim, ameaçamos confissões e arrependimentos, falamos de mulheres que amamos.
O fim é uma viagem sem regressso, a caminho de casa.

[Sérgio Lavos]

05/09/08

Juliana Hatfield



A menina Juliana Hatfield, em meados dos anos 90, ficou mais conhecida por ser namorada de Evan Dando, vocalista da mais perfeita banda pop americana da década passada, os Lemonheads, do que pelos seus méritos musicais. Os boatos sobre a virgindade aos 25 também ajudaram ao mito breve e à transitória popularidade. A faixa "It's About Time", escrita por Dando fazendo uma força para que os boatos acabassem, é uma súmula de uma década de leituras de jornalismo entre o musical e o cor-de-rosa, e o algodão doce que a menina mastiga nos backing vocals resume de forma clara que tipo de fantasmas as minhas hormonas pós juvenis lançaram sobre o futuro. 
Havia um tempo para gostar de meninas indie - ela, e Kim Deal, Kim Gordon, P. J. Harvey (numa versão menos delicada, mais sexual), Justine Frischmann, dos Elastica, as manas dos Veruca Salt, que deram um concerto memorável no meu único Sudoeste (guitarras em punho, como falos em chamas, etc.). 
Dez anos depois, ouve-se; e por entre os defeitos de agora e o julgamento toldado pela nostalgia, vai sobrando o sabor de uma guitarra fora de tempo e a voz cândida de quem julga que a adolescência se pode prolongar através da defesa acérrima de uma provocadora castidade. Somando tudo, é muito. E os Lemonheads vêm cá brevemente. Tudo se conjuga.

[Sérgio Lavos]

02/09/08

Paisagens (2)

A natureza não precisa de vingança - um simples desejo humano. À natureza basta-lhe que o tempo siga o seu caminho; tudo encontra o seu destino.
Uma casa, outrora solene e autoritária na encosta, isolada das outras casas, é o alimento das plantas que virão. As heras, primeiro, por mão humana, cobrem as paredes e as janelas, trepam até aos algerozes e alcançam as telhas, e quando aí chegam a mão humana sabe que perdeu o poder que sobre elas detinha. Em pouco tempo, a sombra verde esconderá toda a casa, e a ruína não tardará a instalar-se. Por baixo das artérias pulsando de seiva, uma lenta decadência vai enfraquecendo a casa, desde o telhado até aos alicerces. Primeiro o pó, depois a caliça, pedaços cada vez maiores que vão apodrecendo, quem sabe que memória guardam da gente que ali se abrigou. A casa dará de si, mais cedo ou mais tarde, e derrubará com ela a história que em tempos ergueu da terra. As telhas cedem sob o peso da hera, e as silvas, a urze, as giestas encontram o seu caminho. Os espinhos romperão a carne e os ossos, a gravidade submete os alicerces, atraindo ao seu centro primeiro as margens das paredes, depois os orifícios - portas, janelas, esconderijos - e do monte de entulho alastrará a rede que tomará conta da casa.
A natureza retoma o seu lugar, e com ela chegará o sabor das amoras.
O curso das estações, um rio imparável.

[Sérgio Lavos]