12/09/08

Tudo

Ele dizia-me (era eu, mas poderia ser outro qualquer):
- Eu tinha tudo. Ganhava bem, numa boa empresa, dois camiões, dois armazéns, patrão francês, tudo, tinha tudo. Agora, nada, que vou fazer, não sei que vou fazer. 
E os comboios passavam.
- Não tomo banho há duas semanas. Falo sete línguas. Sete. Não sei o que vou fazer. A peça partiu-se.
O telemóvel ainda oferecia uma hipótese de remendo. Eu ouvia-o:
- A merda da peça. Partiu-se. Um Mercedes, só se vende na Mercedes, e a peça vem da Alemanha. Tenho uma pistola.
Há histórias de loucos que começam assim. O telemóvel tocava.
- Tenho uma pistola, e roupa suja, não tomo banho há duas semanas. Conhece algum russo ou ucraniano?
Um comboio mais, o telemóvel parou, rosto jovem, nenhum traço aparente de loucura, mas que sei eu?
- Tinha tudo na vida, e a merda da peça... antiga. Partiu. O camião levado pela polícia, protegido, ninguém rouba.
Tudo calmo, as pessoas passam e olham para nós desfrutando a dose diária de bizarria. Ou então sou eu que vejo tudo mal.
- Tinha tudo, amigo, tinha tudo, e a merda da peça partiu-se.
O comboio pára, desejo-lhe boa sorte, ele vai pedir trabalho à fábrica ou tentar encontrar um russo ou ucraniano que de lá saia. O silêncio do telemóvel; onde estará agora?

[Sérgio Lavos

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