25/04/07

25 de Abril

Um certo ar de saudosismo não será suficiente razão para voltar a abusar da ênfase revolucionária que foi cultivada nos anos que se seguiram ao fim do salazarismo. Os tempos de derrotismo e cansaço apenas aceitam um ou outro fogacho maldizente, investigações jornalísticas a políticos ou repetitivos azedumes de comentadores, preocupação displicente com o que se passa lá fora, comentários sobre a política americana entre um penálti de tinto e o golo invalidado da última jornada. Passamos pelos anos da decadência revolucionária e sonhamos com uma evolução que nos permita aceitar aquilo que temos, ganhar força para desejarmos aquilo que não temos e sabedoria para distinguir entre as duas. Embarcamos no bote da felicidade amena que a Europa arrasta a caminho do seu distante vizinho americano. Nem nos damos conta dos buracos que o barco tem, a água entra mas sempre nos vai carregando.
Há, no entanto, coisas que não se perdem. A nostalgia de um daqueles dias que transformam o mundo, aquilo de que Rui Tavares fala hoje no Público, um dia que sucede espaçadamente no tempo, o dia em que sentimos que a mudança está a acontecer. Toda a minha geração, que não passou por lá, deveria (o condicional não é uma obrigação, mas podia ser) poder sentir a alegria daqueles que exultaram na rua com o desmoronar do regime podre de décadas. Quando vejo as imagens em repeat no ecrã de televisão, desconto primeiro o cinismo de quem sabe que a repetição leva à emoção, depois penso na sensação de alívio generalizado daquela vaga de gente invadindo as ruas. Não é ficção, mas é tudo uma questão de crença. Mais que uma traição, esquecer o período sombrio em que o país esteve mergulhado durante 47 anos acaba por ser um boicote ao próprio futuro. Há defeitos, pois há, mas estamos cá para reclamar. Protestar. Não me parece sensato não lutar para que tudo isto não acabe. Manter o caminho livre para aqueles que se seguirem. Foi apenas isso que os nossos pais fizeram. Apenas.

[Sérgio Lavos]

23/04/07

Fay Grim


James Urbaniak (Simon Grim) e Parker Posey (Fay Grim) estão de volta na companhia de Hal Hartley, dez anos passados sobre Henry Fool. Dez anos que nos levaram a duvidar da sua existência. Em estreia nacional e com a presença do realizador (inserido no IndieLisboa), Fay Grim pode fazer com que renasça toda a teatralidade das personagens de Hal Hartley na repetição cadenciada ou autista que cada uma tem da sua própria vida.~
[Susana Viegas]

20/04/07

Hotel Memória

Ando há algum tempo para escrever um texto sobre o último livro de João Tordo (Hotel Memória, ed. Quidnovi), mas tem-me faltado o tempo na mesma medida em que abundam os adjectivos para classificá-lo. Como fui habituado a usar de parcinómia no que à literatura diz respeito (vício académico), resisti ao trabalho e deixei-o ganhar corpo. Não foi assim há tanto tempo que o terminei de ler mas já me escapa o nome da personagem que dá corpo ao romance, um fadista português emigrado nos E.U.A., durante quarenta anos perseguido por um crime que nem ele sabe se cometeu - ou pelo menos, achamos nós que ele não sabe. Mas a seu tempo acaba por regressar a história inventada por Tordo. No caso, depois de ler um dos textos que João Lisboa tem publicado no seu blogue a propósito de Tom Waits. Uma das faixas do seu álbum de 2000 "Blood Money" intitula-se "The Part You Throw Away" e passa por ser um fado. Um fado à maneira de Tom Waits nunca poderá ser algo de reconhecível, claro, mas de algum modo a distância que separa Waits de Alfredo Marceneiro (ler o texto de João Lisboa para compreender o caminho) não é assim tão longa; desde a marginalidade vivida através da música até ao improvável uso de uma voz que, à partida, estaria pouco ou nada fadada para o canto, encontram-se pontos comuns entre um e outro que não me parecem ser apenas fruto do acaso - exagero evidente, o acaso teve mesmo alguma coisa a ver com o encontro de Waits com o fado. Não adianta nada à música compreendermos o mecanismo por trás do gosto. A banalidade poderia obrigar a que falássemos da imperfeição humana e do modo com ela toca cada um de nós como explicação para o prazer que retiramos de vozes como a de Tom Waits. Entendemos os defeitos, integramo-los no todo da obra, e passam a ser pequenos passos para a perfeição.
Daniel da Silva (sempre sabia o nome) é o fadista português tornado grande baleia branca para o Ismael da história de João Tordo. Canta como Alfredo Marceneiro, viaja para a América fugindo de um crime e encontra o sucesso com a ajuda da mais improvável das personagens. O sucesso é relativo e fugaz, e ele acaba por ser novamente perseguido, torna-se fugitivo, desaparecido, mítico - lenda americana do artista retirado do mundo. Reemerge por momentos com outro nome, respira à tona, julga-se a salvo, apenas para voltar a mergulhar no mais impenetrável anonimato, no quotidiano de uma repartição perdida do outro lado da América. Em São Francisco, Daniel da Silva cumpre-se imitando o destino de todos: o esquecimento.
Mas se o acaso não o tivesse arrastado na sua imprevisível corrente, talvez ainda hoje cantasse fados e standards enviesados para um circuito de fiéis que acolheriam cada novo álbum com deslumbre e gratidão. E talvez, em vez de Nathaniel Yorke, se chamasse Tom Waits.
Num livro, haverá mérito maior do que este, da realidade o imitar de modo tão decisivo?

[Sérgio Lavos]

18/04/07

House


Uma banda sonora fantástica para uma série de excepção sem qualquer dúvida. Aliás, as referências a letras de música ou a diálogos de filmes são uma constante em Dr.House. Prescrito principalmente para quem simpatiza com um médico armado em detective de doenças raras, sintomas imprecisos, diagnósticos impossíveis, um aleijado que é viciado em opiáceos, narcísico, vaidoso do seu intelecto, arrogante, sarcástico, porém um sedutor. E que nem sempre consegue o que quer ainda que se esforce bastante ( facto que provoca muitas crises existenciais). Um homem complexo.

[Susana Viegas]

16/04/07

Videografias 9


Para os The Raconteurs de Jack White, Jim Jarmusch realizou o video Steady, as she goes em 2006. Jim Jarmusch, realizador americano nascido em 1953, é autor de Permanent Vacation (1980), a sua primeira longa-metragem, à qual se seguiu Stranger Than Paradise (1982), Down by Law (1983), Night on Earth (1991), Dead Man (1995), Coffe and Cigarettes (2004) e os meus preferidos Ghost Dog:The way of the Samurai (1999) e Broken Flowers (2005). Perseguido por personagens Zen, melancólicas ou simplesmente contemplativas - aqui se encontra a fronteira com o nomadismo, entre a deriva e a demanda, as personagens são nómadas no seu próprio território - Jarmusch criou algumas das mais inesquecíveis personagens como Aloysious Parker (Chris Parker), Ghost Dog (Forest Whitaker), William Blake (Johnny Depp) ou Don Johnston (Bill Murray). Este video, não tem nada a ver: talvez se relacione com a ruralidade americana, com localidades no meio de nenhures ou uma Manhattan irreconhecível, e com o frenético Chris Parker.


[Susana Viegas]

Entrada de diário (5)

Freud deixou-nos em herança mais que um sistema falível de compreensão do mundo - percebido apenas como uma construção da psique humana. Deixou-nos os sonhos.
Chega de lirismos, não falo dessas previsões de futuro. Dos sonhos verdadeiros, o território de todas as bestas que nos assombraram em algum momento da vida.
Não acredito em psicologia, mas também não preciso de acreditar para ser tudo verdade. Partir do ponto de vista solipsista do psicanalista até chegar a mim próprio é prova bastante para a amena fraude psicanalítica. E depois, as palavras. Quem descodifica o que temos de mais intricado através de proposições, jogos linguísticos, não merece a minha confiança. Mas os sonhos...
Não há como não aceitar que a psicanálise acertou quando tratou dos sonhos. Tudo tem que ver com o método: quando Freud se propunha adivinhar a origem das psicoses dos seus pacientes, corria sempre o risco de errar, redondamente, magnificamente; e isso aconteceu quase sempre (os pacientes raramente melhoraram). Mas a paciência de arquivista ao registar os seus próprios sonhos é merecedora de todo o crédito. Acredito em Freud quando interpreta os seus sonhos e acredito quando estende o âmbito das suas interpretações aos sonhos dos outros - somos todos humanos.
E sonhamos. E enfrentamos os medos nos sonhos. E imaginamos uma vida diferente daquela que levamos. Criamos outro plano de existência. Superamos os defeitos da memória. Vivemos fora da vida. E quando acordamos, podemos sem dificuldade esquecer tudo. Como poderia Freud estar errado?

[Sérgio Lavos]

Entrada de diário (4)

Não acredito em literatura. Abro um livro e desconfio do cheiro velho, reconheço nas palavras coisas repetidas, lidas e por ler, apesar disso já conhecidas. Nada é novo, a literatura recicla-se. Fala apenas de si própria, olha para dentro de si e apenas reconhece anteriores encarnações, as mesmas ideias de sempre debatendo-se com a traiçoeira eternidade.
Mas deixo de lado esta minha desconfiança. Abro cada livro novo como se nunca tivesse tocado num livro. Obrigo-me a achar que ler se assemelha a escrever: num momento existe nada, de seguida tudo. Sentido? Apenas faz sentido o silêncio, a pausa no ruído do mundo. Numa frase de escritor (aquele verdadeiro) reverbera um mundo de sentido pleno que não precisa de palavras para se explicitar. A frase obriga o leitor a pensar-se. Convida-o a calar-se e a deixar-se invadir por essa força calada, intensíssima, até que nada reste a não ser o vazio da reconhecimento.
Entre este reconhecimento, o martelo da repetição a cada livro, e a intuição de que não há verdadeira sabedoria fora do silêncio da literatura, perde-se o passo do tempo. Habita nessa falha intersticial mais que imprecisão e medo. Um pé pousado sobre a incerteza da literatura. Um salto preciso sobre o abismo.

[Sérgio Lavos]

13/04/07

O começo de um livro é precioso

Sei que tudo o que li antes de agora será necessariamente melhor do que aquilo que vou ler. A cada livro a sensação repete-se. Mas a cada livro a sensação se esbate, vai perdendo a sua força.
Tocar, abrir, cheirar. Passar os olhos pela contracapa, pela badana, sentir o papel, espreitar as palavras formando-se no papel. E começar.
As primeiras letras, as primeiras palavras, as primeiras frases, os primeiros parágrafos, a primeira página. Reconhecemos logo os lugares a que sempre regressamos, lemos o mesmo livro repetidamente. Mas, por vezes, recuamos. Recusamos, porque algo está ausente. O livro fica por ali, não fará parte de nós. O tempo apura o gosto, por isso a cada nova experiência erramos menos. A grande família de todos os livros que havemos de ler nem sempre nos visita, mas sabemos que ela existe, e que existe para se tornar convidada na casa do leitor. Quando avançamos, ou porque o autor nos conhece, ou porque a história, mesmo que escrita por algum desconhecido, nos parece vagamente familiar, entramos numa floresta que se fecha à nossa passagem, uma floresta que conhecíamos apenas de sonhos. Agora, ela toca o nosso corpo, e revolve as entranhas.
Mas os mapas que espreitam das estantes vão nos revelando um território cada vez mais conhecido. Aceito a inevitabilidade do tempo, o modo como ele nos oferece o conhecimento do mundo e nos retira a novidade de tudo. Aceito que não voltarei a sentir a vertigem de mergulhar nas aventuras que Enyd Blyton e os seus cinco, nas epopeias de Julio Verne, nos mistérios de Agatha Christie. Mais tarde, os livros de FC da Caminho, os mundos intrigantes de Heinlein, Bradbury, Aldiss; mais tarde, uma obra descoberta de forma acidental: o 1984, de Orwell. Teria 14 anos, penso que o livro estava arrumado na secção de FC da biblioteca da minha escola. O acaso fala uma língua estranha e bela. E quem poderá ler Kafka uma segunda vez sem ter presente a primeira, o assombro de uma nova língua criada dentro da língua?
Um novo livro agora traz o reconhecimento. Conhecemos aquilo que já sabíamos existir em nós. O tempo das revelações entrou nas suas horas de declínio. O começo de um livro é precioso, diz Llansol, e sei que a frase não é esta, mas permito-me inventar a minha frase aproximando o sentido. Volta a nós, num retorno interno, circular, emerge do que estava oculto e sobe, por momentos, à superfície.

(Texto vagamente semelhante a outro, publicado no Arquivo Fantasma.)

[Sérgio Lavos]

10/04/07

Lynchland

Não vale a pena acordar e abrir os olhos. Fechamos os olhos e continuamos dentro das imagens, como continuamos dentro do sonho de onde acabámos de acordar. Falar sobre a experiência, escrever sobre a experiência sensorial a que somos submetidos em INLAND EMPIRE, restringe o campo das interpretações e reduz as possibilidades da obra continuar a persistir em nós enquanto experiência estética transcendental. Como se a sala de cinema fosse um prolongamento natural da realidade de onde acabamos de sair - ou a realidade para onde saímos fosse uma extensão do sonho que acabámos de viver. Há signos a serem descodificados? Claro que há, abundantes, em torrente, à espera de visionamentos que nunca completarão a leitura definitiva da obra. Há signos suficientes para acharmos a chave do filme? (Como se fossem pistas para o tesouro?) Muito mais que em "Lost Highway", por exemplo, a mais insolúvel das obras de Lynch.
Mas iremos abrir os olhos. E veremos Laura Dern, representando uma actriz, Nikki Grace, em busca de uma realidade que substitua a ficção que encarna nos filmes. Poder-se-á imaginar algo anterior a isto: antes do aparecimento de Dern, já existe Nikki Grace? Qual a ligação entre as primeiras cenas, filmadas com as personagens a falar em polaco (será? interessa a língua?) e o diálogo entre Dern e Diane Ladd, quando o tempo é movido dos seus eixos pela primeira vez ("Se fossem 9.45, já seria amanhã"). O filme avança, acompanhando o coelho apressado (qual é o enigma dos coelhos? Era difícil encontrar pista mais óbvia), através do país das maravilhas, fugindo de Alice, e estamos já no set de um filme que retoma outro que nunca foi terminado. A maldição é um pretexto, entramos e saímos de cenários que são como se fossem mundos onde vivem diferentes personagens. Hollywood é um conjunto de edifícios espalhados por quilómetros ou uma série de realidades paralelas unidas por portas (abrindo e fechando) e buracos (na seda - o cigarro que queima o tecido lembrando fita a arder -, no útero, no abdómen), realidades dinâmicas influenciando-se mutuamente, onde cada acontecimento pode ter repercussões noutro lugar qualquer deste continuum espacio-temporal que mistura o real e o sonhado, alucinação pura, onde cada um dos seus actores (no sentido lato do termo) pode desempenhar diferentes papéis em diferentes tempos e espaços? Logo ao início, Justin Theroux (enquanto Devon Burke, actor do filme "On High in Blue Tomorrows", que poderá ser traduzido como "alucinando com amanhãs tristes") vai procurar no cenário do filme alguém que entreviu e, através de corredores e túneis (o útero), persegue uma sombra. A sombra, vimos a descobrir mais tarde (o tempo continua a fluir de uma maneira muito própria), é Laura Dern, que é Nikki Grace, que é Susan Blue, personagem do filme dentro do filme. Será também mais tarde a actriz morta pelo marido atraiçoado, em "Blue Tomorrows" remake como no original, como na realidade, que na verdade nunca sabemos se acontece: será que o desejo de Grace é satisfeito? INLAND EMPIRE é um hino a Laura Dern e está construído em torno do seu estado mental. Apenas temos acesso à sua mente; mas através dela, conseguimos vislumbrar o mundo, os seus sucessivos planos sobrepondo-se até ao infinito (a imagem da televisão dentro da televisão; a realidade no ecrã de cinema multiplicada; o nosso olhar acrescentando mais um plano ao tecido da realidade, atribuindo consistência à sucessão de imagens do virtual e completando o Todo do filme). Quando Susan Blue morre no passeio (e o sangue cai em cima de uma estrela, uma Dorothy que recorda a que se perdeu na terra de Oz), e o realizador do filme diz corta, outra sequência começa, até à celebração final, já com o genérico final a correr, uma celebração do cinema e dos seus mitos, a sua tentativa de transcender a realidade de onde nasce, até surgir uma nova no seu lugar.
Em Cannes, depois da projecção do filme, alguém perguntou a David Lynch se tudo estava bem com ele. Melhor do que nunca, a julgar pela fulgurante lucidez de INLAND EMPIRE. Se não fosse sempre um desafio cada obra nova de Lynch, eu diria que aqui ele atingiu o seu cume enquanto realizador de cinema. O "Citizen Kane" para esta década. E um dos seus mais compreensíveis filmes de sempre.

[Sérgio Lavos]

08/04/07

NADA 9


Já chegou às livrarias a NADA nº 9 com especial destaque (e sem querer desvalorizar os outros textos que marcam pela qualidade) para a entrevista a João Tabarra, agora com duas exposições em simultâneo e complementares na ZDB e na Galeria Graça Brandão, e ainda para o texto de André Favilla sobre arte computacional:
.DANIEL INNERARITY: Pensar a ordem e a desordem: uma poética da excepção.
.Entrevista a ROY ASCOTT por João Urbano e Gonçalo Furtado: Da consciência quântica aos mundos paralelos tecnoxamânicos.
.ANDRÉ FAVILLA: Nova tecnologias, velhas ideias: Notas para uma genealogia da arte computacional.
.SILVA CARVALHO: O Livro Porético.
.Entrevista a JOÃO TABARRA por João Maria Gusmão e João Urbano : Desaparecimento, Falha e Êxodo.
.JENS HAUSER : A Biotecnologia como Medialidade – Estratégias da Media Art Orgânica.
.Entrevista a HUGO LIU por Paulo Urbano: Da Programação do Inconsciente às Tecnologias Estéticas.
.MARTA DE MENEZES: Decon: Desconstrução, Descontaminação, Decomposição.
.SUSANA VIEGAS: Três Filmes Cerebrais para Gilles Deleuze.
.JOÃO URBANO: A Tempestade.
.MARTHA RAMIRÊZ-GALVÉZ: Our machines/ our selfs. Corpos fragmentados e domesticados na reprodução assistida.
[Susana Viegas]

07/04/07

Manual de conversação 3


Se há algum filme puramente deleuziano, este é o filme. INLAND EMPIRE é obrigatório. Esqueçam os coelhos, eles desviam o olhar do que é objectivo, da chave. Esta é a chave: a metamorfose acontece. Esta é a actriz: Laura Dern. Na verdade, é tão estranho que os coelhos falem inglês e passem roupa a ferro como Nikki Grace entender polaco apesar de o não falar. Qual a razão para não nos entregarmos à metamorfose, aos fantasmas, às bruxas (fantástica actriz a Diane Ladd, aqui uma vampírica entrevistadora, em Wild at heart uma verdadeira bruxa com bola de cristal) às maldições e aos feitiços? Qual o motivo para não acreditarmos no poder que um beijo tem para libertar do feitiço, como nos contos de fadas? Não será a própria vida das actrizes um conto de fadas?
No seguimento de Mulholand Drive, David Lynch mostra-se novamente fascinado pela indústria cinematográfica, com os sonhos e os pesadelos inerentes, com a capacidade que um actor tem de se tornar noutra pessoa, no fingimento espacio-temporal que diariamente está presente nos estúdios, quase de um modo esquizofrénico, quando se abre uma porta e logo nos encontramos noutro cenário, noutra época, e assim sucessivamente. Percebe-se bem esta passagem durante o primeiro ensaio do filme realizado por Kingsley Stewart(Jeremy Irons) onde Nikki Grace(Laura Dern) é Susan Blue e Devon Berk(Justin Theroux) é Billy Side: de repente, eles já são Susan e Billy e a metamorfose está completa. A chave está lá desde o início, desde o momento em que a nova vizinha de Nikki Grace lhe fala de um casal de actores que tinha sido brutalmente assassinado e pede-lhe para olhar em frente para ver: se fossem 9:45, já seria amanhã. Desde este olhar até ao final ( "No more blues tomorrows" é o título do filme), passam-se poucos segundos, distendidos na sua duração máxima como só o cinema e a memória têm capacidade de mostrar.
Este é o amanhã desde o início, sempre do outro lado do espelho. Estúdio atrás de estúdio, cenário ao lado de cenário, o filme original, o remake, o filme de Lynch, são mundos paralelos: ainda que de épocas diferentes, eles são contemporâneos, eles encontram-se e alteram-se sem que possam comunicar. Os cenários são temporalmente contemporâneos mas espacialmente descontínuos. Como nas imagens-cristal de Gilles Deleuze, o passado, o presente e o futuro são dados a ver aqui e agora em cada plano sem que o espectador consiga fazer a demarcação. As dimensões temporais são indiscerníveis ainda que distintas. Como acontece na cena do ensaio mas também na cena da sala de cinema quando o filme projectado na sala vazia é o filme que se está a filmar; e no beijo da quebra do feitiço, onde a televisão reproduz as mesmas imagens como numa imagem reflectida em espelho, numa repetição que torna diferente.
Como Lynch afirmou em diversas entrevistas, este é um filme para se sentir por intuição sem se querer reunir as peças do puzzle, porque se trata de uma experiência estética pura, uma experiência pura de tempo. Enquanto experiência estética, INLAND EMPIRE tem lógica e faz sentido porque não interessa o porquê, o que quer dizer. Da mesma maneira que não se pergunta a um pintor o que ele quer dizer porque já o fez com linhas e cores, também não se pergunta a Lynch o que ele quer dizer porque já o fez com imagens.
E se quando uma actriz entrasse na sua personagem, esta se tornasse autónoma e consciente da outra? Então teríamos um filme de David Lynch.

[Susana Viegas]

04/04/07

O Último Capítulo

Ao ler a passagem da entrevista que David Lynch deu ao Expresso que a Susana publicou mais abaixo, dá para perceber a razão de "O Último Capítulo" ser um filme completamente falhado, um desastre. Darren Aronofsky, que, julgo, decidiu compôr uma elegia em louvor de Rachel Weisz, a sua mulher, o que, diga-se, parte de uma intenção difícil de censurar por quem quer que seja, deslumbrou-se com as possibilidades de luz que o cinema oferece. Imagine-se, o velho lugar-comum das sombras dissipadas pelo projector, os sonhos do espectador reflectindo-se contra a tela branca (por quanto tempo, não se sabe, o digital está a chegar), uma obra sobre o vale da desmemória e o resgate, a derrota. As possibilidades, as possibilidades, mas era inevitável o empecilho do amor. Amor como obstáculo ao génio, amor como espinho cravado nas costas, impedindo o avanço do tempo. Os três planos de Aronofsky cruzam o tempo interno de um deslumbre - o que paira sobre o espaço concreto de um presente ameaçado pela doença e a morte. Mas nem as boas intenções nem a destreza ágil do realizador salvam o filme da lamechice new-age pintada pelo digital manhoso de um blockbuster abortado a meio da gestação.
O potencial de segundas leituras que o tema poderia originar - amargura, ranger de dentes, Dante penando num Inferno sem retorno - é aplacado pela luz piegas que Aronofsky projecta sobre a tela. Salve-nos o diabo de toda a beleza da coisa. Preferimos caminhar na sombra.

*A imagem que coloco lá em cima mostra bem que tipo de filme é este. Lamentável.

[Sérgio Lavos]

Parabéns

- Parece que 4 anos, nos dias que correm, é muito.
- Muito quê? Falamos de qualidade ou quantidade?
- Interessa para o caso?
- Não interessará?
- É uma questão de satisfazer a necessidade de um hábito.
- Ou os leitores...
- O que, no caso, vai dar quase ao mesmo.
- Ainda assim, vale a pena parabenizar a dinossaura?
- Espero que sim, e espero que, entretanto, o meteorito retarde a sua chegada.
- Mas isto não ia acabar com uma bomba?
- Ou com fogo-de-artifício, tanto faz, desde seja hoje.
- É, quatro anos são quatro anos.

[Sérgio Lavos]

02/04/07

Manual de conversação 2


Na continuação da procura de um sentido nos filmes de David Lynch, retiro um excerto da entrevista publicada no Expresso (realizada em Setembro de 2006) onde podemos compreender a inversão estética em causa: não se trata da valorização do feio como horrível, a estética do choque e do horror, mas da beleza aí presente, na desolação, no escuro, como nas paisagens abandonadas, fábricas, celeiros ou estações de comboios, espaços sem função prática, que não contam para nós no dia-a-dia, lugares deixados para trás, presos na sua condição objectiva sem uma temporalidade humana:

Uma parte de «INLAND EMPIRE» passa-se na Polónia. Porquê a Polónia? Por causa da estranheza da língua?

Não. Fui à Polónia, a Lodz, durante um festival de cinema e fiquei fascinado pelo aspecto da cidade, em pleno Inverno. É uma antiga cidade industrial, com muitas fábricas desactivadas - lindíssimas, pelo menos para mim. Uma luz espantosa, espessa, cinzenta e uma belíssima arquitectura. Apeteceu-me filmar ali.

Há quem ache que são espaços abandonados, feiíssimos... Dá-se conta que os seus valores estéticos são diferentes dos da maioria das pessoas?

Provavelmente, sim. Claro que gosto de flores e de árvores.

Embora não estejam muito presentes nos seus filmes.

Bem, há algumas árvores e flores, de passagem... Mas prefiro as coisas que me intrigam. O desconhecido é um mistério. Cada canto escuro alberga um mistério.

[Susana Viegas]

Natureza-morta

[Sérgio Lavos]

Literatura

Seria um foco incidindo sobre ruínas: matéria suficiente para arder como metáfora.

[Sérgio Lavos]

Sombras

Nem que as sombras se dissipem, nem que o pó se submeta à força da luz clara do dia; negar duas vezes a destruição não te restituirá os alicerces da casa. Apenas anuncia a terceira negação: o esquecimento.

[Sérgio Lavos]

Querer

Enquanto caminhava pela casa vazia, sentia o passado estilhaçar-se sob os pés; o sangue começava a tornar-se mais espesso que o visco da memória.

[Sérgio Lavos]

Crer

De entre as diversas formas usadas para ludribiar a decadência, ele escolhia a menos eficaz de todas: a memória.

[Sérgio Lavos]

Duplo negativo

Quase nunca existe nada de especial nos sítios onde nascemos. A não ser o facto de termos lá nascido.

[Sérgio Lavos]