Gostaria de achar que o serviço público prestado por Fátima Campos Ferreira no debate sobre a despenalização da IVG, ontem à noite, vai muito além dos efémeros 5 minutos que prolongam o efeito catatónico de uma discussão que não teve nada de esclarecedor e tudo de político. Não vale a pena acusarmos a apresentadora de sectarismo; a questão ultrapassa esse âmbito. Meses e meses de argumentos, repisados e gritados e bem ou mal explicados redundam em meia-dúzia de soundbites atirados de forma emocional à cara do espectador que, lamentavelmente, ou estava ainda a assistir a uma novela num dos outros canais ou já se tinha deitado há muito.
A realidade é esta: a mulher que faz abortos, essa fenomenal abstracção que de cinco em cinco em minutos era trazida à baila pelos partidários das duas posições, estava ou a tratar do marido e das crianças ou a descansar para mais um dia de rotina repetida: levantar, perder o tempo em transportes públicos, trabalhar, chegar a casa, tratar de tudo, deitar-se. No intervalo da rotina, um ou outro percalço resolvido com pouco tempo e nenhumas condições na abortadeira da esquina. Regresso à canseira, à rotina, uma ou outra espreitadela à novela da noite, aflições, sofrimento nada abstracto que nem quem decide leis nem quem se indigna a propósito da vida imaginam muito bem o que possa ser. Nem se interessam. Como a mulher que faz abortos não se interessa. Não se trata de uma questão de consciência; como disse Beatriz Batarda ao Público trata-se ainda, apesar da sociedade de consumo em que vivemos, da velha luta de classes.
As razões que não me permitem achar que a despenalização do aborto seja uma coisa intrinsecamente boa - razões que passam muito pela sensação clara de que existe uma continuidade entre um feto e uma criança, e aqui já não consigo separar a ideia da realidade: senti o meu filho como tal desde que tive conhecimento da sua existência intra-uterina. A minha ética pessoal é esta, neste assunto. Mas nunca poderei achar que os meus valores se poderão sobrepor a uma coisa muito simples: o sofrimento de quem aborta por necessidade extrema, de quem não tem condições, por uma razão ou outra, para criar uma criança.
O problema não é, ao contrário do que muitos afirmam, penalizar quem aborta. É antes aceitar os valores de quem aborta, impor-lhes um limite - temporal, no caso - e criar as condições para que tudo aconteça em segurança e na plena consciência do acto que se está praticar. Falamos da realidade concreta. A proposta da descriminalização que os partidários do "não" inventaram é politiquice da pior, inconcebível no debate em questão. Não mudar com a promessa de que se muda depois, para ficar tudo na mesma. Ajudaram-me a decidir o sentido do meu voto. Votarei SIM.
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Sérgio Lavos]