28/02/07

Videografias 8


Pois, Justin Timberlake também tem lugar no mundo dos bons videos musicais. O rapaz do momento, o namorado de celebridades, o preferido da MTV, de primeiros lugares nos tops, de meses temáticos dedicados à sua música, cresceu e agora também contracena com Scarlett Johansson, a desejada. O video para What goes around ... comes around é realizado por Samuel Bayer que começou nos anos 90 com os Nirvana e o fantástico Smells like teen spirit. Tem ainda diálogos de Nick Cassavetes que em Portugal ficou conhecido pela inquestionável ascendência artística (John Cassavetes e Gena Rowlands) e pelo filme John Q (2002). Por entre meretrizes inspiradas em Moulin Rouge, perseguições de automóveis, encontramos o amor fous entre Scarlett e Justin. Consumido pelo ciúme e traição, este amor acaba mal, muito mal... no director's cut que dura mais de nove minutos. Um épico para rivalizar com Cry me a river.

[Susana Viegas]

26/02/07

Showbizz

Depois da noitada de ontem, um regresso sem cinema ao lugar do crime. Passo os olhos por alguns blogues de cinema e confirmo a ausência do fenómeno. Alguns, não todos. Aqueles que não se envergonham de gostar de cinema americano - e o que é isso - excepcionam-se? Cinema europeu? Dois ou três excelentes filmes por ano, ultrapassados pela dezena ou mais de filmes americanos. A maior parte destes, claro, nem passam pelos Oscares. Tenho ganho mais em ter perdido muito dos premiados dos últimos anos. E este ano, nenhuma surpresa, claro. Um prémio é um prémio, nunca é cinema. Vale o que vale, e acaba por ser penoso ver Scorcese, nos últimos cinco anos a fazer-se ao oscar como o Liedson se faz ao penalty. Olho para o sorriso de velho e detecto a verdade: "preferia ter recebido isto há trinta, vinte anos atrás". Mas a publicidade prescinde do mérito e do bom gosto. Penso em dois ou três filmes dos últimos dez anos; nenhum recebeu o Oscar. "Mulholland Drive"; "Pulp Fiction"; "A Barreira Invisível"; "In The Mood For Love" "Magnolia"... E podia enunciar mais vinte ou trinta melhores do que os que têm recebido o prémio - com a excepção de Clint Eastwood. Um bom exemplo da contigência da Academia em relação ao cinema foi o prémio que Philip Seymour Hoffman recebeu por Capote. Andou anos a fazer grandes papéis, mas teve de produzir o filme certo para ver reconhecida a sua qualidade. E o filme certo foi "Capote", um biopic camp com a dose certa de histrionismo e previsibilidade para ser oscarizavel. Este ano, outro actor inquestionável que precisou de passar pelo mesmo: Forest Whitaker. E serei apenas eu, ou acabam todos por sentir o que Scorcese deve ter sentido? Ou será a vaidade humana assim tão castradora?

(O homem na sombra lá em cima nunca recebeu a estatueta. Credibilidade, foi o que disse?)

[Sérgio Lavos]

21/02/07

Aviso

Este blogue não irá falar de literatura nem dos seus desaparecidos durante os próximos cinco dias. Até já.

[Sérgio Lavos]

20/02/07

Literatura de antecipação

Há algum masoquismo nas intenções - e talvez sadismo nas conclusões - de repisar um tema já tratado em textos anteriores. A preguiça reclama do trabalho que dá pesquisar nos arquivos do antigo blogue. Não irei lá. Mas como se aproxima a minha visita a Londres (dado inegavelmente de natureza biográfica, registe-se para memória futura), recordo a passagem de "Austerlitz", de W. G. Sebald, quando ele visita o museu de Greenwich, devotado aos instrumentos de medição e afins. Na altura escrevi uma charla memorialística, com um tom vagamente saudosista e, consequentemente, rançoso. Irei lá voltar, quem sabe, e percorrer o meridiano como qualquer turista, e talvez entre pela primeira vez no museu. Sebald ter-me-à convencido - a desgraça da literatura.
Ou convenceu-me Enrique Vila-Matas, ao convocar Sebald a propósito da sombra que paira sobre "Doutor Pasavento", Robert Walser. É verdade - não uma verdade de romance, como algumas inventadas por Vila-Matas em obras anteriores - verdade verdadinha que o pai de Sebald morreu exactamente no mesmo dia de Walser; e é também verdade que ele tinha o hábito de dar grandes passeios - como Walser. Que as personagens de Sebald cultivem também este gosto pela deambulação não é apenas um acaso. Em "Austerlitz", o narrador entra de olhar pasmo no museu de Greenwich e dedica-se ao prazer da observação minuciosa. Há uma impossibilidade concreta de sentirmos a passagem do tempo. O tempo é interior, qualquer um sabe, mas não os instrumentos que inventamos para o domar. Observar relógios, cronógrafos, sextantes e astrolábios pode-nos conduzir a um vislumbre da verdade da natureza humana, a sua força criadora. Numa paisagem de ruínas - as aventuras da pós-modernidade têm este infeliz defeito - estes vestígios de outras eras apenas fazem sentido em museus; como as estátuas.
Mas decido sair de Austerlitz. Reentro em Vila-Matas e cito uma citação (não sei se inventada ou real) de Alan Pauls: "É uma experiência única, adormecer num filme de Tarkovsky e acordar de repente com uma das suas imagens". Lugar-comum, já me sucedeu várias vezes. Recordo uma sessão na Cinemateca, lembro Stalker. Acordei no plano mais significativo do filme: a mão dentro de água, a água a correr, escolhos em volta. Entre Tarkovsky, continuação de um sonho, e a paisagem devastada de Sebald, há mais que um rio a correr.

[Sérgio Lavos]

19/02/07

Bartlebys

O cinema também se tem interessado, aqui e ali, pelo fenómeno bartleby. A mitologia do escritor que desaparece pode ser um bom tema. Tem glamour e tem mistério, tem o questionamento fundamental da arte; não tem romance nem morte, mas tem uma coisa melhor: o desaparecimento. Tratado assim, desligado da realidade, há, que me lembre, "Sous le Sable", de François Ozon. Dir-se-ia que não tem nada que ver com Bartleby. Talvez tenha. Talvez seja mais estimulante achar que o marido desaparece de forma voluntária, e não que tenha morrido no mar. De qualquer modo, o tema óbvio do filme é a perda, a quebra no fio narrativo da realidade que qualquer mudança provoca (contra o conselho comum que obriga as pessoas que sofrem esse corte ontológico a retomar o ritmo normal da vida - como se o pudessem fazer). Pensar a obra de Ozon pelos olhos de quem procura gente com a melancólica condição do desvanecimento, todavia, conduz-nos a realidades que estão para lá do filme, quem sabe se para lá do pensamento do realizador. Regressemos portanto a Bartleby. Por exemplo, William Forrester no mais ou menos ingénuo "Finding Forrester", de Gus van Sant. Mais ingénuo pela repetição do tema em relação a "Good Will Hunting" - o jovem génio conturbado em busca do mentor esquecido de si mesmo. Mas menos pela evocação de um J. D. Salinger perdido no Bronx (terá lido o autor do argumento a história em que Vila-Matas encontra o escritor num anónimo autocarro nova-iorquino?), lutando pelo seu direito à reclusão. O que é inteligente no filme é o facto de Forrester (Sean Connery) não ter simplesmente deixado de escrever - ele persiste, imperturbável, na continuação da sua obra. Mantém o ritmo, a rotina, os fetiches da escrita. Mas já não quer publicar, não quer saber do mundo que continua a rodar fora do refúgio onde se encontra. Três ideias de notar no filme: a agarofobia, relacionada de forma determinante com o sibaritismo da personagem; aquela velha ideia de que se queremos nos esconder do mundo, então o melhor é encontrar um esconderijo o mais perto possível do centro de tudo - no caso, o Bronx, a dois passos do coração de Nova Iorque; a tal insistência na escrita - o verdadeiro bartleby nunca desiste de ser ele próprio; simplesmente desiste de ser ele próprio no mundo. E desaparece.
A escrita precede a vida e eleva-se acima dela. Quantos originais estarão guardados na gaveta de J. D. Salinger?

[Sérgio Lavos]

18/02/07

O escritor imerso em melancolia

Mirando aquella postal, tuve la sensación repentina de vivir una inmersión radical en la melancolía. Luego, me olvidé. No fue hasta 1993 cuando volví a encontrarme con aquel paisaje de Cascais. Lo encontré inesperadamente en una revista femenina, y allí estaba el mismo paisaje, pero actualizado. El faro había crecido verticalmente y había tres en lugar de dos palmeras. La casa o "vivenda Lino", informaba la revista, pertenecía ahora a los Kennedy portugueses, "la emblemática familia de banqueros apellidados Espírito Santo". Volví a conocer una inmersión radical en la melancolía. La memoria difusa de haber estado alguna vez en aquel lugar. ¿Cuándo? No lo sabía. Pero ya había estado allí antes de haber estado nunca. (Ler o resto aqui).

Enrique Vila-Matas

[Sérgio Lavos]

16/02/07

Escolhas

Ler uma entrevista de Enrique Vila-Matas pode ser uma acção arriscada. Há quem julgue que apenas jogar na bolsa e praticar mergulho com tubarões - que, no fundo, é a mesma coisa - são actividades perigosas, mas a verdade é que a literatura não oferece segurança nem porto de abrigo a ninguém. Um escritor mente, por defeito profissional ou por hábito, obsessivamente e de forma ingénua, como se a mentira fosse uma segunda pele. Gosta tanto da mentira que não a consegue abandonar quando lhe é exigida a verdade. O horror que o escritor tem às entrevistas nasce deste apego doentio ao delírio, à invenção, uma vontade irrepremível de ser outra coisa qualquer que não ele próprio. Vila-Matas, instalado (ele diz) na sua casa em Barcelona, respondeu às perguntas da jornalista. Incauta, imprevidente, que deixou cair todos os trunfos que tinha na manga. Deixar que o escritor responda por escrito a perguntas sobre a vida é um convite aberto à falsificação, à invenção de outra vida. Um escritor a falar, por outro lado, é quase sempre um peixe fora de água, tentando sobreviver no meio hostil da palavra falada. Há hesitações que se lêem nas entrelinhas, ausências, contradições. Nem o mais hábil dos escritores consegue ser coerente quando fala. E esta incoerência, para a felicidade do leitor mais atento, aproxima-se tanto da verdade que quase a pode substituir na perfeição - o caos da linguagem substituindo o caos da vida humana, bela utopia.
Mas Vila-Matas deu por escrito as respostas, e ninguém pode afirmar com certeza o grau de realidade que elas deixam passar cá para fora. Ele fala de uma crise pessoal; e qualquer crise leva a uma transformação, a uma mudança. Que, continua ele, se começa a notar na sua escrita. Espero para ver, mas desconfio. No caminho que Vila-Matas decidiu percorrer havia apenas um final a assinalar; e esse fim, o da literatura como espelho da imaginação e daquilo que diferencia os seres humanos do resto dos animais, conduzia ao desepero da não-produção. Vila-Matas, ao questionar os fundamentos do seu ofício, questionava a sua própria existência. Sentiu na pele a resposta da vida que imitava - resistiu ao niilismo (diz) e reecaminhou a sua escrita noutra direcção. Entre a sensatez da derrota e o absurdo do desaparecimento, fez uma escolha, contrariou a decisão do seu herói Robert Walser.
Eu bem posso continuar a escrever sobre uma ficção. Nunca saberei ao certo.

[Sérgio Lavos]

Hotel Memória

Jefferson Hayman Avenue


Perante o mais recente romance de João Tordo, Hotel Memória, devemos deixar de lado os preconceitos e fazer uma suspensão das crenças tradicionais quanto ao uso hiper-feminino do cor-de-rosa "esta coisa de olhares a contracapa de um livro e teres a fotografia do autor, a descrição sumária do enredo e da sua vida, quantos filhos tem e onde é que costuma jantar, torna tudo um bocadinho previsível"(p.35). Não julguemos a capa de um livro por critérios de cor mas também não esperemos uma surpresa porque este livro não surpreende quem lera o anterior Livro dos homens sem luz (Temas e Debates, 2004). João Tordo continua a possuir o ânimo de quem sabe contar bem uma história não escondendo as influências directas: como o anterior livro, Hotel Memória é inspirado de um modo claro, e por isso honesto, em Paul Auster e na incompreensão do poder que o acaso tem. João Tordo sabe manter a coerência numa narrativa comandada por relações livres entre factos e personagens, mantém a procura por determinadas atmosferas ficcionais oníricas e demenciais por onde caminham personagens perdidas ou em expiação, como o narrador, Ismael de Moby Dick ou um verdadeiro Bartleby luso.


"Quando a conheci já ela trabalhava para um morto. Soube-o mais tarde, mas só passados três anos fui capaz de descobrir as linhas invisíveis com que tudo se encontrava ligado" pág.9

Hotel Memória, QuidNovi, 2007, 224 p.

[Susana Viegas]

15/02/07

A ocupação dos dias

Não tenho tempo para tudo. Não quero ter. Tempo para tudo. Não quero ter lençóis de tempo a cobrir os dias. Entre trabalho e casa, uma distância ocupada sempre com mais trabalho, menos tempo. Um homem com a vida nas mãos acaba por perder o jeito. O contacto com a sua essência. O tempo livre limpa o gosto da vida da boca. Um homem sozinho, entre paredes e angústia, é o rasto de uma pedra na água. Entre a queda e o desaparecimento, quase nada.

[Sérgio Lavos]

14/02/07

Deus me livre

Um gajo morto pode estar mais vivo do que muitos vivos sem vontade de viver. Será que as sessões espíritas vão continuar?

[Sérgio Lavos]

Complicado

Thomas Mann, a determinada altura, emprestou um dos livros de Kafka a Einstein. Este devolveu-o, dizendo-lhe: "Não fui capaz de o ler; o cérebro humano não é assim tão complicado."
Tarde demais para apreender o alcance da historieta; limitei-me a esboçar um largo sorriso.

[Sérgio Lavos]

13/02/07

Ritmo

O tempo que tenho gasto na leitura de blogues foi roubado aos livros. A outras coisas, claro, de que não sinto falta, mas também aos livros. Ler um blogue, acelerado por um sentido de urgência que corre sempre o risco de desembocar no vazio, não poderá ser o mesmo que ler um livro. Ler um poema num ecrã de computador continua a ser um acto falhado: nunca conseguiremos capturar na perfeição a dimensão totalitária do poema. Se este está guardado num livro, aqui na estante mesmo ao lado, sei que a qualquer momento pode respirar. Estendo a mão, toco-lhe ao de leve, seguro-o com a pinça do polegar e do indicador e resgato-o do sono. Nem é preciso repetir a velha ideia: em cada leitura outro poema nasce, outro romance surge. Na internet existe uma disponibilidade intimidatória. O google pode ser ao mesmo tempo uma benção - se trabalhamos - ou uma maldição de um diabo qualquer da preguiça - se gastamos o tempo em inutilidades de base. Canso os olhos lendo um poema no ecrã, mas já quase não consigo escrever senão directamente no computador. Acedi ao apelo da modernidade e, derrotado, agora dedico-me principalmente ao prazer culpado da procrastinação blogosférica. Confundo leitura e escrita - talvez nunca tenha prestado atenção aos mestres. Mas se elas se misturam no que faço, porque não uni-las em texto?
Nunca um poema será lido num ecrã como o pode ser num livro. Sem a pressa do tempo pressionando o sopro de cada verso. Entre contradições e fraquezas, deixo que fiquem ali, ao alcance da mão, os meus poemas. Ganhando corpo até à próxima leitura.

[Sérgio Lavos]

Arcade Fire

É claro que a principal razão dos Arcade Fire serem tão bons é explicada pela genética. Esqueçam os genes perdidos dos Abba e de David Bowie, ou até mesmo dos New Order. O património dos Arcade Fire é maioritariamente herdeiro dos pais Pixies. Eles disfarçam. Conseguem escrever uma canção que junta nos seus quatro minutos múltiplas referências que se cruzam até o som ganhar uma espessura de uma originalidade decisiva. Mas deixem-me ser óbvio: o "Hey" gritado por Win Butler apenas pode ser uma citação directa de Black Francis. O resto da música, mesmo a bateria tocada ao estilo de Stephen Morris dos tempos dos Joy Division, metronómica e reverberativa, vai crescendo e afastando-se da base parental, mas isso é apenas normal - todos os filhos, mesmo os dilectos, se querem diferenciar dos pais. A tocar durante os próximos tempos, (provavelmente) a melhor banda dos anos 80 e o seus descendentes nesta década.

(Note-se que a versão de No Cars Go é a que está no EP - a versão do álbum tem arranjos diferentes, menos crus. Ainda não decidi de qual é que gosto mais.)

[Sérgio Lavos]

Tempos modernos

Há um livro que li há anos, mas nunca o cheguei a ter nas mãos. Percorri-lhe as artérias. Conheço-lhe os segredos. As personagens: mulheres, três mulheres cruzando o tempo da narrativa - a construção da memória. Sei o nome do autor. Alguém com o mesmo nome escreveu poemas por onde passei os olhos - em tempos. Tentei obter o objecto físico, os cadernos cosidos, a capa. Ler o resumo, a nota biográfica, se a houvesse, sentir a tinta dos caracteres sob os dedos. Marcar as páginas. Usar o livro. Deixar assentar sobre o papel o cheiro dos meus dedos. Percorri várias livrarias em Lisboa, pedi a um amigo para me trazer de França. Não o encontrou. Conheço-o tão bem. Fala do silêncio e da névoa, do tempo debatendo-se na margem oculta de um rio. Foi-me apresentado por Umberto Eco enquanto passeávamos por um bosque de veredas fechadas sobre si próprias. Chama-se "Sylvie", e foi escrita por Nerval. Amanhã sou capaz de encomendar a casa onde ela mora a uma livraria on-line.

[Sérgio Lavos]

12/02/07

Dirigir

Mas é bom não cometer uma injustiça, principalmente comigo próprio; nunca um material de base tão sentimental e moralista foi tão bem trabalhado no cinema. "As Pontes de Madison County" é um dos grandes filmes de sempre, também pelo facto de Eastwood ter ultrapassado com uma sensibilidade masculina a toda a prova as debilidades lamechas do argumento. A mise en scène é tudo.

[Sérgio Lavos]

Família

Acabar o dia do referendo a ver um filme que acaba por ser um hino aos valores familiares (e à inocente hipocrisia que esses valores podem evocar), "As Pontes de Madison County", não é apenas uma ironia; é um reforço das convicções que decidiram o meu voto.

[Sérgio Lavos]

Maus augúrios

Será o problema apenas do exemplar que comprei, ou sofrerá o novo Público os sintomas de um sindroma semelhante ao que uma personagem do filme "Deconstructing Harry" padecia: ver o mundo out of focus?

[Sérgio Lavos]

Yes, oh, yes!

O pequeno abalo na mentalidade portuguesa que se fez sentir durante o dia de ontem só hoje teve repercussão nos sismógrafos. Esperemos que os efeitos se prolonguem durante as próximas décadas do século em que agora entramos.

[Sérgio Lavos]

10/02/07

Comércio tradicional

Terão já chegado às dezenas os blogues transformados em livro, quase todos com pouco ou nenhum sucesso no mercado. O Meu Pipi é a mais óbvia excepção; porque era novidade. E porque estava (está?) mesmo bem escrito. E porque foi publicado numa altura em que a maior parte das pessoas não sabia sequer o que era um blogue. Alguns anos depois, as editoras continuam a apostar no sexo. Nos últimos meses, vários livros, assinados por "dominadoras", "felinas" ou simplesmente mulheres casadas em busca da glória vã de ver o nome (ou o pseudónimo) numa capa, têm aparecido e desaparecido a um ritmo constante das livrarias - dois meses é a fronteira. Livro que resista a este tempo tem um sucesso mediano garantido. As editoras esforçam-se, multiplicam-se em acções de marketing, promovem juntos dos jornais o próximo fenómeno editorial. É a sua obrigação. Mas tudo cansa. O sexo cansa, a leviandade também, e a verdade é que a libertinagem não está ao alcance de todos; vivemos num tempo em que o puritanismo é sublimado através do seu oposto: o exibicionismo pornográfico. A distinção entre privado e público não se esbateu, e os vícios continuam a ser ciosamente guardados. A libertação sexual também se pode simular. Escreve-se um blogue, edita-se em forma de livro, usa-se um pseudónimo. Se correr mesmo bem, algumas aparições em jornais com muito teasing e frases caídas na altura certa aguçam o apetite do leitor e espicaçam o puritano, seja o verdadeiro conservador ou o que se afirma liberto sexualmente, donas-de-casa de classe média tentando agradar ao marido - e assim perpetuar a dominação masculina - ou quarentões a passar pela andropausa em busca de uma excitação que vá além da mera pornografia. Mas nem todos são pipis. E o livro vendeu, apesar da mão na boca escancarada de vergonha de muitas mulheres, porque os homens o compraram. E porque, repito, estava bem escrito. Caro editor da Palavra (finalmente cheguei ao ponto do texto), um livro escrito por uma prostituta dificilmente chegará a algum lado; os homens não a respeitam - mesmo que espreitem o livro - e as mulheres invejam-na ou desprezam-na. A caridade antropológica também não é razão suficiente para tornar o livro um sucesso. Dito isto, a coisa até tem algum sentido de humor - mas nenhuma novidade. E que longe estamos da imagem do libertino. Do asco que Sade consegue provocar, da violência ritualizada de Sacher-Masoch, do despudor criminoso de Pierre Löuys. E, falando de mulheres, da provocação de Pauline Régae (pseudónimo de Anne Desclos) e da sua Histoire d'O, manifesto masoquista relutante que continua a provocar revirar de olhos a feministas militantes. Falamos de comércio. A liberdade sexual não passa por aqui.

(O livro em questão é A Tua Amiga, a autora é Maria Porto - pseudónimo, claro.)

[Sérgio Lavos]

09/02/07

De ilha em ilha

Vale a pena ler o José Quintas, a meio do caminho de pousio que tem sido o blogue Branco Sujo desde o início. Todos os textos sobre o aborto. É sério. Muito a sério. E, principalmente, bem escrito.

[Sérgio Lavos]

08/02/07

Lição nº3

Chega de complacência.
Com muita paciência, disseco o cadáver exposto, à minha frente. De bisturi na mão, tique nervoso mais calmo, olho atento. A anatomia não é apenas uma arte plástica; trata da semântica do corpo, a única que pertence ao domínio do sagrado. Mas não se fala nem de carne nem de nervos. Não nos referimos ao sangue e às artérias em que circula.
Há algum asco, claro. A limpeza dos ossos, depois de descarnados, é demasiado clara. Mas quando me deparo com as vísceras e a violência da nudez implícita, sinto uma aversão imparável.
Detecto os defeitos, os erros, os desvios, as diferenças em relação ao atlas que conheço de cor. Não me consigo perdoar a angústia; da influência? Da influenza, sem itálico e com muito espirro à mistura. Nada é igual nunca. Tudo se toca, tudo se cruza em tangentes breves e agudas. Há a revolta do estômago, o órgão que mais sofre - não cedo aos instintos da mundanidade, e por isso não menciono o coração (antes já o fiz de um modo que facilmente se podia qualificar de dissimulado).
Já sem muita paciência, detecto, ligeiro, um sentido na sintaxe da obra; dura pouco, a sensação. Ah, que belos e rápidos segundos. Mas depois a aversão, o asco. Um período de nojo para cada letra, cada palavra, cada frase. Uma página em branco em vez do cadáver à mesa do jantar. Árdua refeição de metáforas e derivações estilísticas. Azia e enjoo.

[Sérgio Lavos]

Lição nº2

Falemos de ficção, portanto. Imagino um homem com certezas absolutas. Certo dia, contaram-me, entreabiram-lhe a porta errada. Deparou com um mundo onde nada era estável, tudo a cada momento mudava. Não interessa aqui falar da reacção de surpresa, não é importante saber de que modo o mundo mudava. Imaginemos apenas que, de cada vez que o olhar regressava ao que antes fora visto, a realidade se transformara em outra realidade diferente. Não conhecemos - nem queremos conhecer - a natureza da mudança. O que fez o homem para se adaptar ao novo mundo? Intuiu que não seria suficiente reorganizar-se de acordo com as diferenças que se sucediam. Talvez a instabilidade não fosse assim tão insuportável; mas achava que, em vez de ser ele a acomodar-se ao mundo, deveria ser o mundo a moldar-se a ele. Permaneceu parado durante um tempo que pareceu interminável. As mudanças continuaram. O instante eterno que se passou nesta imobilidade absoluta não poderia ter demorado mais que alguns breves segundos. A natureza do tempo também se alterara. Mas como antes nunca chegara a entender qual seria verdadeira natureza do tempo, não reparou na diferença. Quase sem dar por isso, acordou do seu sono indeterminado e moveu-se. As mudanças não cessavam de mudar. Havia sempre o problema dos dois espaços em movimento: o do mundo instável e aquele que o seu corpo ocupava no mundo. Decidiu então acelerar de um modo louco a velocidade dos seus movimentos. Se não conseguira bater a mudança através da pausa, teria êxito recorrendo ao avanço. O ritmo frenético dos dois movimentos cresceu de forma tão imprevisível que, a dada altura, homem e novo mundo eram uma mancha difusa, una e indivisa, se vista de longe; se olhada de perto, no entanto, continuavam a ser duas entidades distintas. Até que o homem parou, antes de ter pensado em parar. Retrocedeu. Encontrou a porta de entrada no novo mundo. E saiu.

[Sérgio Lavos]

07/02/07

Lição nº1

Já foi escrito tudo sobre tudo. Sobretudo foi escrito mais sobre o nada do que sobre o resto que o rodeia. Há relatos de matemáticos que se fecharam durante anos em laboratórios calculando o número. O número. Mágico, o número mágico. As possíveis combinações de palavras que podem acontecer numa língua. Em que língua? Interessa? Há uma dedicação infantil dos linguistas ao credo da gramática universal. Vamos acreditar portanto no deus Chomsky. Há uma língua universal e um número limitado de combinações possíveis de palavras dentro de uma frase, uma quantidade definida a priori de frases juntando-se para formar um texto. É normal que se escreva muito sobre nada. Como também é natural que escreva sobre as relações humanas, mais cedo ou mais tarde teria de acontecer. Apesar de pouco sabermos de nós próprios, fazemos questão de conhecer quem nos rodeia. Nem no solipsismo, a nossa segunda pele, estamos sossegados. Inventamos existências para os outros, recriamos combinações possíveis de palavras de modo a formar frases que se distanciem o mais possível da realidade. Realidade é o que excede o nada que se forma no centro da gramática; tem carne e matéria e sentimentos, ainda que estes apenas se possam erguer do caos material com a ajuda da gramática. Imagens? Dispersão dos sentidos em torno de um tema menor, variações sobre a crença numa divindade que substitua a contento as antigas. Não precisamos de Deus, observamos os quadros nos museus; a metafísica exige pouco: um ou dois frames de Tarkovski brilhando numa sala escura ou três movimentos de câmara de Hitchcock, dez segundos de Mahler ou um verso cantado por Morrissey; o silêncio e o suspiro antes de Jeff Buckley começar a cantar o Hallelujah.
E depois escrever sobre isso.

[Sérgio Lavos]

A ler

Alguma da melhor prosa curta (crónicas?) actual está - também - na blogosfera: dois textos exemplares de Rui Tavares no Cinco Dias. Com o tempo certo para a leitura.

[Sérgio Lavos]

06/02/07

IVG (4)

Gostaria de achar que o serviço público prestado por Fátima Campos Ferreira no debate sobre a despenalização da IVG, ontem à noite, vai muito além dos efémeros 5 minutos que prolongam o efeito catatónico de uma discussão que não teve nada de esclarecedor e tudo de político. Não vale a pena acusarmos a apresentadora de sectarismo; a questão ultrapassa esse âmbito. Meses e meses de argumentos, repisados e gritados e bem ou mal explicados redundam em meia-dúzia de soundbites atirados de forma emocional à cara do espectador que, lamentavelmente, ou estava ainda a assistir a uma novela num dos outros canais ou já se tinha deitado há muito.
A realidade é esta: a mulher que faz abortos, essa fenomenal abstracção que de cinco em cinco em minutos era trazida à baila pelos partidários das duas posições, estava ou a tratar do marido e das crianças ou a descansar para mais um dia de rotina repetida: levantar, perder o tempo em transportes públicos, trabalhar, chegar a casa, tratar de tudo, deitar-se. No intervalo da rotina, um ou outro percalço resolvido com pouco tempo e nenhumas condições na abortadeira da esquina. Regresso à canseira, à rotina, uma ou outra espreitadela à novela da noite, aflições, sofrimento nada abstracto que nem quem decide leis nem quem se indigna a propósito da vida imaginam muito bem o que possa ser. Nem se interessam. Como a mulher que faz abortos não se interessa. Não se trata de uma questão de consciência; como disse Beatriz Batarda ao Público trata-se ainda, apesar da sociedade de consumo em que vivemos, da velha luta de classes.
As razões que não me permitem achar que a despenalização do aborto seja uma coisa intrinsecamente boa - razões que passam muito pela sensação clara de que existe uma continuidade entre um feto e uma criança, e aqui já não consigo separar a ideia da realidade: senti o meu filho como tal desde que tive conhecimento da sua existência intra-uterina. A minha ética pessoal é esta, neste assunto. Mas nunca poderei achar que os meus valores se poderão sobrepor a uma coisa muito simples: o sofrimento de quem aborta por necessidade extrema, de quem não tem condições, por uma razão ou outra, para criar uma criança.
O problema não é, ao contrário do que muitos afirmam, penalizar quem aborta. É antes aceitar os valores de quem aborta, impor-lhes um limite - temporal, no caso - e criar as condições para que tudo aconteça em segurança e na plena consciência do acto que se está praticar. Falamos da realidade concreta. A proposta da descriminalização que os partidários do "não" inventaram é politiquice da pior, inconcebível no debate em questão. Não mudar com a promessa de que se muda depois, para ficar tudo na mesma. Ajudaram-me a decidir o sentido do meu voto. Votarei SIM.

[Sérgio Lavos]

03/02/07

Vigília


Não será muito natural contrariar a tendência para o silêncio que o melhor cinema pode perseguir. Nem sequer o carácter mágico, o sentido misteriosos dos melhores filmes que vemos. Durante o tempo que dura um filme, a realidade entra em modo de suspensão, e aceitamos tudo, ou quase tudo, o que aparece no ecrã.
O que surpreende, nesta banalidade, é a resistência que encontramos a obras que melhor representam a realidade tal com ela é. Quando o cinema se afasta do cânone de hollywood e se aproxima da reclusão do real, assume o risco de falhar no seu objectivo mais imediato: o escapismo. Mas quando um filme falha nesse objectivo, é quase sempre por boas razões. A intemporalidade de um filme dispensa o uso de muletas que prendam o espectador ao que vê. Como na literatura, quanto mais o filme exige do espectador, mais recompensador se pode tornar. As discussões em torno da eficácia comercial de um filme são, por isso, sempre redundantes. O problema não está no realizador que propositadamente fabrica um objecto para um público o mais abrangente possível; está no público que não exige mais da arte que lhe é oferecida. Qualquer autor que não prescinda da sua visão de cinema sabe que o que menos interessa são os números das bilheteiras.
Existe o silêncio, e existe o sonho. O primeiro encontra resistência, o segundo incompreensão. Quem não consegue entrar numa sala de cinema sem esperar menos que uma realidade virada do avesso, sem exigir nada menos que um sonho com a duração do tempo de um filme, nunca terá nada menos que banalidade do real à saída da sala. E não merece mais do que isso.


[Sérgio Lavos]

02/02/07

The Good, the Bad and the Queen

Não há muitos heróis que tenham sobrevivido ao declínio da britpop versão anos 90, mas se tivermos que apontar um nome que continue a resistir às areias do tempo, terá de ser Damon Albarn. Quem, desde o início, achou os Blur herdeiros de uma costela decente da música britânica, que ignora a pose laddish da maior parte dos projectos surgidos nas ilhas britânicas, e não me estou apenas a referir aos Oasis, a banda mais imbecil - no sentido de não aproveitar os méritos que, num dia bom, pode apresentar - da pop inglesa, apenas pode sentir um apelo de ternura perante o caminho que Albarn trilhou desde os anos 90. É bonito de se ver, muitos que sempre desprezaram os sons dos Blur, tecerem loas aos Gorillaz e agora aos The Good, the Bad and the Queen. Nem vale a pena falar do bom-gosto na escolha dos amigos que o acompanham, que isso é uma qualidade que qualquer socialite minimamente responsável pode adquirir; o fundamental são as canções, e o principal responsável de tanto caso de sucesso na composição é Damon Albarn. Depois do adeus à segunda metade criativa dos Blur, Graham Coxon, que se tem esforçado por mostrar que não basta ter bom gosto e talento para tocar guitarra para ser um grande músico, Albarn arrancou para a aclamação crítica, com ou sem reticências.
Para ouvir durante os próximos tempos (ali do lado direito), 80's Life. Um doce retro para degustar com vagar.

[Sérgio Lavos]