29/12/06

IVG (3)

Uma semana fora dá para perceber a verdadeira dimensão da blogoesfera: quase nula. Enquanto os telejornais desfilavam diariamente notícias oscilando entre o irrisório e o sensacionalista, os blogues mais políticos divertiam-se em polémicas artificiais só para manter o ritmo e os leitores diários.
Um exemplo: a campanha em andamento para o referendo à despenalização da IVG. Não é assunto do quotidiano, as pessoas não se preocupam, desconfio mesmo que, se o resultado pudesse ser decidido em consequência da inacção cívica, o aborto há muito que teria sido despenalizado. O referendo de 1998 foi ganho pelo campo que mais lutou pela sua causa. De resto, compreende-se que haja pouca vontade de lutar por um assunto que, quase sempre, não chega a ser problema para a maior parte dos cidadãos. Nos dois lados, o combate torna-se, portanto, ideológico. O empenho mostrado é quase sempre inversamente proporcional ao volume de reflexão que está por detrás dessa energia.
Mas eu julgava que nos blogues seria diferente. Achava que o espaço liberto de que usufruimos seria fundamental para o esclarecimento lúcido de todas as questões em torno do assunto. Engano meu, claro. A blogoesfera, na sua confessa pessoalidade, acaba por receber de braços abertos aquela máxima que, numa discussão, defende o sacrifício da verdade em prejuízo do estilo. Ora, por muito que se aprecie os dotes de um bom polemista, não há paciência para os engraçadinhos e os demagogos num debate que devia continuar sério. O campo do "não" agradece a fraqueza, até porque o moralismo não perde uma oportunidade para mostrar os seus verdadeiros dentes.
Não espero novidades da parte de nenhum dos movimentos que prosseguem a sua campanha em outdoors e acções mediáticas - e acaba por ser penoso ver o tema ser tratado como uma vulgar campanha eleitoral. Mas isto são antigas histórias. O ponto principal, averiguar da utilidade de referendar uma questão de consciência individual, foi distorcido em tempo devido pelo moralismo preconceituoso dos movimentos do "não". O que resta é o que, diariamente, vemos e lemos. E não é muito.

[Sérgio Lavos]

Michel Houellebecq

Ler um livro de Houellebecq (e Extensão do Domínio da Luta é, provavelmente, o melhor) não é uma experiência limite. Mas a desolação e a descrença que transpiram das suas personagens tornam muito difícil qualquer tipo de antipatia em relação ao escritor. O mundo de Houellebecq é um mundo sem esperança, sem fé nele próprio, sem qualquer tipo de ilusão ou vontade de acreditar num futuro que seja ligeiramente melhor que o presente. Qualquer semelhança com a realidade apenas pode fazer sentido - nesta quadra natalícia, decisivamente. A misantropia de Houellebecq, entre as tendências autobiográficas e um niilismo que encontra em todos a depressão que ele transporta, raramente chega a ser irónica. É cruel e depreza a banalidade da vida, da classe média, dos valores de uma sociedade decadente. O inferno são os outros, em absoluto, e o indivíduo que perde qualquer traço de personalidade ou independência de espírito perante a avalanche medíocre do resto da sociedade. O leitor chega a sentir pena dos pobres desgraçados que Houellebecq transforma em anti-heróis dos seus romances. Apesar dos defeitos, das acusações. Da polémica.
Não será um acaso o facto de Houellebecq ser francês, órfão de uma literatura que perdeu o viço há muito. Lemos um romance escrito por um inglês ou norte-americano e admiramos a vitalidade permanente da escrita e a força das personagens, uma certeza definitiva que tem que ver com a dinâmica de domínio da cultura anglo-saxónica no mundo globalizado de agora. A França, potência em perda, produz uma cultura de acordo com a decadência progressiva a que se vai habituando. Que o escritor francês contemporâneo mais conhecido fora do país seja alguém como Houellebecq não é apenas um sintoma - é toda uma patologia. A doença dos tempos modernos.

[Sérgio Lavos]

Ponto da situação

"Entretanto resta-lhe algum tempo livre. O que fazer? Como aplicá-lo e em quê? Consagrar-se ao desígnio de outrem? Mas, no fundo, os outros não lhe interessam. Ouvir música? Seria uma solução, mas com o passar dos anos temos de convir que a música estimula cada vez menos. Os biscates, num sentido mais lato, podem representar uma alternativa. Porém, nem a boa vontade pode impedir o retorno cada vez mais frequente destes momentos onde a solidão absoluta, a sensação de vacuidade universal e o pressentimento de que a existência se assemelha a um doloroso e definitivo desastre premeditam o mergulho num estado de verdadeiro sofrimento."

Michel Houellebecq, in Extensão do Domínio da Luta (ed. Quasi)
[Sérgio Lavos]

22/12/06

That was the worst Christmas ever

Sufjan Stevens tem um cd de Natal com algumas versões e também algumas canções originais escritas exclusivamente para esta época do ano que, diz ele num dos textos que acompanha o conjunto de cds, apesar de odiar aprendeu a gostar.
Aqui fica a música gravada no concerto dado em Dublin em 01 de Novembro de 2006 onde Sufjan se fez acompanhar do Pai Natal.

That was the worst christmas ever. Obrigado Armando.

[Susana Viegas]

19/12/06

Videografias 5


Após uma regular actividade com diversos músicos ao longo da década de 80 e parte da década de 90, David Fincher (n.1962) fez uma pausa para se dedicar às longas metragens tendo com Se7en conquistado a fama e surpreendido o mundo. Assim, encontramos a sua marca típica em Alien 3 (1992) para se seguirem êxitos cinematográficos com qualidade como Se7en (1995), The Game (1997), Fight Club (1999) e Panic Room (2002). A nível cinematográfico, Fincher consegue o prodígio de se manter fiel e dedicado a um tema muito próprio: a perigosidade do Outro. Na verdade, o Outro, ou o Si próprio como um Outro, é sempre um elemento perverso, perigoso, entrando em jogatinas com um bem existencial sem repetição, a existência de cada um. E, será em parte devido a este confronto que preferíamos evitar, que os filmes de Fincher são tão perturbadores porque colocam o niilista espectador em que nos tornámos perante uma moralidade litúrgica que nos parecia ser tão distante e ausente.
[Como se não bastasse, David Fincher consegue ainda fazer anúncios comerciais como ninguém (ver YouTube).]
Com os Nine Inch Nails (Coliseus em Fevereiro) e este video Only, David Fincher entra numa lógica artificial juntando a animação por computador com um brinquedo infantil onde surge o rosto de Trent Reznor, filmando ondas sonoras repercutindo na matéria envolvente, dando densidade a uma música com um forte carácter industrial. Os únicos elementos biológicos são as maçãs verdes e a mão que dita o play.

[Susana Viegas]

16/12/06

Viajar

Longas viagens de comboio, ao contrário do que me dizem, não são necessariamente um mal. O corpo habitua-se, e dá para ir vendo a vida compactada em páginas, ou, sem metáfora à mistura, ler livros e jornais sem culpa e com tempo em abundância.
A entrevista de Alexandra Lucas Coelho a Luandino Vieira tem o mesmo ritmo de uma viagem de comboio - ainda assim, dura menos do que esperamos, do que desejamos. Surpreendido pela reclusão interrompida ou pela fama desprovida de razão de que o escritor gozava - imagino que haverá alguma cedência à vaidade nesta conversa com o Público. E sei que o prémio foi recusado - parece-me que por razões práticas, sem mais.
Enquanto as páginas dos suplementos de literatura dos jornais forem ocupadas com peças como a de hoje (e o gozo da crónica de Mário Santos, claro - por favor, não o publiquem. Ele não precisa de concorrer com objectos que nada têm que ver com literatura. Deixem-no com a sua biblioteca de papel semanalmente alimentada.) Escrevia (não dizia) que enquanto as páginas dos suplementos não forem tomadas de assalto pelas brigadas dos clones de livros que surgem debaixo de cada pedra em que se tropeça, não estamos completamente perdidos.
Como poderá alguém não defender a protecção da criação marginal? Se é aí que reside a força de qualquer arte, da literatura à música, passando pela pintura ou o cinema. Quem cria tendo em mente um gosto abrangente e universal, corre sempre o risco de produzir repetição, nunca gerar diferença.
Luandino Vieira (conversa política à parte, mas raramente os escritores conseguem entender o mundo que os rodeia) fala como escreve, caminha como fala - e escrever é quase sempre um exercício de redundância e fuga, aproximação e reencontro, um passeio pelos campos que nos são familiares.
O comboio chega à estação, é noite perdendo-se na noite. Fecho o jornal e saio.

[Sérgio Lavos]

14/12/06

Videografias 4


Do universo de Wong Kar-Wai à tradição oriental do cinema de artes marciais a distância é curta. A música ajuda; Dj Shadow citando James Bond, cortando e colando uma voz de R'n'B a uma batida hip-hop saturada. Os ambientes cinematográficos que a música evoca têm a sua plena justificação nas imagens criadas pelo realizador de Hong-Kong. O ultra-romantismo pintado a cores saturadas, personagens que vivem entre a sombra e a mancha difusa dos néons, na margem que separa o Ocidente do Oriente. Wong Kar-Wai talvez tenha atingido a perfeição quando serenou a inquietação urbana que se tornara marca distinta e conferiu uma densidade clássica aos seus filmes - primeiro com In The Mood for Love e depois em 2046. Mas foram as suas obras dos anos 90, Anjos Caídos e Chungking Express, que se tornaram ícones de um determinado Oriente que, com o regresso das colónias britânica e portuguesa ao seio da China, se questionava sobre a sua identidade perdida. O cinema contemporâneo, arte transversal e símbolo da globalização, tornou a decadência ritual de passagem entre a juventude e a idade adulta. A perda e o desencanto, redimensionados pela paisagem urbana entre a ruína e o high-tech, são os novos deuses desta juventude perdida, captados por Wong Kar-Wai na sua perfeição caótica. Do minimalismo lacunar à velocidade saturada. Six Days, de Dj Shadow. Em imagens.

[Sérgio Lavos]

Dobra (2)

[foto: Sérgio Lavos]

Dobra

[foto: Sérgio Lavos]

Eu vi a luz

Não se deveria estar a celebrar a nomeação de Maria José Morgado para dirigir a investigação no processo "Apito Dourado". Não se deveria, mas fazêmo-lo. Uma velha mania nossa, esperar por salvadores surgindo da bruma. No horizonte vazio da Justiça portuguesa, não se vislumbrava mais nenhum nome que pudesse assegurar a credibilidade necessária para o nosso cansado coração, farto de magistrados candidatos a lugares no Conselho de Justiça da FPF, de escândalos que se arrastam pelos tribunais e pelas mãos de investigadores e procuradores em busca de fama e protagonismo.
Vamos lá, agora é só fazer fila para agradecer a dona Carolina. Seis milhões de portugueses (os benfiquistas) regozijam com o desafio e o saudável hábito de lavar ao ar livre a sujidade que carregou durante seis anos - e ainda têm como bónus extra um vislumbre da intimidade partilhada com Jorge Nuno.
A última semana fez-me acreditar piamente na deriva dos continentes. Em poucos dias, Portugal conseguiu galgar os milhares de quilómetros que o separam das repúblicas sul-americanas, deixando para trás a cómoda civilização europeia. E os portugueses brindam ao facto, dirigindo-se a correr em direcção às livrarias, entre a euforia da pertença e a celebração da vingançazinha, entre o delírio da devassa e a alucinação da descoberta da verdadeira alma de um povo. Nunca uma livraria se pareceu tanto com uma capelinha dos devotos - magotes de basbaques fazem romarias para comprar o livrinho de que toda a gente fala.
Mas tudo passa. Semanas se perderão sobre semanas, Carolina vai ser esquecida, Jorge Nuno continuará o seu papado, imune ao fervor religioso dos milhões que esperam a justa retribuição depois de tantos anos de suspeita - e de derrotas. Irá ser acusado, condenado? O clube que dirige irá ser castigado pelos seus despautérios? Não brinquem. O futebol é uma outra galáxia, com as suas próprias regras de conduta - ou talvez não; talvez se pareça demasiado com o resto do país. O problema não é dos dirigentes desportivos. É do português comum, ao dar mais importância ao futebol do que à política ou ao estado da nação e das instituições que a governam.
O futebol é mau. O país é péssimo. Coragem, um pouco mais de esforço para bater no fundo!

[Sérgio Lavos]

13/12/06

Videografias 3


Hal Hartley transporta para os videos que realizou todas as características icónicas dos seus filmes: o vazio circundante das personagens, a crueza inexpressiva de quem se aborrece.Ou de quem quer mudar de vida. É o herdeiro directo da nouvelle vague.
Com Beth Orton, Stolen Car (1999), foi simples e vazio, demasiado ingénuo na falta de cenário, adereços, cor, movimento. O minimalismo independente americano foi levado a um extremo do desinteresse estético não ajudando a beleza melódica de Beth Orton.
Já com os Yo la Tengo a relação foi, desde o início diferente, porque nos filmes de Hartley a música é tão importante como as imagens. Os Yo la Tengo participaram com diversas músicas para a banda sonora dos filmes Amateur (obra-prima de Hal Hartley), Simple Man e ainda para The Book of Life (Martin Donovan e P.J.Harvey). Com o video para From a Motel 6 (1994), Hartley consegue-se ruborizar e, com algum sangue a correr nas veias, realiza um brilhante video, em harmonia com o som indie das guitarras.

[Susana Viegas]

12/12/06

A dona Carolina

Não vale a pena reclamar: o negócio dos livros raras vezes tem que ver com livros. Quem se surpreende agora com a D. Quixote e a decisão de editar o vomitório da senhora do Calor da Noite não conhece a regra máxima de qualquer empresa: o lucro, a qualquer custo. E o livro, fulminante, vende que se farta - já voou a primeira edição. Quem o compra? Não se julge que é apenas o médio leitor da Bola. Eu vi muita gente respeitável com ar mais que comprometido perguntando pelo objecto em questão, e quase que jurava que não o queriam para fins sanitários. A alma portuguesa é assim, ao mínimo desvario cobre-se de vergonha.

[Sérgio Lavos]

Onésimo

No Miniscente, um texto de um dos prosadores mais elegantes da língua portuguesa de agora - Onésimo Teotónio Almeida, que conheço dos tempos vivos da agora comatosa revista Ler. Dêem-lhe um pouco do vosso tempo, vá lá, que a blogosfera não é só textos com meia-dúzia de linhas.

[Sérgio Lavos]

11/12/06

Na morte de um caudilho

Na morte de Pinochet, os mesmo velhos hábitos de sempre. Alguns dias depois da esmagadora (e democrática) vitória do folião Chavez na próxima Venezuela - e ninguém poderá negar a força das ironias da História. Passando os olhos pelos blogues de direita, nada muda. A lamúria não é abertamente confessada, mas quase que se adivinha uma lágrimazinha no canto do olho em alguns defensores das reformas económicas que foram levadas a cabo pelo general chileno - e da limpeza apriorística do sujo comunismo do proto-ditador Allende. Há números e números, há ditadores e ditadores, e há esse saudável hábito de desculparmos os excessos dos que estão com o coração do lado certo - seja direito ou esquerdo - com as atrocidades dos outros. Pinochet matou três mil e encarcerou incontáveis milhares? Castro também o fez, Chavez faria-o se pudesse. E Pol Pot. E Kim Il-Sung. E Estaline. A esquerda riposta do mesmo modo. Castro persegue os opositores políticos? E a ditadura de Fulgencio Batista, era melhor? E Guantánamo? E a miséria do Capital?
Sejamos claros: provavelmente, André, irá suceder o previsto. Quando Castro morrer, muitas vozes que celebraram o desaparecimento de Pinochet irão calar-se ou lamentar o fim da utopia cubana. Sabemos disso. E será verdade que em Portugal isso é inevitável. Somos herdeiros de uma revolução de esquerda e de uma geração que se alimentou de todas as utopias revolucionárias falhadas. Mas um parágrafo, um parágrafo que seja, escrito em forma de elegia acanhada ao ditador chileno, basta-me para recusar comparações entre massacres e crimes. O sangue de uns não limpa o sangue de outros. A conversa fiada não me consegue comover - como não me comovem as lamúrias da praxe. De um lado ou de outro.

Adenda: O texto do Rui diz tudo.

[Sérgio Lavos]

10/12/06

Relatório médico

Recupero o bom-humor, mas não a vontade de postar. Desde que começou a chover, todos os domingos uma constipação de dois dias me paga uma visita - é uma tradução literal errada, eu sei, mas é também uma expressão eficaz. Pensei num top com as 5 melhores sequências cinematográficas com comida à mistura, depois restringi para o cinema americano, cheguei a pouco mais de meia-dúzia e ainda não tomei a decisão final. De seguida irei tentar minimizar os estragos que um berbequim nas mãos de um gajo duplamente canhoto pode fazer - ah, deveres domésticos, a quanto obrigam! Este post auto-destruir-se-à dentro de, aproxidamente, três horas. (ou não)

[Sérgio Lavos]

06/12/06

Teoria dos conjuntos

O modo mais correcto de recriar o conhecimento é torná-lo vazio de substância. Imagine-se: um conjunto de frases, que é um conjunto de palavras, que é um conjunto de sons, que é um conjunto de ondas, que é um conjunto de nada.

[Sérgio Lavos]

Julgar

Da série ofícios infernais: recusar sempre o julgamento da acção dos outros; sempre admitir o erro, aceitar a diferença, relativizar a importância de uma opinião, conviver em plena tolerância. Receber de braços abertos o destino reservado: o falhanço.

[Sérgio Lavos]

Apontar

Da série ofícios por cumprir: catalogador de estados de espírito; apontar burocraticamente todas as variações de um dia; não reconhecer em nenhuma linha escrita a condição maldita do ofício.

[Sérgio Lavos]

Pássaros

Da série ofícios nunca cumpridos: fotografar o voo dos pássaros; imagens do céu e sombras escapando ao olho; movimento fixo.

[Sérgio Lavos]

05/12/06

Auto-retrato ficcionado

Foto: Sérgio Lavos

Está patente no CAV de Coimbra a exposição Condições de Possibilidade, conjunto de 79 obras de Jorge Molder marcado pelo grande formato, pela série The Secret Agent (na foto).

Quando, a um canto do Pátio da Inquisição localizamos o CAV - Centro De Artes Visuais de Coimbra- a primeira coisa em que reparamos é no abandono a que foi deixada a instalação de Pedro Cabrita Reis. Às seis da tarde já é de noite e, por isso, mais se evidencia a escuridão desta instalação, criada e recortada pela iluminação. As luzes apagadas, a desolação total, continuação do isolamento que se sente no Pátio. Até custa a acreditar que as movimentadas Rua da Sofia e Visconde da Luz ficam ali tão perto.

Quanto à exposição, estava deserta. Éramos os únicos, além das funcionárias, apesar de ser Domingo, apesar de ser gratuito. O mote da exposição remonta intencionalmente a Immanuel Kant e às condições de possibilidade do conhecimento humano. Por isso, encontramos auto-retratos, identidade e desfiguração, taxinomias que lembram Goethe, sequências de imagens fixas em movimento, aliens, órgãos ampliados e autonomizados como em Buñuel. Inclui ainda um vídeo onde o artista reflecte sobre as relações entre espaço interior/exterior, opacidade/esbatimento, num encontro entre o espaço da exposição e a obra de arte.
Até 28 de Janeiro de 2007.

[Susana Viegas]

Deuses

Um desastroso professor de matemática, no 8ºano, cortou pela raiz o sonho que tinha de um dia me tornar astrónomo. Durante muitos anos, pensei agradecer-lhe o feito. Mudei. Perante o rigor dos números, da fabulosa geometria dos céus, qualquer palavra corre o risco de perder a sua força. Sacrifico a minha vida ao altar do deus mais falível. E nem a essa fraca divindade consigo agradar de forma plena.

[Sérgio Lavos]

Três lados

Num triângulo rectângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos. Colocado no vértice oposto à hipotenusa, tenho os dois catetos prolongando-se até que o lado maior os una. Devia haver uma lição a retirar desta evidência. Mas um triângulo não se apoia em nenhum dos lados - ao contrário do que faz crer a imagem mental (e pictórica) que conhecemos. Antes existe livre num espaço que não existe.

[Sérgio Lavos]

Um rumo

Olhar para trás e observar com a atenção de um geógrafo a linha curva que deixámos traçada na estrada. Um ponto muito distante, que fixámos em tempos como o início da linha. O desvio de noventa graus para lado nenhum. A insistência em metáforas ineficazes, em métodos de produção ultrapassados. Deve ser esta a intenção de um deus ausente.

[Sérgio Lavos]

Podia

Pontuação análoga. Fraseado titubeante. Argumentação debilitada. Pertinência duvidosa. Leitura a conta-gotas. Tudo isto podia ser uma doença do corpo.

[Sérgio Lavos]

01/12/06

Silly seasons

Não conseguimos fugir. Podemos tentar, reclamar, negar com todas as letras, recusar e armar em snobe, que acabamos por cair todos os anos no mesmo erro: fazer compras em centros comerciais em plena época natalícia. Sei que alguns, de entre vós, são mais resistentes do que eu (ou, já agora toda a gente que conheço); mas eu também sei, e ainda a 25 dias de distância, que irei acabar por percorrer desconsolado os corredores tristes, barulhentos e suados de um qualquer shopping apinhado de véspera de Natal.
Santo consumismo! Abençoada mãe de todas as coisas. Multiplicar os presentes oferecidos como se fossem os pães das bodas de Canã, não esquecer ninguém, desde o parente próximo despachado com um embrulho de última hora até a um desconhecido que passa na rua a quem entregamos, acompanhado de uns sentidos votos de feliz Natal, o romance de Lobo Antunes que alguém nos ofereceu o ano passado.
Não, confesso, isto é tudo mentira. Desde a mais tenra infância que fui educado a ignorar o espírito do Natal e por isso somo esquecimentos a amizades nunca devidamente cultivadas. Como passo por católico (não faço eu parte dos 98%?), nem sequer posso usar a desculpa da religião. É, parece que foi há quase dois mil e seis anos que Jesus nasceu. Mas o facto nada tem que ver com o Natal. Agradeço à Coca-Cola, publicamente, o facto de ter tornado a sagrada manjedoura assunto apenas para lugares atrasados de países do terceiro mundo.
Houve um tempo em que havia o Menino Jesus que deixava um presente no sapato. A noite era passada quase em claro, e de manhã corríamos para a lareira desfazer embrulhos e a derradeira esperança de recebermos mais do que uma daquelas meias com raquetes ou um par de cuecas oferecido por uma tia afastada. Agora parece que as crianças esperam a meia-noite na ânsia da prometida consola ou do telemóvel encomendado pelos progenitores ao Pai-Natal.
Sem Deus nem Capital, que divindade me restará celebrar a cada Natal que passa? A resignação e o cansaço. Agasalho-me na doce manta do cinismo e pinto-me com as suaves cores da hipocrisia; sou assoberbado pelo Natal e festejo-o mecanicamente, disfarçando a amargura com sorrisos de vendedor cansado. Visito as lojas e ouço a música dos shoppings, compro sem escolher apenas para cumprir calendário. Admito apenas a alegria das crianças, por ser ainda ingénua - irei, claro, oferecer com gosto um presente ao meu filho. E canso-me, claro. Canso-me. Mas a minha vida não é nada disto.

[Sérgio Lavos]

29/11/06

Ian McEwan e o plágio

Correu pela blogosfera um dos muitos fogachos em que ela se especializou, a propósito do suposto plágio de Miguel Sousa Tavares no seu romance Equador. Todos conhecem a história. Achei, na altura, que não devia escrever nada sobre assunto, em parte porque nada teria a acrescentar ao escrito, em parte porque uma obra tão sobrevalorizada, que se tornou um best-seller em função de méritos que não os literários, não valia o esforço. E, principalmente pelo absurdo da trama: ninguém devia levar a sério um anónimo que encontra semelhanças no relato de factos históricos referidos em dois livros diferentes - no caso, fala-se de um livro-reportagem escrito por Dominique Lapierre e Larry Collins. A manipulação é evidente, mas mais acabrunhador ainda é a mera sugestão de que uma alusão a acontecimentos históricos que todos conhecem pode ser fundamento para uma acusação de plágio. O tempo mediu bem a amplitude do ridículo do(s) denunciador(es) anónimo(s). E no mesmo passo expôs ad nauseam a frivolidade mal-criada do escritor. Duas semanas depois, os tablóides já se tinham esquecido de tudo. Previsível.
Mas esta história, que nem sequer se pode acusar de sordidez, de tão mesquinha que é, vê-se repetida com um dos meus escritores preferidos, Ian McEwan. O que me interessa nisto tudo? A minha reacção aos dois casos. Com Miguel Sousa Tavares não consegui deixar de sentir, à primeira leitura, que os acusadores anónimos poderiam ter alguma razão. Mesquinhez pura, admito. E nisso, muitas figuras públicas, MST incluido, acertam em cheio. As polémicas artificiais que se geram em torno de quem aparece têm quase sempre uma única origem: o despeito dos menos conhecidos. (O caso mais flagrante é Eduardo Prado Coelho. Não que ele precise da minha defesa - o homem ignora os blogues, como, ufano, não se cansa de repetir -, mas a verdade é que a exposição diária a que ele se submete é um risco. Porque diz mais vezes, erra mais vezes. Porque erra mais vezes, é citado mais vezes por quem escreve, principalmente na blogosfera). Há outros casos, e Miguel Sousa Tavares nem é dos que têm mais razões de queixa - suspeito que o principal motivo para baixezas, no seu caso, tem que ver com atalhos futebolísticos. E se falamos deste tipo de conversa de café, da bola, assunto encerrado.
Seja como for, a minha primeira reacção ao caso do plágio MST foi precipitada, precisamente nos antípodas de Ian McEwan. Porque gostei do livro em causa (Expiação), porque achei que as hipotéticas provas do plágio eram forçadas e, principalmente, porque McEwan cita a autora da obra referida em entrevistas e não se esqueceu de incluir o livro em causa, uma autobiografia de Lucilla Andrews, ex-enfermeira, na bibliografia consultada. Ora, um romancista não é obrigado a isto. McEwan é conhecido por esse hábito (estranho, por exemplo, à maior parte dos escritores portugueses) - o de pesquisar minuciosamente para os livros de ficção que escreve. O esforço é visível; por exemplo, em Sábado, a sua última obra, é tão evidente que torna a leitura mais fastidiosa, ao ponto das descrições das cirurgias se tornarem perfeitamente excedentárias em termos de economia narrativa. Em Expiação, pelo contrário, os relatos pormenorizados das actividades que decorrem no hospital onde Briony Tallis trabalha como enfermeira, durante a Segunda Guerra Mundial, são absolutamente pertinentes, localizando de modo decisivo naquele tempo histórico a acção do romance. Para alguém sem conhecimentos técnicos, é obrigatória a consulta de livros sobre o tema. E McEwan nunca escondeu a importância que a obra de Lucilla Andrews teve no seu trabalho.
O que fez Ian McEwan, perante as acusações de um tablóide, Mail on Sunday? Escreveu um artigo no Guardian. Explicou tudo muito bem explicadinho, sem ameaças de processos, sem má-criação e rudeza lusitana. Não será necessário acreditar nas suas explicações, porque à partida não havia sequer que duvidar. Mas o público que desconhece do que se fala gosta muito de discutir o que desconhece. E a boa educação nunca foi um óbice para ninguém. Torna mais credível quem a ela recorre.

[Sérgio Lavos]

Videografias 2


A colaboração entre Spike Jonze e Fatboy Slim é uma das colaborações mais imaginativas que encontramos no mundo dos videos musicais, porque estes tornam-se uma arte para lá da arte musical a que dão imagem. Acontecera em 1998 com Praise You, um clássico das videografias, onde um fictício grupo de dança - Torrance Community Dance Group - invade a entrada de um cinema e, contra todas as adversidades, incluindo, não só a falta de talento, mas também a entrada em cena do gerente que desliga o leitor, concretiza a sua performance. Este video é também um clássico musical do movimento cinematográfico independente que surge nos anos 70 - o guerilla filmmaking. Consiste, essencialmente, numa versão mais perigosa, porque ilegal, do Dogma dinamarquês. Com orçamentos reduzidos, o realizador não pede licenças ou autorizações para filmar em espaços privados tendo de ocupar ilegalmente os espaços, filmar e fugir. Esta técnica é, obviamente, precária (por vezes, não dá para repetir cenas) mas chegou a organizar uma escola de realização.

A colaboração entre os dois volta a acontecer em 2001, de um modo completamente diferente, com Weapon of Choice, um video realizado com muitos efeitos e com Christopher Walken. Walken tinha 58 anos e ajudou na coreografia de sapateado filmado na entrada do Marriott Hotel em L.A. A grande estrela sabe dançar.

[Susana Viegas]

27/11/06

Cesariny, ainda

"Quando um poeta morre, extingue-se um incêndio.", escreve Lilith. Mas a vida banal continua, e ainda bem que a banalidade não tem muitas oportunidades de se cruzar com a desordem da vida e com aquilo que muitas vezes caminha do lado de fora dela. Quando o faz, o resultado pode ser semelhante ao que vimos ontem, nos telejornais da SIC e da RTP. Honra na morte, que na vida rondou demasiadas vezes o opróbrio. Até tem alguma graça, ouvir a mesma expressão a classificar Cesariny (não duvido que o próprio encontrasse na ironia do sucedido razão para o riso): "expoente máximo" da literatura, quê? literatura portuguesa, quê? Sorri o escritor "besta-célere" enquanto debita o atabalhoado obituário. Panegírico, o dos amigos, que atrapalhados acabam por ser caçados pela "repórter no velório", às moscas, às moscas, que no silêncio germina a eternidade. Cesariny, de quem ninguém conhece nada, saberia rir-se dos transeuntes entrevistados pelo repórter do suplemento "Local", do Público, curiosos do morto que se finou engatando a fama que nunca quis nada com ele. Ontem, depois das tragédias percorridas a dedo durante uma hora de sangue e nojo, o finalzinho perfeito para acabar o dia em grande: um actor no escuro do estúdio que se chega à luz e declama. (João Grosso não tem culpa destes fretes.) Algo sobre "auto-motoras" ou homens que são auto-motoras e lá em casa, enquanto se espera pelo tio Marcelo, o espanto. A literalidade da poesia nunca foi suficientemente compreendida pela crítica. Há lirismo na incompreensão, na distância entre palavra e metáfora, ausência a presença. A ignorância é uma figura de estilo. Como o tio Marcelo bem sabe, cinco minutos depois, cuspindo um poema qualquer de Gedeão que se podia aplicar a Cesariny, vomitando outro de Cesariny dedicado a Gedeão. Vê-se, mas não se acredita, um dois em um poético! Toca a despachar, que a tropa vem aí. Poesia é isto! Cesariny é isto! "Passar tudo pela refinadora" até sair a pasta cá para fora, pronta servir como papa à massa inerte que espera. Não, não vale a pena. Faço um pedido às televisões generalistas: por favor, não dêem importância a estas coisas, à morte e tal e à versalhada que alguém escreveu em tempos. A sério! Ignorem, deixem passar, há tanto cadáver para mostrar e políticos para discursar e milhares de assuntos a desenvolver mais importantes do que a morte de alguém, serenamente em paz com o mundo. Poupem-nos à humilhação da glória televisiva. A poesia passa bem sem isso.

[Sérgio Lavos]

26/11/06

Mário Cesariny (1923-2006)

É apenas isto: assinalar os dias e as noites, as correntes que os juntam e os separam.

[Sérgio Lavos]

24/11/06

IVG (2)

Em dois dias seguidos, uma acusação se repete. Ontem, directamente e feita por um grande amigo; hoje, por mail, o Rui também me acusa do mesmo: de um desvio para a direita. Não sei se deveria sentir-me irritado; aceito qualquer mudança no meu modo de pensar porque sempre fiz questão de achar que a ortodoxia é sempre inimiga da pertinência. A não ser que seja acompanhada de um saudável cinismo ou de uma abominável hipocrisia. A acusação, na boca de um amigo de esquerda, acabou por ser menos surpreendente do que se poderia esperar. Mas, lamento, andamos muito longe da verdade.
Em quase tudo continuo de esquerda. Nos costumes, sou liberal ao extremo: acredito no dever do Estado não se imiscuir na vida privada de cada um. E isso inclui aceitar, por exemplo, todos os modelos de união entre pessoas, do casamento às uniões de facto heteressoxuais, passando pelas uniões homossexuais, o que obriga, claro, a defender uma mudança de legislação que permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Com todos os direitos que a legalidade permita, incluindo a adopção. E isto não pode ser nunca matéria referendável. Acredito também que a revolução sexual dos anos 60 e a luta pelos direitos das mulheres, em conjunto, contribuiram para a mais significativa mudança ocorrida nos últimos 40 anos no mundo. Acredito ainda na liberalização total da venda de todo o tipo de droga, desde que o comércio das drogas duras seja controlado pelo Estado.
Em termos de Economia, apenas posso aceitar a globalização e o mercado livre; seria pouco sensato não acreditar nesta inevitabilidade. Mas defendo que o poder de intervenção do Estado se deva manter nos domínios económico e produtivo - no fim de contas, se elegemos os nossos políticos para nos governarem, não me parece normal depois pedirmo-lhes para se demitirem das suas responsabilidades. Não acredito, simplesmente, nas virtudes da auto-regulação do mercado. Porque falamos de seres humanos, não de gráficos e tendências baseadas em modelos teóricos que muitas vezes falham estrondosamente. Nenhuma teoria económica explica a vontade de poder humana e a exploração do Homem pelo Homem. No entanto, ela acontece. Além do mais, acho que esta globalização se devia estender verdadeiramente a todos. Não deveria haver restrições à imigração e à livre circulação de pessoas, ao contrário do que muitos dos que se dizem liberais defendem. Contradições.
O ponto da questão: tenho bastantes dúvidas em relação ao sentido do meu voto no referendo à IVG. Não sigo a linha do partido político em que costumo votar, mas muitos no campo da direita também se mobilizaram na luta pelo "sim", o que é apenas normal. Não é um chavão afirmarmos que a causa é transversal; é a verdade, porque quase todos nós, em alguma altura da vida, já testemunhámos a existência de uma realidade incontornável: o aborto clandestino. Adiar mais o confronto seria criminoso. Mas sei que devo isto apenas aos esforços da esquerda progressista. Esta razão bastaria para o que sou. Se não existisse tudo o resto.

[Sérgio Lavos]

IVG

O excesso argumentativo que uma questão como a despenalização do aborto espoleta corre sempre o risco de ser contraproducente, seja num sentido ou no outro, e favorece o pior que pode acontecer: uma decisão iminentemente individual ser tomada de acordo com o preconceito ideológico.
Quero pensar de acordo com a minha consciência; e esta obriga-me a aceitar a opinião daqueles que pensam de modo diverso do meu. Passando por cima desta evidência, deparamos com o ponto fundamental do referendo: qualquer que seja o resultado que dele advenha, o que acabará por acontecer é a imposição de um ponto de vista moral sobre uma questão de consciência, de uma parte da sociedade sobre a outra. A partir disto, o que devemos exigir a nós próprios é responder a uma pergunta simples: será que quero impor aquilo que penso ao conjunto de cidadãos que diverge da minha posição?
Nos dois campos, o que mais se vê é o despudor do moralismo - aquele dos defensores da despenalização, que não hesitam em esgrimir os mais banais argumentos nesta questão (o argumento do progresso, o argumento feminista, o argumento puramente reactivo contra qualquer ideia que "cheire" a conservadorismo e retrocesso); e o moralismo da trincheira do "não", com o seu argumentário terrorista da defesa intransigente do mais lato dos conceitos: a "vida".
O problema não será a bondade das razões de cada campo. É sempre o inevitável deslizar para a retórica primitiva, política, lamentavelmente evitando aquilo que se deve exigir num problema tão delicado quanto este: seriedade na argumentação.
Voltando à questão que se coloca: será que devo impor a minha moral aos outros? A resposta deverá ajudar-me a tomar uma decisão em relação ao próximo referendo. No silêncio da reflexão ou no espaço de exposição de um blogue, decidirei na certeza de quem não farei o mesmo que fiz em 1998: abster-me.

[Sérgio Lavos]

22/11/06

O império

Não sei se a ficção será suficiente para se perceber o espírito de um país, mas quero pensar que ajuda bastante. De qualquer modo, a realidade parece prejudicar mais do que seria normal. Veja-se a leitura que foi feita, por muitos, dos resultados das recentes eleições americanas. O que se sobrepôs a uma análise que seria evidente - a derrota dos republicanos deveu-se a uma desastrosa condução da guerra por parte da administração Bush - foi um seguidismo digno de colonos exemplares cultivado com fervor pelos defensores de sempre. Não se esperaria um mea culpa. Mas o silêncio teria sido talvez mais avisado.
De que ficção se fala quando se fala da ideia que fazemos da América? No caso, Phillip Roth. No seu livro "Casei Com um Comunista", o retrato que é desenvolvido, de um período negro da História americana - o mccarthismo e a "caça às bruxas" -, conduz o leitor por caminhos que nem sempre se conseguem resignar a interpretações simplistas. Se as perseguições a comunistas e a suspeitos se acabou por transformar num delírio de denúncias que se aproximou perigosamente dos piores hábitos do estalinismo - o horror, diria eu, na "terra dos livres, o lar dos bravos" -, a verdade é que a consciência de um país também se acaba por medir pela rapidez com que cura as suas feridas e absorve os seus defeitos. Sabemos que depois do desastre neoconservador se seguirão tempos de lamento e cura. Ainda que as próximas presidenciais sejam ganhas pelo candidato republicano, o regresso ao velho realismo do império está mais do que prometido.
A dimensão do logro neocon começa a ganhar proporções assustadoras. Como já foi escrito, o problema das teses idealistas do grupo, que apenas podiam vir de quem em tempos já pertenceu a uma esquerda liberal (no sentido que os americanos atribuem a esta expressão), era a sua incompatibilidade com a triste realidade do mundo. Não deixa de ser curioso também que, em Portugal, de entre os partidários mais intransigentes da política externa norte-americana, se possam escolher vários comentadores e políticos que frequentaram na juventude a extrema-esquerda, o verdadeiro cadinho da actual geração no poder. A coincidência de histórias, se não é comovente, acaba por ser uma pista fundamental para conhecermos a mentalidade de uns e outros. O totalitarismo é vigilante, paciente. O realismo, seja de esquerda ou de direita, é a única via possível para a estabilização das sociedades modernas.
As obras de Roth conseguem fazer incidir uma poderosa luz sobre as tensões da sociedade americana dos últimos 50 anos. Sobre o modo como o equilíbrio da mais perfeita democracia é precário, assente sobre pilares que a qualquer momento podem ruir. E que por serem tão flexíveis, acabam por evitar que o país caia para um dos lados. Cada vez é menos provável que a democracia se torne império.

[Sérgio Lavos]

21/11/06

Videografias 1



Em 1995, Thomas Vinterberg e Lars Von Trier assinam o Dogma onde se comprometem a seguir rigorosos padrões técnicos para obterem o filme puro, criticando toda a pós-produção dos filmes. A Festa de Thomas Vinterberg e Os Idiotas de Lars Von Trier são de 98, Mifune de Sören Kragh-Jacobsen de 99. Afirmavam que os créditos estéticos não pertencem ao realizador porque a função deste é forçar o momento à verdade, nos limites da interpretação e da duração dos planos, sem manipulação, sem banda sonora, reforçando a inspiração e a improvisação bem como os baixos orçamentos.
Em 1999, Vinterberg tem a sua única experiência nos videos realizando No distance left to run dos Blur, álbum 13. Diz-se que Damon se inspirou na relação que tivera com Justine Frischmann (Elastica). O video segue o Dogma. Um video-dogma.

[Susana Viegas]

16/11/06

Dr. House

A primeira perplexidade que a série "Dr. House" provoca tem como origem o facto de vermos Hugh Laurie, actor cómico inglês de excelente linhagem (Black Adder, a dupla com Stephen Fry), transformado em verrinoso médico americano. A mudança é espantosa; o sotaque, a pose, a voz. Suponho que a escolha de Laurie para o papel não teve em conta o currículo anterior. Mas foi de uma eficácia a toda a prova.
É claro que o charme da personagem passa principalmente pelos diálogos. Não interessa saber quantos médicos conhecemos que se aproximam de House. A arrogância e a falta de polimento são compensadas pelos diagnósticos milagrosos que House consegue desencantar para cada caso clínico. E depois, há uma fragilidade que se vislumbra por trás de toda a má-educação. House não passa de um aleijado drogado e solitário, sem mulher(es) e sem amigos.
Vejo pouca televisão, mas faço muito zapping. Quando uso o comando, tenho o hábito de delimitar uma zona anti-séptica quando passo pela TVI, o canal que não faz televisão, produz matéria orgânica decomposta e atira-nos à cara, num volume insuportável, o pior que a humanidade pode ter para mostar. Com Dr. House, o caso é o mesmo. Depois de horas de novelas tiradas a papel químico umas das outras, com blocos de publicidade de vinte minutos que incluem anúncios a toques de telemóvel e outras abjecções do género, chega Dr. House, nunca antes de trinta minutos depois da hora programada pelo canal. E a meio de cada programa (estão a ser emitidos dois de cada vez), mais publicidade martelada na cabeça de quem ainda resiste - em princípio, os insones e os que trabalham por turnos. Não sei que critério é usado para a inserção de publicidade, mas parece-me que a eficácia de anunciar produtos de limpeza ou fraldas àquela hora será, no mínimo, reduzida. A qualidade da série não exime de nenhuma maneira os programadores da estação. Nos E.U.A., estes programas passam em prime-time, aqui são lançados para o degredo da hora dos intelectuais sem emprego fixo: sempre depois da meia-noite.
Os misantropos são personagens fascinantes. House prova a tese, e identifica também outro sintoma: a mal-estar das sociedades modernas, hipocondríacas e obcecadas pela morte de um modo desequilibrado. O sucesso das séries passadas em hospitais baseia-se na possiblidade optimista de haver alguém que, em situações extremas, de proximidade do fim, pode realizar milagres e prolongar um pouco mais o tempo a que temos direito. Não se poderá censurar este tipo de ilusão - a depressão pós-moderna tem de continuar a ser bem nutrida.

[Sérgio Lavos]

15/11/06

Emendar (2)

Tenho um poema escrito em que me coloco... não é isto. Em que o sujeito enunciador se coloca na situação de emendar um poema antigo pela noite fora.
Este pode ser mais um dos meus textos umbiguistas e dedicados ao mais chato dos temas: o meu ego.
Antes de começar a escrever devotei a minha atenção, com tanto de desleixo como de persistência, à correcção de posts anteriores. Para minha satisfação, apenas minha. Ninguém relê entradas antigas. Sei mesmo que há quem visite o blogue diariamente e abuse do "toca e foge" de cada vez que depara com um texto com mais de cinco linhas. Como o que escrevo não tem a força suficiente para cativar à primeira leitura, sei bem que, ao debitar testamentos, contribuo de forma decisiva para a estratégia do blogger médio - conseguir ler o maior número de blogues no mínimo tempo possível, enquanto o chefe de secção passa e não passa. Enigmas da produtividade portuguesa.
Talvez seja injusto (não em relação ao hábitos de leitura de quem por aqui se perde). Há quem leia entradas antigas, parto de um princípio que se apoia numa razão simples: eu também o faço. Por vezes acontece-me encontrar raridades nos arquivos de outros blogues. E tanto podem ser textos que leio pela primeira vez ou releituras - os segundos ajudam-me a perceber porque gosto de determinado blogue, os primeiros convencem-me a linkar ou colocar nos favoritos o blogue visitado.
Emendar. Não sei explicar a origem da pertinência desta palavra, a razão de ser da sua justeza. Quantas vezes precisaremos nós de reescrever um texto? Quantas vezes poderemos emendar a matéria de que se alimenta o impulso criativo? Não preciso que me mostrem o caminho. Bastava que me indicassem o melhor corrector ortográfico do mercado.
A pouca verdade que consigo transmitir ao que escrevo perde-se nos ziguezagues das emendas. Não me impressiona a mediocridade da vida. Mas só posso recusar a vulgaridade na arte. Na literatura. Por isso tento emendar, sabendo que a distância entre o que pretendo e o que consigo é quase sempre inultrapassável.
Chega de ego, chega de auto-contemplação miserabilista. Guardo este tom para quando conseguir compreender na totalidade o génio de um dos meus paranóicos depressivos preferidos - Thom Yorke. Ou não. Vou emendar um poema antigo.

[Sérgio Lavos]

12/11/06

Os Subterrâneos

foto de Allen Ginsberg
A narrativa de Kerouac remonta a outros tempos. Não se trata propriamente de uma diferença temporal, do modo de vida americano alternativo dos anos 60, da Geração Beat, mas antes de um modo intenso e dramático de sentir a vida, de sentir tudo e de todas as maneiras. A prosa de Kerouac enche-se, por isso, dessa sensibilidade e dessa falsa ingenuidade, por vezes obscena, porque se trata de uma prosa excessivamente poética e excessivamente fluida. Uma quase obra-prima da corrente de consciência publicada em 1958 e de inspiração autobiográfica. A isto junta-se a bela cidade de São Francisco, a cidade da Golden Gate de Vertigo, a cidade de Kerouac, assim descrita:

"-Ela estava na ruela, sem saber bem quem era, em plena noite, um chuviscar miúdo de névoa, silêncio na São Francisco adormecida, os ferries para Berkeley e Oakland na baía, a baía envolta na mortalha dos nevoeiros de bocarra feroz, a auréola de luz estranha e sinistra que se elevava no meio, brotando de Alcatraz com as suas colunatas de templo antigo, o manto raso dos seus arcos de claridade-"

Os Subterrâneos (trad. e intr. Paulo Faria), Relógio D'Água, pág.49.

[Susana Viegas]

11/11/06

Em Paris

São duas horas, em média, até acordar. O apelo dos lençóis apenas desaparece, em dias de trabalho, duas horas depois de começarmos a laborar. A baixa produtividade de que se fala deve ser isto. Ao fim-de-semana, pode ser mais de duas horas. As tarefas com hora marcada sucedem-se maquinalmente, adiamos o desfazer da barba e o primeiro café do dia - é também necessário quando não se trabalha. Saímos à rua, o miúdo finalmente liberto da clausura de quem consegue acordar sempre à mesma hora, com ou sem obrigações - claro, as crianças não as têm - e compramos o jornal, sabendo que quando chegarmos a casa podemos deixá-lo de lado e ler o que ficou por ler do dia anterior.
O filme, finalmente. Um suplemento antigo que escapou à razia mensal de reciclagem - por pouco, diga-se - e finalmente o texto sobre o filme. Curioso como aquilo que irrita alguns - os pormenores que evocam directamente a linhagem da nouvelle vague - é o que marca a diferença para outros; no caso, para Luís Miguel Oliveira. A verdade é que a obra não se limita a convocar números de circo em homenagem a Godard e companhia - há personagens com vida lá dentro. Aliás, aquilo que o afasta dos modelos é precisamente isso: os indícios de realidade são mais fortes, a verosimilhança é mais evidente. Apesar das cantorias e dos mimos à maneira do cinema mudo - como acontece em "Les Carabiniers", de Godard, com que, de resto, "Em Paris" partilha mais do que os tiques formais; o tema do amor entre irmãos não é uma coincidência, embora o modo como é tratado por Cristophe Honoré se distancie do tom de fábula do filme de Godard. O filme fala da minha geração, é verdade. Quando Paul (excelente Romain Duris) coloca o disco de Kim Wilde a tocar, regressamos a um tempo em que tudo podia acontecer - a perspectiva que Paul precisa, um novo recomeço. O drama realista coabita de forma harmoniosa com o burlesco charmoso que envolve Jonathan (Louis Garrel) - na sua jornada pela cidade -, amante involuntário das mulheres que vai encontrando pelo caminho. Forçado, fantasioso? Não, se tivermos em conta o precedente da nouvelle vague. O cinema bem que pode prescindir da "suspensão da crença" quando quiser. É isso que o torna cativante. Já nos chega a realidade que continua a existir fora da sala escura. É claro que nada disto resultava se não fossem os diálogos elegantes e a mise-en-scène irrepreensível. O intimismo criado resulta da dinâmica entre estes dois elementos e torna uma obra que podia ser apenas um conjunto de citações mais ou menos óbvias num filme caloroso e tocante.

[Sérgio Lavos]

Minudências

Era o blogue Noite Americana, julgo, que tinha como mote falar do acto de ir ao cinema, e não do filme em si, ou melhor, falar de um filme sem esquecer o que é verdadeiramente importante: a razão de estar ali, sentado no escuro da sala, a ver aquele filme e não outro, ter comprado bilhete penalizando o orçamento mensal em vez de estar em casa a tornar a inutilidade da vida menos fútil. (Como? Estudando, por exemplo). Louvável empresa, de resto, e na verdade nunca plenamente concretizada. Um blogue é um blogue é um blogue. Gosto de quem escreve A Noite Americana, e por isso agradar-me-ia que escrevessem mais vezes. Mas adiante.
As minudências, as envolvências de uma ida ao cinema. No meu caso, a impulsividade é a chave da decisão. Por razões profissionais, a sexta-feira costuma ser o dia em que atiro os dados sobre as páginas abertas do jornal, confiando num palpite que quase nunca bate certo, e arrisco duas horas da minha vida em frente ao teatro de sombras. Perdoem-me o lirismo tosco, mas a verdade é que, caso ainda não se tenha percebido, é realmente um prazer ver desfilar à minha frente as imagens que um dia alguém decidiu serem a realidade - o cinema é mais que um simulacro. Se não acreditar nisto pela via da razão, aposto tudo na fé. E, por norma, os deuses costumam intervir cá em baixo através do jogo dos acasos.
Retrocedendo um pouco: impulso; acaso. Primeiro, não faço o que devia fazer (e que prazer que é não fazer o que se devia fazer), segundo, hoje vou ao cinema, e não vou ver nem a Maria Antonieta nem a Senhora das Águas, apesar do apelo recalcitrante. Paris... qualquer coisa. King, visito a livraria que reabriu, para mal dos meus pecados (ver texto anterior), e compro o bilhete. Para a sessão tal e tal, o Paris qualquer coisa, aquele feito por não sei quantos realizadores sobre a cidade. A senhora pergunta: é este? Não, não é. Não era. Era o "Dans Paris", de que tinha visto um trailer que me desagradara, por me parecer exibir tiques do cinema francês de modo particularmente irritante. Que importa, deixemos o acaso trabalhar.
O filme, apesar dos tiques, é um charmoso exercício sobre o amor fraternal, e valeu a pena a sucessão de desvios a que fui sujeito até desembocar na sala errada. Talvez desenvolva noutra entrada algo mais substancial, talvez não. Um blogue é um blogue é um blogue.

[Sérgio Lavos]

10/11/06

A pequena conversa

A "pequena conversa", tradução literal de "small talk", é um termo que soa mais adequado do que o vulgar "conversa fiada", principalmente se for aplicado, com mais ou menos propriedade, aos esforços titânicos a que, por vezes, nos obrigamos para olear as pesadas correntes da sociabilidade. Ignorar taxistas, exercício agradável, mas de difícil manutenção; é desagradável deparar com a antipatia provável de quem nos conduz como resposta à nossa misantropia teimosa. O pior é que não é um acto de coragem; é consequência de uma timidez paralisante. Todo o mal-educado esconde um terrível segredo: um medo de conversar, falar com estranhos, ou pior, com conhecidos de vista que espoletam imediatamente suores frios e revirares de olhos denunciadores. É que um tipo que seja tímido não consegue escapar; a linguagem corporal, tema de abundante literatura, é implacável. Contorcemos os dedos, reviramos os olhos, desviamos o rosto, mas lá estão eles, meio segundo depois de termos entrado naquele café que nos parecia tão acolhedor. Eles merecem a nossa pena, contudo. É que acaba por ser tão constrangedor para eles como é para nós o contacto imediato. Imagino: a bonomia deve sofrer horrores em presença de um acanhado intratável, de um introvertido disfarçando como pode, com arrogância e cinismo, a sua natureza maligna. Procuramos a saudação certa, em vão; eles debitam o discurso habitual, mas não sabemos como responder: "Então, tudo bem, a família, como vai?" Não sei, não quero saber, não lhe vou perguntar como está a sua família, que me interessa? Tudo bem, até aí vamos, mas daí não pode passar. Cultivar a banalidade não pode ser uma opção. Ou manter-se calado ou agir de modo realmente interessante, como os grandes conversadores o faziam no passado. Porque a timidez, quando não é patológica, reserva para os amigos o melhor que uma personalidade pode oferecer. Tudo se revela, se o ponto certo é tocado. Pode-se compreender o uso de substâncias desbloqueadoras de conversa, aceita-se tudo em nome da conversa. Um bom vinho, acompanhado de um ainda melhor prato, horas pela frente e a despedida a uma confortável distância. Se estamos bem, se tudo corre bem, querem que responda? Quando não somos obrigados a partilhar mais que duas palavras com estranhos ou conhecidos (e mesmo isso é muito), claro! A misantropia é uma bela planta que se deve cultivar com a maior parcimónia do mundo - e os amigos bem nos podem ajudar.

[Sérgio Lavos]

08/11/06

Gato constipado

Já percebi que o mundo se pode dividir entre aqueles que, como eu, acham a nova série do Gato Fedorento pobre, pobre, fraquinha (e depois do génio, a queda) e os outros que lhes conseguem perdoar o passo em falso, talvez por serviços prestados à nação. O complexo de Herman é, pelos vistos, contagioso...

[Sérgio Lavos]

07/11/06

Johnny Guitar

Se "Antes do Amanhecer", de Richard Linklater, passa por ser o grande filme romântico para uma puberdade tardia, facção anos 90, "Johnny Guitar" é o grande filme romântico da idade adulta - esqueça-se "Casablanca" ou "Pontes de Madison County". Defendo o primeiro com unhas e dentes, apesar de todos os defeitos. O pretensiosismo de uma geração ou a simples pretensão de toda a juventude? Estamos longe da educação clássica que resistiu quase até à primeira metade do século XX. No final do século passado, uma "boa educação" obriga a um digest de cultura pop intensivo. Uma ou outra passagem pelos clássicos, claro, mas os modernos, de Rimbaud a Kafka, passando por Virginia Woolf ou a "beat generation". As personagens de Ethan Hawke e Julie Delpy são mais que o ideal nunca alcançado da geração pós-moderna. Têm tanto de realista como de romântico, apesar da conversa sobre sexo - mas, lamentável, com mais conservadorismo que o trio de "Jules e Jim" e sem o dandismo que caracteriza uma época estilizada, a transição do século XIX para o século XX retratada no filme de Truffaut.
Mas a verdadeira transgressão acontece na obra de Nicholas Ray. Vienna (Joan Crawford) é mais do que o símbolo camp que muitos insistem em ver. É uma mulher forte num mundo de homens que deviam ser fortes mas acabam por se revelar fracos. Ema, a sua rival, no amor e no poder, manipula a turba de homens da cidade. Johnny Guitar (Sterling Hayden) é um pistoleiro sem revólver (óbvia referência freudiana), que sabe que apenas pode ser aceite por Vienna se abdicar dos seus impulsos violentos - que o tinham levado em tempos à partida. Um homem, para reconquistar uma mulher, tem de desistir da sua masculinidade agressiva - a dominação inverte os papéis tradicionais dos dois géneros. Nada de leituras alternativas da atitude de Emma (Mercedes McCambridge) e Vienna. A primeira quer apenas aquilo que Vienna já tem - e por isso morre. Vienna quer apenas um homem que a ame. "Nem bom nem mau", apenas alguém que possa amar. Estamos em território longínquo, de fronteira, transgredindo a moral da época e a moral dos filmes da época. Os fogachos de "screwball comedy" são memoráveis. O desejo é um diálogo trocado entre dentes, recorrendo a meias-palavras, desdéns e insinuações a cada frase. Mas Vienna sabe que Johnny é o seu homem - conhece-lhe as manhas, como diz ao preterido Dancin' Kid (Scott Brady) perto do final.
Falo de um western. Isso importa? Não posso deixar de gostar de "Antes do Amanhecer", por razões que pouco têm que ver com a razão. Pensando bem, "Johnny Guitar" não é um filme romântico nem um western. É um ensaio em imagens sobre a relação entre homens e mulheres. Uma bela lição sobre o modo como a mulher exerce o seu ascendente sobre a espécie masculina; o amor é apenas outra palavra para sexo - e não se pense nunca em sexismo ao afirmar isto.

[Sérgio Lavos]

Crash Music, Sweet Music


Quando entramos na sala de Crash Music reparamos nos discos partidos e sentimos os cacos debaixo dos pés. Andamos com cuidado. Se fôssemos crianças perguntaríamos: porquê partiu tudo? Talvez porque não gostava daquelas músicas. Porque um dos discos é dos Duran Duran. Ou porque a parede do museu pode ser a parede de fuzilamento, de execução. As marcas ainda são visíveis na parede, os riscos pretos vincando a parede branca, marca de terem sido atirados.
Porquê partiu tudo? Uma criança coloca esta questão perante a desolação daquela sala. A resposta até pode estar nas nossas costas, nas frases que se lêem na parede oposta à execução mas, ainda assim, parece não haver resposta. Procuramos sempre um significado, um simbolismo, uma referência que nos ajude a explicar a relação entre a obra e o artista, mas não pode simplesmente ter uma explicação directa? Ir com uma criança na idade dos porquês a uma exposição de João Paulo Feliciano é o maior desafio que uma mãe pode ter. Não só Crash Music mas também White Dust /Rusted Strings (pó de talco...), Sweet Music (gomas) e The Big Red Puff Sound Site (puff gigante onde se ouve nos auscultadores Teenage Drool de Tina and the Top Ten).

João Paulo Feliciano - The Possibility of Everything, na Culturgest de Lisboa até 30 de Dezembro.

[Susana Viegas]

05/11/06

Hal Hartley

Hal Hartley, a par com Jim Jarmusch, é a principal referência de uma geração indie de adultos reticentes, pela coolness que lhe está associada. Ter estilo significava frequentar cinema independente americano, ouvir Sonic Youth (que sobreviveram aos 80's) e ler Jack Kerouac - ainda, 40 anos passados. Ser cool era cultivar de modo displicente depressões existenciais fora de tempo, esquecer o Nietzsche da adolescência, ler de fio a pavio a bíblia amarela de Al Berto e frequentar sessões da Cinemateca tentando apanhar ainda o comboio da Nouvelle Vague - tanto tempo depois da partida. Dez anos depois, o gosto é mais seguro, e recordamos histórias antigas resgatadas ao tempo com a ajuda de instrumentos que em tempos abominávamos. Belo brinquedo o Youtube, assim como os packs de DVD's que compactam a infância em imagens que nos tínhamos esquecido de fixar. Dez anos depois, Adrienne Shelley ("Trust" é o seu "A Bout de Souffle") está morta, Martin Donovan passou rápido demais pelo mainstream do cinema americano, e por onde andará Elina Lowensohn - o IMDB dá algumas pistas, mas se desapareceu dos ecrãs desapareceu também das nossas vidas. Da trupe de Hal Hartley, apenas temos notícias de Isabelle Hupert, convidada do seu fabuloso "Amateur". Mas essa não é actriz de um realizador só, foi um acidente na filmografia do realizador. Dez anos depois, valerá ainda a pena exigir a presença de Hal Hartley nas salas portuguesas?

[Sérgio Lavos]

04/11/06

1966-2006

Adrienne Shelly começou no cinema como actriz-fétiche de um realizador independente, Hal Hartley, um realizador que agora as distribuidoras portuguesas fazem questão de esquecer, depois de Henry Fool, em 1997. Segundo os critérios da normalidade histriónica que marca certo tipo de cinema, não começara propriamente bem, isto porque ser fétiche de Hartley tem o seu preço - basta ver o modo como Adrienne, Martin Donovan, Robert Burke ou Chris Cooke actuam, de um modo hiper-artificial e ausente. Adrienne trabalhou em dois excelentes filmes de Hal Hartley: em 1989, The Unbelievable Truth e, em 1990, Trust.

[Susana Viegas]

03/11/06

Apenas um blogue

Nunca poderei conhecer todos os blogues que existem. Lê-los com a atenção que merecem, ainda menos. Ao ler blogues, sei que retiro tempo a outras actividades, mas também sei que ganho alguma coisa. Quem mantém um blogue gosta de olhar para o seu umbigo, apenas assim se percebe o elogio tantas vezes repetido pela blogosfera lusa: escreve-se bem aqui, melhor do que lá fora. Na prática, descobrimos que muitos bloggers de quem gostamos são também jornalistas ou escritores e os jornalistas ou escritores que não têm blogue e insistem em desdenhar o meio não merecem o esforço de cinco minutos despendidos na leitura daquilo que produzem. Pegamos em alguns livros, lemos as primeiras páginas e pensamos: volta lá para o computador, há centenas de actualizações à tua espera. Se me canso, regresso aos autores que valem a pena, e sei que esses não precisam das luzes da ribalta incidindo sobre os seus egos desmedidos - é por isso que pertencem ao meu círculo de eleitos. Cada vez mais me convenço que a literatura é 99% de ruído mediático e 1% de verdadeira força essencial - para a minha vida, pelo menos. A literatura é um sumo diluído, um reles refrigerante para os felizes 99% cento. Deviam formular uma lei para a literatura: não há malabaristas escritores. Ou se é uma coisa ou outra. À parte estas generalizações mais ou menos abusivas, não sei muito bem o que possa ser um escritor. Mas reconheço um bom texto quando o leio. Como aconteceu aqui, no blogue os-três-caminhos, de Isabel Cristina Rodrigues, descoberto através do blogue Manchas. E não é apenas um, são muitos. Sem o ritmo apressado da maior parte dos blogues, com a respiração lenta da verdadeira literatura. Apenas isto agora.

[Sérgio Lavos]

02/11/06

Sindicatos

Rui, talvez o meu post não merecesse uma resposta tão detalhada, e por isso mesmo faço apenas um comentário a um dos pontos do teu texto. Curioso que tenhas encanitado com o termo "assalariado". É que a mim aconteceu o mesmo. Pensei primeiro em "trabalhadores" e depois noutra palavra qualquer de que agora já não me recordo, e acabei por decidir-me pelo mais neutro "assalariados". Auto-censura. Isso mesmo. Censurei o que tinha escrito e acabei por utilizar um termo cuja conotação é claramente negativa para alguns. Insisti na palavra em parte por que acho o passadismo destes termos charmoso - faz-me lembrar tempos que não vivi - em parte porque sei que a direita fica com urticária ao ouvir falar em "proletariado" "luta pelos direitos" e, lá está, "assalariados". E já nem falo no censurado "trabalhadores". Ora, vejamos (assomo desnecessário de retórica): existirá outro termo que se adeque melhor a alguém que trabalha por conta de outrém, recebendo em troca do seu trabalho um salário? Não há. Não sei se é tipicamente marxista. Se calhar é-o porque Marx construiu a sua obra filosófica em função de uma defesa dos assalariados que trabalhavam nas fábricas inglesas e, lá está, nem sempre em condições que se pudesse dizer que fossem ideais do ponto-de-vista da felicidade humana. Em suma, e deixa-me abusar de outra expressão marxista, eram explorados pelo grande capital.
Sabemos que o marxismo-leninismo é uma utopia falida. O cadáver está aí à vista, e quando estrebucha ainda dá para rir um bocado - e falo de Chavéz e outras criaturas afins. Um dos resquícios da nossa revolução abortada são os sindicatos. Padecem do mesmo mal do PCP, porque a ele lhe estão associados (na sua maioria) - não perceberam que "os gloriosos amanhãs que cantam" nunca irão conseguir soltar um pio que seja. Azar. Mas a verdade é que ainda são um dos mecanismos de controle dos desvarios da liberalização económica. Que os há. Os deveres e os direitos de trabalhadores e patrões de que falas não são uma hipótese: eles existem, e são consagrados todos os anos nos acordos entre Governo, sindicatos e confederações de patrões. As três vertentes do tecido produtivo, sempre. Cada um defende os seus interesses, mas isso é natural. Ser anti-sindicalismo é ser contra um dos pilares que sustentam a economia - os trabalhadores (e peço desculpa por utilizar o pior termo possível). Não há produtividade em abstracto, tem de ser um facto concreto - só produzimos se estivermos satisfeitos com as condições de trabalho oferecidas - e negociadas pelos sindicatos. Com todos os defeitos que estas organizações ostentam. E eu até acho o Há Lodo no Cais um grande filme - e ilustrativo quanto baste dos abusos dos sindicatos.

[Sérgio Lavos]

31/10/06

NADA 8

Já se encontra à venda o mais recente número da revista NADA mantendo, como é hábito, a qualidade gráfica e temática. Destaco a surpreendente entrevista Da Arquitectura Flutuante à Produção do Extraterrestre feita a Marcos Novak (por João Urbano,Tania López Winkler e Giorgio Alberti) conhecido pelas suas experiências pioneiras na arquitectura virtual, espaços líquidos e ciberespaço.

[Susana Viegas]

Greves

As greves vistas por quem as sente na pele - mas não demasiado. Agora, Rui, aquela parte do sindicalismo ser inútil, é de arrepiar os cabelos. Este sindicalismo que temos é "pífio" e esclerosado, sim senhor, mas continua a ser necessário, como, de resto, sempre foi. Já sei, é a diferença entre um liberal e um esquerdista. Mas não acredites em todas as teses arrojadas que por aí abundam. O mercado preocupa-se com tudo menos com regularizar os direitos dos assalariados. Não preciso de entrar em pormenores, mas a História mostra bem a importância dos movimentos sindicais a partir da Revolução Industrial. E não há impertinência liberal que desculpe a evidência. Quanto aos professores, cem por cento de acordo.

[Sérgio Lavos]

30/10/06

Humano

Há uma mediação afectiva entre quem ouve e o som que é produzido. Menos intermediários, talvez seja a questão. Depois do descalabro da música electrónica - no sentido em que, hoje, a vaga mais estimulante da música produzida com recurso a sons sintéticos utiliza obrigatoriamente instrumentos tradicionais - bateria, baixo, guitarra - e penso em LCD Soundsystem, ou Herbert e os músicos com quem colabora, também as experiências de Thom Yorke, nos Radiohead e a solo. Projectos como os Chemical Brothers e os seus concertos com a maquinaria em palco - more human than human - ou os Massive Attack, ambos sobras da década passada, deixaram de fazer sentido. Um regresso à carnalidade dos ritmos imediatos produzidos por instrumentos em contacto directo com o corpo do músico - mãos nas cordas, guitarra encostada às ancas, baquetes transmitindo aos pratos o frémito nervoso do ritmo corporal. Os concertos de bandas de sons predominantemente elctrónicos sempre foram para mim uma desilusão, mesmo quando admiro os álbuns de estúdio. Lembro-me dos Massive Attack, Portishead, mesmo os longiquamente elogiados Young Gods, com o seu desfile industrial de sons samplados. Vou a concertos para sentir a tensão entre músico, instrumento e público, aceitar os erros, comungar com o músico o deslumbramento que deve ser tocar para uma multidão de desconhecidos que cantam, ridiculamente, todas as letras de todas as músicas de um álbum. Se quero racionalizar a música, ouço em casa sozinho ou, melhor, no silêncio de uns phones nos ouvidos. Distingo cada som, reparo nas subtilezas, nas variações de ritmo, nos encadeamentos de timbre e de tons. Ao vivo, esqueço tudo o que aprendi em casa. A música passa a ser um conjunto caótico de movimentos ensaiados em uníssono com as coreografias dos músicos em palco. Agora, racionalizo. No meio da plateia, se existe garra da banda, não me falem em pormenores e defeitos. Depois. Fica para depois. Electrónica ao vivo? Máquinas reproduzindo sons pré-gravados, mãos humanas manipulando teclas e botões, nada de demasiado humano a que me possa prender.

[Sérgio Lavos]

29/10/06

António Lobo Antunes

A natureza humana é, sem dúvida, curiosa: no mesmo passo em que se ensaia a liberdade se tolhe o avanço da mesma. Não falo de grandes problemas. Miudezas. O dia-a-dia. A admiração e a humildade, o engodo e a incerteza de sabermos ao certo aquilo que somos. António Lobo Antunes é um caso. Não é o único, nem agora nem se olharmos para trás, abarcando a memória. Mas quero pensar no pobre (e despeitado) Fernando Pessoa, escrevendo à noite depois do miserável mergulho na sujidade quotidiana, de olhos bem abertos perante a possibilidade da morte - e do esquecimento. Ignorando o futuro radioso da obra que lhe escapava dos dedos, a caminho da glória ilusória que apenas a arte concede. E imagino-o com poderes de vidência. Ouvindo, paciente, no escuro do seu quarto com vista para a tabacaria, António Lobo Antunes contorcendo-se na sua cadeira de entrevistado, incómodo na penosa posição de escritor menor, ao lado de Pessoa. É um sinal de grandeza, contudo. E Lobo Antunes sabe disso. Esquecer os grandes contemporâneos (aterradora, a ignorância em relação ao recente nobel Pamuk), elogiar uns quantos escritores menos lidos e menos conhecidos (sem a possibilidade de lhe fazer sombra), afirmar e reafirmar em tudo quanto é acção de propaganda a um novo livro que apenas interessa a literatura produzida num passado remoto. As manifestações de puro egocentrismo, no entanto, dispensam o juízo do tempo. Podem crer. Ao contrário do juízo dos críticos, que esse anda demasiado amestrado aqui no nosso cantinho tão necessitado de heróis (o exemplo dos Grandes Portugueses não é apenas um acaso). António Guerreiro, no Expresso, alude ao medo cénico perante o grande escritor. Aponta-lhe críticas, mas sempre usando de um finura que revela uma de duas coisas: ou respeitinho pela figura ou hesitação no julgamento. Havia de assim ser nos E.U.A. ou em Inglaterra. O respeito deve-se à obra, não ao putativo herói. E a obra de Lobo Antunes merece bastante respeito. O problema é o circo que a editora monta a cada nova saída. É o papel a que o escritor se dispõe de bom grado - o dos convites aos jornais por parte da editora (como aconteceu com a entrevista de Alexandra Lucas Coelho no Público), é o grande acontecimento com colagem a figura mediática para as novas gerações (Ricardo Araújo Pereira), é o enjoo de entrevistas condicionadas (?) à partida pela editora - é Alexandra quem diz que, antes da entrevista, o "auteur" estava com ganas de falar sobre a actualidade. Somos um país minúsculo, todos se conhecem. António Lobo Antunes não tem de recear qualquer crítica - apesar da lamúria repetida em anteriores lançamentos, de que o país não lhe liga.
Uma análise da obra? Ainda não li este último livro. Mas reconheço-lhe os tiques, aquilo que, para ele, passa por ser um passaporte para a eternidade: a fragmentação, a repetição maníaca, a ausência de preocupações com o enredo, a tentativa forçadíssima da originalidade a todo o custo, com algumas grandes frases pelo meio e outras deploráveis, ostentando um lirismo balofo e desusado - terrível nódoa sobre o pano. Porque se Lobo Antunes pretende que o seu texto se entranhe, não que seja compreendido pelo leitor, se a ele o que interessa são as sensações, não a história, cada frase conta - como sempre, aliás. A falsa polifonia - todas as personagens são uma só, imagino que a voz de um narrador metaficcional, omnipotente, que encarna em cada personagem lendo-lhe os pensamentos e sentido-lhe as sensações - é um logro. Não é original - a corrente de consciência é coisa antiga - e permite que interesses maiores cedam perante o exibicionismo palavroso do autor. Compreenderia o autismo de Lobo Antunes - se a cada frase não tropeçasse num cliché poético. Talvez seja esse o problema - a sua nunca resolvida velha questão com a poesia. O suave afago do país, no entanto, pode-lhe servir de consolo. Pobre Pessoa.

Adenda: um texto que diz tudo, do Luís Januário n'A Natureza do Mal.

[Sérgio Lavos]

Elsinore

Eu, ao contrário da mudança para a hora de inverno, chego sempre atrasado; ainda assim, a tempo de dar os parabéns à Carla pelo 3ºaniversário do seu sítio em Elsinore.

[Sérgio Lavos]

27/10/06

Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos

A distância que separa a América real da América figurada parece, ao olharmos para um filme como "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos" (e nunca é demais relevarmos o trabalho dos pândegos que arranjam títulos destes em português - o original é "Little Miss Sunshine"), intransponível. A Hollywood liberal vinga-se dos pacóvios provincianos e moraliza ridicularizando hábitos que os americanos "educados" gostariam de não saber que acontecem em território nacional. No caso desta obra, os concursos de beleza infantil, essa abjecção, estética e principalmente ética, que sem esforço se aproxima da exploração do trabalho infantil, isto em plena democracia americana. Os realizadores (Jonathan Dayton e Valerie Faris) podiam ter ido mais longe na farsa, mas será uma questão que se imponha naturalmente? As opções decidiram-se à partida. O grupo de actores, casting perfeito, recusou ao filme o caminho da subversão amoral. Dayton e Faris acabam por construir um objecto invulgarmente conservador, apesar do especialista em Proust gay ou do avô heroímano. Em termos formais, o filme é plano, sem tiques de autor visíveis - e podia ter sido uma tentação, dada a aprendizagem no mundo dos videoclips -, mas há alguns enquadramentos que acabam por se destacar da planura: a paragem à beira da estrada, para consolo do adolescente problemático, deixa que o espectador espreite por uma nesga a paisagem americana - pela estrada fora, um desfilar contínuo de diners e estações de serviço, em tom de road movie familiar. Os gags resultam, pelo talento dos actores. A directora de casting mereceu cada tostão que ganhou. A fixar: Greg Kinnear (o pai), Toni Collete (a mãe), Steve Carell (o tio), Alan Arkin (o avô), Paul Dano (o filho) e a miúda adorável, a Miss Sunshine falhada do título, Abigail Breslin (a filha). A família, convulsiva, disfuncional (todas o são, é lugar-comum), imperfeita. E no entanto base de todo e qualquer indivíduo, como um nó que ao mesmo tempo prende e salva. A certa altura, diz a mãe: "We're family". Como se isso desculpasse tudo.

[Sérgio Lavos]

Muse


Confirmam-se os rumores. Os Muse são uma grande banda ao vivo. Muscle music.

25/10/06

Chuva

Não se duvide da irreprimível tristeza que a chuva sabe trazer. Porém, há uma intimidade insólita no meio do temporal que faz lá fora. As pessoas, quando são obrigadas a partilhar os pequenos reveses da vida - nem que seja uma molha das antigas, como as que se costumavam apanhar a caminho da escola - animam-se, deixam cair a carranca do quotidiano. Uma sensação de humanidade. Enquanto dura, sabemos que a Natureza há-de sempre gozar do seu poder, sem qualquer margem para a racionalidade. Estamos à sua mercê. E isso aproxima-nos.

[Sérgio Lavos]

24/10/06

Alice in Chains

Há uma história a ser contada, subterrânea, ignorada e distante das luzes da fama persistente. Um combate perdido contra os cinco minutos de que falava Andy Warhol, "one hit wonders" e maravilhas sem nenhum êxito, que apostaram, em alguma altura da vida, muito e acabaram por perder tudo - ou quase. O Pedro Mexia fala dos "The Sound", mas poder-se-ia pensar em todas as bandas que nos disseram algo em alguma altura da nossa vida e de quem nunca mais ouvimos notícias. As más, claro, as menos más e as marcantes. Os "Alice in Chains", para todos os que gostaram de grunge, poderiam ter sido a banda em que os "Pearl Jam" se tornaram. Ainda bem que não aconteceu assim - apesar de nada se poder apontar ao instinto de sobrevivência de Eddie Vedder. Layne Staley foi encontrado morto em Abril de 2002, tendo sido apontada como provável data de morte 5 de Abril, o mesmo dia em que morreu Kurt Cobain. A sua longa luta contra a dependência acabou por ter um final inglório - mas foi essa luta que permitiu à banda a que ele pertencia registar os seus momentos de glória. Não se pode falar em sofrimento necessário - a fonte de toda a criação. O som pode estar desactualizado - o relativismo citacionista [sic] da maior parte da música que se faz agora esvazia de sentido os anos do grunge e a sinceridade crua que lhe estava associada. Até ao próximo retorno musical, ouvimos os originais. "Alice in Chains" a tocar (do lado direito) durante os próximos tempos.

[Sérgio Lavos]

23/10/06

Excepção

O mercado tem, no entanto, algumas vantagens. Permite que exercitemos o ofício da mineração, obriga-nos a encontrar pepitas fabricadas por alguns que ainda não cederam às leis selvagens do liberalismo económico. Por outras palavras, sem fru-fru de rendas, há quem ainda edite por gosto. Não é fácil encontrar por aí os livros da editora Livros de Areia (link para o site). Mas vale a pena. O design do site é impecável (e vale a pena procurar o trailer da próxima saída, de uma originalidade inédita por cá), os livros recomendam-se. Os autores publicados espelham, desconfio, o gosto dos editores. E a julgar pelos títulos, é um gosto exemplar. O livro de Eduardo Galeano sobre futebol passou ao lado do Mundial da Alemanha, mas não devia: é excelente. Rhys Hughes, um galês apaixonado por Borges, também é bastante legível. E neste momento leio o primeiro livro de Jeff VanderMeer (também ele editor nos E.U.A.), onde se cruzam os mundos de Kafka, Chesterton e Borges de modo original, o que, diga-se de passagem, poderia ser uma tarefa complicada, dada a sombra que tais figuras conseguem projectar. No site pode-se encontrar as livrarias onde estas obras estão disponíveis. A visitar.

[Sérgio Lavos]

22/10/06

Os grandes latifundiários

Queixa-se João Paulo Sousa, citando António Guerreiro no Expresso, de que a edição de obras de cariz menos comercial, seja ficção ou pensamento na área das ciências sociais, está ser completamente submersa pelo dilúvio de má qualidade que inunda neste momento as livrarias. Aproximamo-nos do colapso, é certo, e até posso dar o exemplo de uma obra recensionada por Eduardo Pitta para o Mil Folhas, o romance de Luísa Costa Gomes, "A Pirata". No meio do entulho que as editoras conseguem colocar nas livrarias, aí está um exemplo do que acontece a um livro bem escrito, sem pretensiosismo de qualquer espécie (a não ser o da exigência da autora), que por acaso até pega num tema que está novamente na moda - graças ao filme "Piratas das Caraíbas" - e que também por acaso se destina a uma fatia do público - juvenil - que acaba por consumir livros numa média bem mais invejável do que a maioria dos adultos o faz - ao contrário do que julgam algumas cabeças bem-pensantes deste país -, mas que, quase que aposto, vai passar despercebido durante os próximos três meses até desaparecer nas prateleiras da editora, devolvido pela livraria. Razões? Tudo começa, lamento, na editora. Estará Luísa Costa Gomes disposta a percorrer o calvário da promoção do livro? Se está, porque não aparece, não promove? Porque a editora não quer. Está interessada antes em valores seguros - no caso, o próximo Lobo Antunes e quem sabe se uma Inês Pedrosa vindoura - ou então promove um qualquer sucedâneo de "O Código da Vinci", ou o livrinho escrito em forma de redacção da primária sobre as aventuras sexuais de uma dona-de-casa, etc, etc. O que é negociado com os livreiros, em termos de promoção no espaço da livraria, não são os autores exigentes consigo próprios - de qualidade, se quisermos ceder a esse termo por vezes equívoco -, muito menos as obras nas áreas das ciências sociais ou da divulgação científica. Por exemplo, um representante da Presença queixava-se de que o recente Prémio Nobel, Orhan Pamuk, não vendia (até agora, claro). Mas terá a editora feito algum esforço para promover as obras de Pamuk junto dos livreiros, quando foram inicialmente publicadas? Eu sei que não. Quem manda nas editoras, cada vez mais burocratas encartados com cursos de gestão ou marketing que consideram o livro um produto qualquer, pensa apenas no lucro máximo. Esta estratégia, é óbvio, apoia-se nas fraquezas do consumidor. A ignorância, a iliteracia, a falta do tal "sentido crítico" de que fala António Guerreiro. O curioso é que há livros que escapam ao torniquete cego dos novel editores e fazem o seu caminho de forma surpreendente. Nas áreas citadas, lembro-me por exemplo do livro de José Gil, "Portugal Hoje, o Medo de Existir" ou as obras de Nuno Crato sobre educação ou alguns títulos sobre ciência de Jorge Buescu, editados pela Gradiva. Ou ainda o assinalável êxito que representa cada novo livro de António Damásio. Mas atenção! Neste último caso, a promoção é feita como deve de ser. As entrevistas da praxe, as negociações com os livreiros por parte da editora (a excepção na Europa-América, diga-se, quase sempre apostada em baixar o nível em todos os livros que edita), as aparições regulares nos ecrãs de televisão.
As editoras, interessam-se por estes fenómenos? Poucas, porque a ignorância começa em quem manda. O clássico editor, leitor incansável, amigo pessoal dos seus autores, culto e interessado na divulgação do conhecimento, é cada vez mais um mito. Entramos na era da globalização, parece. Mas não parece, se pensarmos nos exemplos lá de fora. O caso da Penguin, dissecado esta semana na páginas do Mil Folhas, é disso exemplo. Um dos maiores grupos editoriais do mundo, que conseguiu crescer e manter a estabilidade financeira sem nunca descurar o objecto primordial, de onde o lucro nasce: o livro. Lições que os nossos plantadores de bananeiras, aqueles que dirigem as maiores editoras, deviam seguir com atenção. A matéria é vegetal, é a mesma, mas a alma é diferente. Quem perde com a cegueira economicista é o leitor.

[Sérgio Lavos]

18/10/06

Os parasitas

Não sei, e sinceramente não me interessa saber, se a opinião pública dos países civilizados de que nos vamos irremediavelmente afastando tem a mesma simpatia que a nossa em relação aos artistas, essa fauna de lunáticos, abstractamente ociosa, que apenas consegue reunir forças para sacar o subsidiozinho da ordem ao Estado matriarcal, sempre pronto a deitar a teta de fora. Estarei errado, exagero? Julgo que não, e se ainda não consegui captar a atenção de quem por aqui passa para este texto, será apenas por manifesta insuficiência do estilo. Explicarei: do proletário mais aferroado ao burguês mais bem instalado no seu conjunto de créditos, ninguém escapa; "cambada de chupistas! Horda de preguiçosos e inúteis que se limita a mimar umas coisas para outros como eles, enquanto o resto do pessoal se esfalfa a trabalhar 40 horas ou mais por semana para conseguir pagar as prestações e os luxozinhos burocráticos!" O intelectual liberal - no novo significado da expressão, muito distante das velhas esquerdas de outros tempos ou dos "extremistas" americanos - segue a manada: toca de picar o morto. Que o mercado se rege por leis muitos simples e que por isso a cultura nunca deixará de existir, ainda que não existam subsídios; que uma cultura parasitária não é independente do poder que a sustenta - e o legado de Carrilho assim o prova; que a pouca criatividade e a estagnação da maior parte das áreas culturais no país são uma consequência directa da estatização das artes. Tudo claro, certo? Lamento, mas errado. A desconfiança em relação aos artistas é das mais provincianas atitudes que este país tem. Desde o taxista de palito no dente ao intelectual de direita, bem lido e melhor informado, ninguém escapa. Divaguemos um pouco. E se, por acto divino, desaparecessem de um momento para o outro todos os artistas deste país, toda a medíocre criação dos medíocres artistas que temos. Ao taxista tanto se lhe dá como se lhe deu. A ele basta o copito, a bola e a cultura da violência doméstica. E o intelectual de direita, o que fará? É verdade que ainda pode ler a imprensa internacional e a literatura em língua estrangeira, mas, miseravelmente, ficará órfão do seu objecto de maledicência, não dos espectáculos em si, porque esse ele não os frequenta (quem quer saber de dança contemporânea, performances paradas ou instalações em movimento, quem se interessa pelo teatro independente, aliás, quem quer saber de teatro, tirando as companhias consagradas?). A falta que lhe farão os artistas parasitas! Porque, não se duvide, falamos de política, não de cultura. E, já se sabe, má-sorte a maior parte destas criaturas ser de esquerda - e falo, não esquecer, dos artistas que parasitam o contribuinte sem dó nem piedade.
Irrita-me o provincianismo português, e mais ainda aquele que se dá ares de cosmopolitismo anglo-saxónico. Pois se é verdade que nos E.U.A. não existe cultura subsidiada e nem por isso deixa de haver lugar para a diversidade criativa no país, também é verdade que, por exemplo, no Reino Unido grande parte das companhias de teatro são subsidiadas, o que contradiz aquela ideia de que a arte dependente de dinheiros públicos não é estimulante. O facto de, por exemplo, o teatro isabelino ter florescido graças ao apoio do Estado será coincidência? E Harold Pinter, terá trabalhado toda uma vida para companhias independentes?
A generalização, enfiar todos os artistas no mesmo saco, leva a que não se discuta os problemas de um modelo altamente dependente do apoio público. A Rui Rio pouco importa se os gestores privados do espaço produzem ou não uma oferta cultural de qualidade. Quer apenas cortar nas despesas, e falamos de um espaço emblemático da cidade. Poderão os portuenses que se interessam dar-se ao luxo de perder tanto por tão pouco - o inenarrável Rio?

[Sérgio Lavos]