15/05/11

O Estranho Caso de Angélica

A pose encenada de Angélica, um portento de beleza e mistério, será uma chave para se compreender o cinema de Manoel de Oliveira. A distância entre os códigos do cinema moderno, que supostamente será mais realista, longínquo do teatro filmado que, nas palavras do cineasta, o cinema nunca deixou de ser, e os que sustentam a obra de Oliveira, terá sido o que criou o mito sobre o cinema de Oliveira e, por metonímia, o cinema português. Maravilha, ainda bem que assim é. O realizador de 103 anos é o cinema português, e ter conseguido criar uma obra como O Estranho Caso de Angélica é um milagre. A idade não é um problema: há mais modernidade neste filme - apesar dos efeitos especiais evocando o cinema clássico de Meliés ou o expressionismo alemão - do que na esmagadora maioria das estreias com pipocas dos últimos dez anos. Uma modernidade que recorre, com uma inteligência fulgurante, a citações, à metaficção, à ironia, ao jogo intertextual com a anterior obra e com a obra de outros autores. E há, ainda, o prazer da descoberta. Nunca me terei apercebido do modo perfeitamente distanciado, auto-irónico, como Oliveira encara a utilização de actores amadores e a artificialidade pomposa do seu desempenho - um dos horrores que lhe apontam, como se um filme como Avatar fosse menos artificioso do que qualquer um de Oliveira. Mas sim, espantoso, Oliveira sabe, e brinca subtilmente com isso, demonstrando através das imagens o que já afirmara em entrevistas. 
Voltando a Avatar - e apetece falar deste filme que diziam ir revolucionar o cinema -, nem o mais perfeito 3D poderia provocar em nós o efeito que a sequência final de O Estranho Caso de Angélica provoca: um plano comovente, por tudo o que sabemos do que existe fora da sala de cinema, mas um plano também que nos engole e, num prodígio de magia, nos coloca dentro do filme, mergulhados na mesma escuridão do fotógrafo que se perdeu de amores por uma morta. 
E, por entre deliciosos anacronismos, a beleza da paisagem do Douro fotografada de forma brilhante, uma montagem perfeita complementada por uma montagem de som que cria fantasmas sonoros em cada cena, homenagens nada veladas ao cinema soviético (e juro que vi John Ford em alguns contra-picados), somos derrotados pelo vigor de um artista que merece muito mais do país onde calhou nascer. É um cliché, mas é também verdade. Um pecado não ver esta obra-prima.

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