22/03/10

Alice

Não sei por que razão, até à estreia do filme de Tim Burton achava que Alice devia ter o cabelo preto, asa de corvo, liso. Não sei, mas sei, disse que não sabia porque começar uma frase por um "não" deve ir contra várias regras da escrita; sei, portanto, e a razão é Alice Liddel, a adorável menina retratada por Carroll, e que aparece no livro da Assírio & Alvim cujo título é, está bom de ver, Meninas. Não vale a pena alongar-me sobre as suspeitas que pairam sobre a vida do diácono Charles Lutwidge Dodgson, porque apenas me interessa o génio de Lewis Carroll. Para além do mais, foram já escritas milhares de páginas sobre o assunto, sem se ter chegado a conclusão razoável. Por mim, mantenha-se a dúvida - castigar o passado com a malícia do presente parece-me um pecado que Carroll não deveria suportar. Pensando no cabelo asa de corvo de Alice, e certamente convencido de que até uma série alemã que eu vi há mais de muito tempo me mostrara tal tom capilar, fui ver o filme de Burton em espampanante 3D e gostaria de não ter ido e ter esperado apanhar o filme nas suas banais duas dimensões no sítio do costume, o covil dos piratas virtuais. Bocejo, bocejo, mas enquanto me remexia na cadeira, ajeitando os óculos para aqui e para ali, comparando a imagem que era projectada no ecrã com aquela que pulava em meu redor, irritante como uma melga estival, bem suspirei pela morte das três dimensões, essa eventualidade que me obriga a descartar a imaginação durante algum tempo. É simples: cinema são duas dimensões, a terceira é da ordem da consciência, ou como afirma uma frase que é título de um livro sobre cinema, "The mind is the screen". Concluindo, nem Alice cabelo asa de corvo nem experiência cinematográfica, um quase vazio frustrante que desmerece o génio de Carroll e de Burton - por baixo do fogo-de-artifício, entrevia-se a verdade manchada pela criminosa tecnologia - é desta que vou reler os livros.

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