08/11/08

Sapatos velhos

Não sei que traços da minha personalidade revela a acumulação de objectos inúteis em casa. Jornais antigos, bilhetes de cinema e catálogos de exposições, bilhetes de comboio, escrevinhados, sacos que não saem do mesmo sítio há anos, sapatos velhos. Sapatos velhos? Sapatos velhos, é verdade, calçado que uso há décadas, ténis, botas, sapatos. Ainda se molda, cada peça, à forma do meu corpo - será esta a razão porque não me desfiz, nem quero me desfazer deles. Porque desfazer é o contrário de fazer, e durante todo o tempo que os sapatos velhos andaram carregando os meus pés eu me fui fazendo. O movimento é espacial e temporal - transporta-me de um lado para o outro e leva-me a um momento no futuro - a proposição usada, "a", é a mesma para espaço e tempo, e pela gramática comprovamos teorias da Física. Se a construção daquilo a que chamamos "eu" tem que ver com as relações com a matéria que nos rodeia - a casa, os livros, os veículos de transporte, as cidades e aldeias, a gente -, essa construção completa-se com a comparação entre aquilo que fomos e aquilo que somos, agora. Os sapatos velhos têm inscrito neles a altura exacta em que os comprei, a circunstância certa em que os usei. Por onde andaram, a terra que pisaram - umas botas que subiram a montes, uns ténis que levei a concertos de bandas que raramente, agora, ouço - por quem foram vistos. Mais do que a roupa, mas a roupa é outro problema - variamos mais, não nos ligamos tanto às peças. A relação monogâmica que estabelecemos com os sapatos velhos é aquilo que nos vai definindo. Atirar fora esses sapatos é como terminar com alguém, cortar com uma porção concreta de passado. E pensar que possam tais objectos inanimados serem desvalorizados, ao ponto de ser ridículo usá-los como tema de escrita - aquilo que lhes permite sobreviver para além daquele dia em que são atirados, sem dó nem pena, ao caixote de lixo, e com eles a vida que se foi acumulando. Como lama seca.

[Sérgio Lavos]

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