Ao longo da História, o prémio de maior vilão tem sido firmemente disputado entre a realidade e a ficção, e não se pode dizer que haja um vencedor previsível ou definitivo. O mal real, palpável, traduzido em actos hediondos, concorre com o mal ficcional, criado a partir de palavras ou do desempenho de actores.
Mas os vilões da ficção levam vantagem neste confronto. Conhecemos as motivações, convivemos com eles, chegamos a sentir as suas dores, as suas razões, as suas penas. A mestria do criador permite que muitas vezes sintamos simpatia por parricidas, assassinos em massa ou seriais. O anti-herói, uma das mais perversas categorias criadas por escritores - e que o cinema aproveitou, enriquecendo as palavras com inesquecíveis imagens -, colocou-nos num campo desconfortável: o da relatividade moral. Ao compreendermos as intenções de um assassino, ao vivermos com ele o desconforto, ao encontrarmos motivos para os seus actos hediondos, desistimos de parte da nossa humanidade? Talvez não. Porque ao confrontarmo-nos com o lado mais negro da alma humana - o vilão é sempre uma extensão da psique, uma emancipação do ego sobre os constrangimentos das regras de convívio social -, exorcizamos a violência gerada pelas agressões do quotidiano. Aceitamos os impulsos homicidas de Dexter porque há sempre uma extensão de nós que compreende o fascismo da violência que combate a violência. Entendemos a deriva niilista de Walter White porque vivemos as nossas vidas recolhidos na mesma placidez doméstica castradora de que ele tenta libertar-se ao longo da série.
Os escritores moldam as suas personagens como barro, mas moldam também os corações e o espírito dos seus leitores. Ao escolherem vilões como personagens principais, sabem que estão a conduzir o leitor para um jogo perverso. Quem ama uma história ama também quem a protagoniza. Mesmo quando no fim o vilão acaba por ser derrotado. Estamos do lado de quem, de Iago ou de Othelo?
Mas a realidade é outra coisa. Mantém-nos à distância, impossibilitados de compreender actos extremos. O assassino em massa que, enfiado dentro de uma caixa de vidro, clama pela normalidade do que fez, é um estranho. Em vão lemos as notícias de jornal procurando saber as razões pelas quais alguém decidiu fazer o que fez. Conhecemos as confissões, as cartas escritas, os livros que relatam as atrocidades, mas haverá sempre uma zona de sombra a que não acederemos. O impulso homicida, o sadismo, parecem estar apenas a um palmo de distância, mas são inacessíveis, existem para lá da barreira de vidro. Por isso, não se compreende a defesa ensaiada por este advogado. Defensor de um dos cúmplices de uma mulher que matou três pessoas e tentou matar mais duas, decidiu associar o carácter da assassina, Joanna Dennehy, ao dos vilões do teatro shakespeareano. Afirma que o seu maquiavelismo e a capacidade de manipular quem a rodeava levaram a que o cliente que ele defende a tenha ajudado a cometer os crimes de que é acusada - como se o livre arbítrio se tivesse ausentado das decisões tomadas pelo cúmplice. Encontrar na literatura a defesa para a violência da realidade é arriscado, não lembraria a ninguém - ou lembraria apenas a um advogado, essa figura de moralidade esquiva também retratada com especial cuidado por muita ficção. Contudo, desconfio que os juízes não embarcarão na conversa do advogado. Olhamos para a fotografia da serial killer e encontramos ali a tal opacidade impenetrável, o limite que não queremos ultrapassar. Que diferença em relação aos vilões literários, figuras de apelo irresistível, companheiros de muitas horas bem passadas. A realidade é demasiado real para ser suportável.