Nunca me tinha acontecido sonhar com uma personagem de um livro. Muitas vezes andaram a rondar o meu espírito durante dias, semanas, anos, regressando de tempos a tempos a meio de um pensamento ou no intervalo de uma frase numa conversa. Alguns escritores dizem frequentemente, entre a verdade e a simples armadilha de marketing, que se apaixonam por personagens que criam, sofrendo quando terminam o livro. Não me lembro de leitores assombrados por figuras de ficção, por pessoas inventadas, vivendo uma existência de papel, frágil e ao mesmo tempo contendo em si possibilidades de eternidade. Talvez haja leitores desse tipo, e se assim for já terão sido criados por Jorge Luis Borges, o escritor dos leitores improváveis - ainda que nunca tenham sido passados às páginas de um livro.
Pela primeira vez aconteceu. Acordei do sonho com um sorriso nos lábios, o perfeito reverso da angústia que se sente ao despertar de um pesadelo. Sei que a ficção pode deixar marcas invisíveis, duradouras, mas não pensei que pudesse mergulhar de forma tão profunda na vida, atravessando o rio que separa o sono da vigília. Não que a literatura não me tivesse já avisado disso. Não é a viagem de Virgílio à procura de Beatriz uma jornada onírica? A morte não será um sonho no qual se perde quem nos ama? Deitar a cabeça na almofada, deixar que o sono transporte o espírito para paragens desconhecidas, cair no abismo discreto do sonho. E sonhar, ou perder a vida, perdermo-nos no esquecimento.
No meio de um sonho banal, ela apareceu. Alta, loura, corpo jovem e cheio, repleto de promessa. Nunca um convidado tinha entrado de forma tão intrusiva na mais reclusa intimidade a que temos direito. Certas teorias psicanalíticas dizem que todas as figuras que dançam connosco nos sonhos são projecções do Eu, outros Eus confrontando-nos, revelando o que na realidade somos. Não sei se acredite, e se precisasse de prova irrefutável para acabar com esta suspeita, poderia dizer que a encontrei, ao encontrar uma personagem de Rentes de Carvalho a meio de mim próprio. A amante holandesa, saída do livro homónimo, ela própria, na dupla encarnação imaginada pelo autor, amante inventada por Gato e amante real - mesmo que de aparência sonhada - do narrador. No meu sonho, ela era as duas, perdida entre a juventude eterna a que apenas a ficção pode dar vida, e aquela meia-idade a caminho da velhice em que as duas Clarisses existem. Quando acordei, os pormenores tinham-se desvanecido. Sentia ainda no corpo os vestígios de um desejo estranho, nascido de uma imaginação que se alimenta de outra. Mas ela tinha sido real, existira. De uma existência de papel para uma existência mais ténue ainda, a amante holandesa viveu em dois mundos. E quem poderá afirmar, para além de qualquer dúvida, que cada um destes dois mundos não é mais verdadeiro e concreto do que o mundo real para onde todos os dias acordamos? Vivemos do espírito, não do corpo que o carrega.