30/11/08
28/11/08
BSO
Depois da música inicial, as imagens fundem-se no som da natureza envolvente, e Blake torna-se parte dos lugares por onde anda. Uma mancha na floresta, em movimento, silenciosa, algo que está a deixar de ser humano.
Num filme que é suposto retratar os últimos dias de Kurt Cobain, a música que ouvimos é escassa. Gus van Sant prefere que os ruídos naturais se evidenciem - o som de pássaros por entre as árvores, o crepitar das folhas secas sob os pés, a água da cascata a correr, o baque do corpo na corrente, a fogueira ardendo no escuro, o grito primitivo do músico, o comboio na distância. A ilusão é perfeita: o som não é captado de forma directa, mas inserido na pós-produção, resultando em sequências que podem ser apenas ouvidas, representação bastante aproximada da ideia de uma realidade; e panteísta, como sucede em Gerry, a longa caminhada dos dois Gerrys para a morte, os passos sobre a areia multiplicando-se sobre si próprios.
Como se a morte se insinuasse através de um desejo primordial de regresso à Natureza. Longe da multidão enlouquecedora. Um Walden pós-moderno.
[Sérgio Lavos]
Bombaim
Conheço a cidade através das palavras de Salman Rushdie, a cidade de outros tempos, viva, mais viva em Filhos da Meia-Noite do que na realidade seria. Pelo menos, até ler este texto da Ana de Amsterdam, na primeira pessoa.
Será possível alguma vez sentirmos o sofrimento dos outros como sentimos o nosso?
[Sérgio Lavos]
26/11/08
22/11/08
Gonçalo M. Tavares
Gonçalo M. Tavares publicou, em seis anos, 23 livros. Será necessário algum rigor para escrever tal número. Atenção, não foram 38, como escrevi (antes de verificar no Público o número correcto), nem 36, como julgo ter afirmado em conversa com alguém (já não me lembro quem).
Tudo o que tem vindo a lume, quase tudo, foi escrito durante um longo período de tempo, e depois Gonçalo começou a publicar. Quando começou a publicar, deixou de escrever. Até começar a publicar, escreveu. Todos os dias, já o disse em entrevistas, de manhã, nos cadernos - pretos ou não. Cada texto publicado vai para uma colecção, organizada de acordo com o caderno em que foi escrito.
Dos primeiros livros publicados, avulta O Senhor Valéry, o primeiro da série dos senhores. Esta série inventa, mais do que personagens vagamente inspiradas em escritores, um espaço para as colocar, um bairro. Neste bairro elas existem, mas raramente se cruzam. Conversam, encontram outros habitantes das vizinhanças, mas principalmente surpreendem-se com o bairro onde vivem. O carácter infantil das histórias dos senhores passa sobretudo pelo modo lúdico com que são encarados os pormenores existenciais, as dificuldades do mundo. Cada situação é enfrentada com a seriedade de um adulto e resolvida com a displicência de uma criança. A infância é o tempo em que a maior parte dos problemas que nos interessam é ultrapassada: como contornar as dificuldades que os outros nos colocam, como aprender a confiar neles, e como contar com isto para que o mundo se molde à nossa vontade. Crescer é como construir um bairro: alicerçar as casas, erguer as paredes, pôr gente a viver lá dentro, construir as ruas que levam a outras casas, olhar o quadro de fora, como um arquitecto divino.
O método de Gonçalo M. Tavares é frio, consegue descrever o quadro de maneira grandiosa. À puerilidade do bairro dos senhores é acrescentada a tetralogia do reino (A Máquina de Joseph Walser, Um Homem: Klaus Klump, Jerusalém, Aprender a Rezar na era da Técnica). Neste reino, esquecemos os problemas de infância, os jogos que nos serviam para resolver esses problemas. As personagens da série são racionais, prodígios de raciocínio, frias máquinas obedecendo a frios desejos. Neste mundo desolado, a violência germina facilmente. Se no bairro dos senhores a desordem ameaça a cada página, no Reino o mundo é perigoso. E o perigo não vem do exterior, mas do interior; a violência nasce da razão. Todos os grandes ditadores da História fundaram os seus reinos de terror na técnica, num método. Não há qualquer sugestão de irracionalidade no acto de destruir outro homem; a intenção é puramente da ordem do pensamento concreto, sem vestígios de imaginação, no sentido em que, para aceitarmos o outro, precisamos de imaginar o que ele é, o que sente.
A permanente tensão da série o Reino transporta-nos da infância para a idade adulta: o tempo da entropia progressiva, da ameaça de destruição iminente. A violência como motor da evolução humana.
[Sérgio Lavos]
Ensaio Sobre a Cegueira
O que a adaptação de Fernando Meirelles de Ensaio Sobre a Cegueira deixa de fora é a visão comunista que Saramago impõe ao romance. Simplificar, simplificar, até chegarmos a território neutro, no qual não se perceba se a história dos cegos é uma parábola que descreve a natureza humana ou uma utopia libertadora, típica de uma certa visão de esquerda que ainda não foi extinta.
O grupo de cegos que sobrevive é, no romance, uma comuna que aceita docilmente a autoridade de um líder (messiânico), que, ironicamente, é conduzido por alguém que tem uma qualidade que a torna superior aos que seguem: a mulher que vê. Se o moralismo de Saramago pretendia denunciar a maldade inata do Homem, personalizada no déspota da camarata do lado e do cego antes da cegueira que o conduz, acaba por não conseguir. Isto seria uma possível leitura. Mas julgo que a verdadeira, apesar de entrar por caminhos conspirativos, é esta: ao fascismo violento do grupo liderado pelo vilão do livro opõe-se o sentido comunitário do grupo da mulher que vê. A resposta que resta é: será ingénua a "cegueira" de Saramago, ao não perceber que é tão totalitária a liderança subterrânea da mulher que vê como o maquiavelismo do cego que manipula o déspota? A bondade da comuna, romântica segundo o olhar de Meirelles, é o exemplo mais evidente da ideologia moralista do romance de Saramago. A imagem da coluna de cegos a caminhar pela cidade, fila ordeira, líder vidente conduzindo os restantes numa clara hierarquia, é um delírio que Orwell não desdenharia; a diferença é que, se este tratasse o tema, seria sempre com o objectivo claro de denúncia. Saramago, como sabemos, nunca o faria - e não fez. E Meirelles, terá percebido a complexidade da manipulação saramaguiana?
[Sérgio Lavos]
21/11/08
16/11/08
Clube de Combate
Para além do tema do artifício da identidade, central no filme, Clube de Combate, de David Fincher, é visionário. Dez anos depois, as torres corporativas foram destruídas por terroristas que desprezam o modo de vida capitalista, o vazio em que este se funda, e o coração do mundo financeiro sofreu um abalo que, esperamos, irá mudar o mundo como o conhecemos. A segunda parte da operação de destruição do modelo ocidental prossegue neste momento, em que eu escrevo, e o mais estranho é quase ninguém se aperceber disso. Assim funciona a História: as grandes mudanças são imperceptíveis para quem as vive. Aquilo que julgámos ser o momento essencial dos nossos tempos - o atentado às Torres Gémeas - foi apenas um prelúdio para algo maior. Este tipo de linguagem, hiperbólica, disparando em todas as direcções, acaba por acertar em qualquer coisa. É a linguagem de Tyler Durden, o terrorista do quotidiano que encarna os desejos mais profundos dos descontentes da sociedade de consumo: destruir os alicerces que a suportam. Não confundir estes descontentes com os marginalizados da sociedade; estes perseguem, e hão-de perseguir as promessas que o capitalismo oferece. Os descontentes vivem na sombra da riqueza gerada pela máquina global, alimentam-se dela e cospem no prato que lhes dá comida. O descontente do capitalismo é um funcionário burocrata, cansado dos milhares que ganha, da casa decorada no Ikea e do bem-estar perpétuo, do tédio quotidiano. O descontente é um produto secundário do capitalismo, inevitável. Slavoj Zizek fala da Checoslováquia dos anos 70 como o mundo ideal, aquele que consegue o equilíbrio perfeito entre necessidade e desejo: necessidades materiais satisfeitas e desejo de liberdade por satisfazer. A sociedade do consumo falha neste ponto; é essa a principal ideia em Clube de Combate.
Tyler Durden rejubilaria com o colapso do sistema financeiro mundial. Mas quem verdadeiramente irá sofrer com isto preferia que a profecia não se tivesse concretizado.
[Sérgio Lavos]
15/11/08
The child/Alex Gopher
te
[Sérgio Lavos]
A aleatória relação entre significado e significante demonstrada em forma de canção electro-pop: eis o objectivo deste video realizado por H5, a ilustrar uma música de Alex Gopher. Um sample soul e umas batidas lounge, o som está lá, mas o que interessa é o movimento das palavras, o ziguezague das coisas pelas ruas de Nova Iorque, os sons de gente a falar que atribuem consistência à ilusão. Que ligações se estabelecem no nosso cérebro, permitindo que a cidade seja real apesar de nenhuma representação directa do mundo se dar? Serão os objectos símbolos, como o são as palavras, e antes delas, os sons que as compõem? Nomear as coisas é aquilo que lhes permite ter substância. O reconhecimento do mundo não é natural, a linguagem não é uma extensão do mundo; é antes uma continuição da inteligência humana, um atributo que é passado de ser para ser, o código da acesso à consciência humana.
Ou será que este video é de uma simplicidade absoluta e não coloca estas questões que artificializam o que é fácil de entender, instintivo? Aquilo que até uma criança entende?
14/11/08
Colóquio/Letras
Tenho alguns livros na estante que comprei apenas em função da sua utilidade estética; e escrever utilidade estética não é apenas um paradoxo, é a realidade das coisas. A beleza não é apenas fundamental, como cantava o outro, é necessária para que um objecto tenha uma existência imprescindível. E quem diz objecto, pensa em gente, claro.
Esses livros, essenciais em qualquer biblioteca, podem ou não ter mundo dentro deles - se forem vazios, salva-se sempre a pureza das linhas e das cores. A perfeição da composição gráfica; aqueles livros em que dá vontade de pegar apenas para olhar para o desenho das letras na página (acontece-me neste momento com os livros da Sextante, por exemplo, saídos do atelier de Henrique Cayate e enriquecidos com as letras de Mário Feliciano, o inventor da elegância tipográfica). A história é bamba, fraquinha, o estilo é raso e enjeitado; não interessa, a mancha de tinta preta no papel branco é enlevo suficiente. A beleza é essencial.
E a capa, o embrulho do todo, o que captura o leitor na livraria. No oceano de ruído, cromocaótico, dos escaparates das novidades, espreita o próximo livro, e é sempre a sua cara que primeiro nos convence. O rosto de um livro é a sua capa, e é por ela que ele é sempre julgado, como diz a frase inglesa (ou o verso dos Prefab Sprout).
Um destes exemplos, uma revista Colóquio/Letras (Janeiro/Junho de 1998) que comprei não porque, naquele caso, me interessasse especialmente o conteúdo, mas porque não resisti ao apelo do conjunto, à beleza simples do objecto. Tenho outros números, mais ou menos conseguidos graficamente, mas sempre exigentes ao nível do texto, e não tenho dúvidas de que é esta a única revista portuguesa de literatura que consegue combinar o rigor académico com o apelo a um público não-especialista (julgo que a razão disto também passa pelo cuidado na edição). Parece que querem afastar Joana Morais Varela, a principal responsável pela excelência do projecto, da direcção da revista, por razões mais ou menos ínvias (se não mesmo ímpias). Esperemos que não. Fazer bem é coisa tão rara em Portugal que seria (também neste caso) lamentável se isso acontecesse.
[Sérgio Lavos]
13/11/08
Novas tecnologias
Através do José Mário Silva, o futuro, a loja das Quasi. Apetitosas, no mínimo, as imagens. Livraria? Nave espacial? O que irá nascer naquele espaço?
[Sérgio Lavos]
09/11/08
O desaparecido
Li, e aconselho a quem me lê que o faça também, os dois textos do regresso de João Ventura ao O Que Cai dos Dias, dois posts certeiros sobre Herberto Helder, e depois da poeira assente vale a pena voltar ao tema. Mas por outra porta, a que António Guerreiro me entreabriu hoje, no Expresso - o texto sobre a biografia de Kafka que está a ser publicada neste momento na Alemanha, três volumes dos quais falta apenas sair o dedicado aos anos de infância e adolescência do escritor.
O que existe de comum entre estes dois autores? A vontade de desaparecimento, diluição na banalidade dos dias. Kafka, escritor desconhecido na sua época, afirmou ser ele a própria literatura, mas o interesse de escrever uma biografia monumental sobre um homem com uma vida lisa, sem peripécias ou planaltos, que contudo deixou uma vasta bibliografia íntima - diário, cartas, etc. -, reside precisamente no enigma do confronto entre a sua afirmação pública e a produção artística privada. O que levou aquele homem a escrever, a "tornar-se literatura"? A dissecção minuciosa dos dias, das relações, do movimento, seria um bom ponto de partida para encontrar uma resposta, mas dificilmente será um ponto de chegada. Os romances inacabados de Kafka eram iguais à sua vida, ele afirmou-o no diário, e esta construção de uma personagem que se ausenta, que tende para o silêncio, faz parte do discurso de afirmação enquanto escritor que ele procurava.
Herberto Helder, na sua procura do poema contínuo, sem princípio nem fim à vista, na sua identificação com essa obra em passagem pela matéria onde se inscreve, evidente na continuidade entre autor e título da obra (Herberto Helder ou o Poema Contínuo, numa anterior edição da obra poética) - como bem notou António Guerreiro na sua recensão a A Faca Não Corta o Fogo -, é a versão possível desta vontade de imanência do criador. Possível porque a sua consagração funciona como obstáculo à execução do objectivo - ser Herberto Helder é incompatível com a sua condição de poeta maior do século XX, e imaginamos que as duas possibilidades apenas se podem excluir mutuamente. A sociedade do imediatismo e do mediatismo fabrica personagens que não passam de figuras vazias povoando as narrativas do leitor, essa categoria volúvel; o leitor, mais do que completar o circuito de criação de uma obra, corrompe a obra que recebe, transformando-a em algo dissemelhante daquilo que era a intenção do autor. Kafka, personagem refugiada na sua própria obra, não sofreu este destino - o seu desaparecimento foi completo, e talvez tenha apenas fraquejado no fim, ao não condenar ao fogo os seus escritos.
A opacidade de Herberto não chega a ser um perfeito truque de ilusionista; ele é um desaparecido em eclipse, que julgamos ver quando olhamos para o lado. A obra continua.
08/11/08
Sapatos velhos
Não sei que traços da minha personalidade revela a acumulação de objectos inúteis em casa. Jornais antigos, bilhetes de cinema e catálogos de exposições, bilhetes de comboio, escrevinhados, sacos que não saem do mesmo sítio há anos, sapatos velhos. Sapatos velhos? Sapatos velhos, é verdade, calçado que uso há décadas, ténis, botas, sapatos. Ainda se molda, cada peça, à forma do meu corpo - será esta a razão porque não me desfiz, nem quero me desfazer deles. Porque desfazer é o contrário de fazer, e durante todo o tempo que os sapatos velhos andaram carregando os meus pés eu me fui fazendo. O movimento é espacial e temporal - transporta-me de um lado para o outro e leva-me a um momento no futuro - a proposição usada, "a", é a mesma para espaço e tempo, e pela gramática comprovamos teorias da Física. Se a construção daquilo a que chamamos "eu" tem que ver com as relações com a matéria que nos rodeia - a casa, os livros, os veículos de transporte, as cidades e aldeias, a gente -, essa construção completa-se com a comparação entre aquilo que fomos e aquilo que somos, agora. Os sapatos velhos têm inscrito neles a altura exacta em que os comprei, a circunstância certa em que os usei. Por onde andaram, a terra que pisaram - umas botas que subiram a montes, uns ténis que levei a concertos de bandas que raramente, agora, ouço - por quem foram vistos. Mais do que a roupa, mas a roupa é outro problema - variamos mais, não nos ligamos tanto às peças. A relação monogâmica que estabelecemos com os sapatos velhos é aquilo que nos vai definindo. Atirar fora esses sapatos é como terminar com alguém, cortar com uma porção concreta de passado. E pensar que possam tais objectos inanimados serem desvalorizados, ao ponto de ser ridículo usá-los como tema de escrita - aquilo que lhes permite sobreviver para além daquele dia em que são atirados, sem dó nem pena, ao caixote de lixo, e com eles a vida que se foi acumulando. Como lama seca.
[Sérgio Lavos]
06/11/08
05/11/08
Um sonho adiado
O que acontecerá a um sonho adiado?
Será que definha
como uma uva ao sol?
Ou purula como uma ferida
e depois desaparece?
Será que cheira a carne apodrecida?
Ou se cristaliza e adoça
como um caramelo?
Talvez apenas vergue
como o faz um pesado fardo.
Ou será que explode?
Um poema de Langston Hughes
versão de
[Sérgio Lavos]
03/11/08
Estamos todos por Obama?
A verdade é que parecemos americanos, no nosso entusiasmo; a pergunta deixou de se colocar há muito. Ainda mais seremos com estas eleições, depois de oito anos medievais, balançados entre mentiras que justificaram guerras e a completa idiotia de estado de que Bush foi a imagem, o corpo e a correia de transmissão de uns quantos tenebrosos oportunistas disfarçados de idealistas, que sairão de cena sem sofrerem na pele o castigo por todas as más decisões tomadas. O problema nem é o mundo estar pior agora do que na era pré-Bush; a História é cíclica. O problema é que a cultura política degradou-se tanto que já se aceita pacificamente que alguém como Sarah Palin possa ter hipóteses de ser líder dos E.U.A. - e McCain, apesar das cedências, seria sempre melhor do que Bush. Mas não, se tudo correr bem não será ele, e pensar que possa acontecer o mesmo que há oito anos com Al Gore parece uma soberana oportunidade perdida. Obama não é o segundo Messias, é certo; se atentarmos às subtilezas da sua mensagem política, veremos que não se distancia muito do centrismo de Bill Clinton, e chegam a ser preocupantes as suas ideias em relação à política externa norte-americana. Mas Obama não é apenas um político que se pode tornar presidente; é uma ideia - de mudança, de esperança, como se fosse o regresso depois de uma longa era de trevas - é assim que a maioria dos seus apoiantes o vê. E é sobretudo uma ideia para o mundo: quarenta anos depois do fim das restrições de direitos a uma minoria da sua população, o país pode eleger para presidente alguém que pertence a essa minoria - a importância simbólica desta possibilidade é incomensurável.
Habituados que estamos a conviver diariamente com a cultura deste país, ao ponto de conhecermos melhor a História dos E.U.A. do que a nossa própria História (abençoados sejam o cinema e a literatura por isto), apenas podemos estar profundamente motivados para o que vai acontecer amanhã, a dois mil quilómetros de distância. E tudo se desmoronará, se Obama perder? É difícil matar uma ideia - disso podemos estar certos.
[Sérgio Lavos]
Em Bruges
Em Bruges, dueto sangrento para dois turistas à força, vive da tensão entre os diálogos, improvável mistura entre Tarantino e Pinter, e o desempenho do trio de actores principais, directamente transportados de um filme como Get Carter, com Michael Caine; Colin Farrel (talvez menos cabotino do que o costume), Brendan Gleeson e Ralph Fiennes, bandidos irlandeses com poucos escrúpulos e muita consciência, têm o estilo de Samuel L. Jackson e John Travolta e o pathos de Stephen Rea em Jogo de Lágrimas. E podia continuar com o jogo de referências; o filme, sendo bom, esvazia-se a nível formal, não se autonomizando dos seus antecedentes, sendo apenas salvo de ser um filme na senda da filmografia balofa de Guy Ritchie em virtude do excelente guião de Martin McDonagh, dramaturgo de formação.
Apesar das fragilidades, há algumas ideias de cinema bem desenvolvidas, e o olhar do realizador consegue quase sempre encontrar o melhor enquadramento para a tragédia. Assassinos em perda, gangsters melancólicos e crianças perdidas encontram-se nas ruas da cidade belga e encaram-se enquanto estranhos longe do ambiente duro que lhes está colado à pele. Há uma certa linhagem de gangsters ingleses que é cumprida; enquanto que os mafiosos americanos são quase sempre controlados - pelo menos até que irrompam numa explosão súbita de violência, e o exemplo maior é Al Pacino - os ingleses falam com sotaque cockney, escocês ou irlandês e têm o rastilho curto, vivem com os nervos à flor da pele - mas são compassivos e tem um rígido código ético com raízes na moral católica.
Mas vale a pena a visita a Bruges? Depois deste filme, com certeza, se não for um criminoso a sofrer o martírio da culpa - como uma figura de um quadro de Bosch. Mas era disso que falávamos, do postal turístico?
[Sérgio Lavos]
01/11/08
Uma Cotovia
Como livreiro, sou obrigado a vender um pouco de tudo, e sei como é praticamente inviável manter uma livraria aberta promovendo apenas aquilo que o nosso gosto aprova. As apostas pessoais que se podem fazer em livrarias especializadas, apesar de serem um mito do mundo livreiro, são, basicamente, um risco, e não há negociante que não tenha de ceder ao mainstream, de maneira a poder vender aquilo que poderá verdadeiramente interessar - vende-se a lúmpen-literatura para se poder apostar na diferença.
E apostar na diferença pode ter resultados bastante satisfatórios. Numa livraria pequena, onde cada cliente que entra é um rosto conhecido, dá para ir sabendo o que as pessoas querem, para além dos best-sellers e do último livro do clube da Oprah. O meu trabalho é também direccionar o cliente para aquilo que eu gosto, e lamento se isto possa parecer presunçoso ou elitista. É claro que não vale a pena tentar vender diamantes a vaqueiros, e garanto que há casos perdidos, dê por onde der - a ideia de que qualquer um poderá, começando por Rebelo Pinto, chegar a ler Pynchon, é uma brincadeira de democratas com a consciência pesada. Mas o meio termo é uma mina: basta colocar os livros nos sítios certos, falar de um romance evidenciando aquilo que as pessoas querem ouvir, e a educação está feita. Uma forma de vender a banha da cobra, com a vantagem de não ser banha, nem cobra. É isto que faz a felicidade de um livreiro.
Vem esta conversa no seguimento da leitura de um pequeno volume que os Livros Cotovia publicaram agora, a propósito dos seus vinte anos, no qual recolhem depoimentos de autores e outros aficionados da casa. No blogue Os Livros Ardem Mal, Luís Quintais já fez o favor de republicar o seu texto, por isso não irei acrescentar muito mais ao que ele afirma. Apenas dizer que a Cotovia, desde que na Feira do Livro apanhei alguns números da revista As Escadas Não têm Degraus e um livro essencial cujo título é de uma beleza resplandecente, Sete Rosas Mais Tarde, de Célan, tornou-se também uma referência, e imaginando a estante (não vou olhar), vejo o Pedro Paixão e o Luís Quintais, Larkin (maior identificação com o nome da editora é difícil) e Daniel Jonas, Martin Amis, E. M. Forster, a Ilíada, até ao mais recente, Um Punhado de Pó, de Evelyn Waugh, que ainda não foi lá parar, e por isso não me sinto nada comprometido por dizer que grande parte do meu percurso de livreiro passei-o a aconselhar (também) livros publicados pela Cotovia. Há outras casas editoriais, de que vou falando no blogue, ou dos autores que elas publicam. Mas o aniversário é da Cotovia. Parabéns.
[Sérgio Lavos]
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