29/09/07

Arte de ler

Como ler um livro? Levante-se da cadeira onde está sentado a olhar para o ecrã, saltando de site em site, entre notícia de jornal virtual e página com conteúdo suspeito, dirija-se à estante e procure entre as lombadas nada menos que o assombro. Sabe que raramente o encontra. Paciência, paciência. O assombro, como algumas mulheres, surge para mudar a vida nas ocasiões mais inesperadas. Pense nisto: um livro pode não mudar a sua vida, mas mudará de certeza as horas a que a ele se dedica. E o modo como pensa a literatura. E, se for mesmo excepcional, a forma como encara a vida. Pouca coisa? Não brinque. Entre esta e outra reflexão, espreite pela janela. Vê o sol, o tempo claro, a vida a correr apressada? Está a ver o que perde? Entre algumas horas de ruído interior, silêncio em volta, e a pressa da vida quotidiana, escolha. As pessoas, claro, são importantes. Mas serão melhores que Emma Bovary, o coronel Aureliano Buendia, Gregor Samsa ou Blimunda e Baltasar?
Regresse às lombadas que gritam. Passe os dedos pelos títulos. Quantos leu, até agora? Pretende resgatar do limbo algum que tenha ficado perdido, entre compra e esquecimento da mesma? Ainda se lembra de ter comprado aquele romance do Chesterton, de lhe terem oferecido aquela antologia de William Blake? De ter roubado, em algum dia perdido nas teias da memória, aquele decisivo diálogo sobre o amor, de Platão, e de o ter partilhado com a sua amada, numa noite fria de inverno, à lareira? Fique aí. Pare. Abra o livro, sinta o papel, as letras impressas, passe o nariz pelo cheiro amarelo que dele emana. Amarelo, sim, amarelo. É sempre amarelo o cheiro de livros velhos. Imagine Jorge Luis Borges na sua biblioteca, ouvindo as palavras dos seus leitores, mergulhado nas silenciosas trevas da cegueira. E as palavras, soando, pairando, em redor, tão imateriais como o ar, cativas de uma matéria primitiva, clarão inicial da inteligência humana. Imagine Borges e o seu olfacto apurado, captando os mil e um cambiantes que as palavras dos outros transmitem.
Imagine que é Borges, e escolha o seu livro pelo cheiro. Pelo tacto. Ignore todo um passado de leituras, de preconceitos e escolhas. A página em branco brilha à sua frente. Ler um livro, como escrever um conto - do nada nasce tudo. Estará pronto para o seu big bang?
Imagina ser isto um exagero? As palavras tendem para o exagero. Mas um livro recusa o excesso, repõe a ordem no mundo. O esquema de um livro serve de modelo para a vida. Já viu como as frases encaixam umas nas outras, em harmonia, ritmadamente, até construirem parágrafos? E os parágrafos, já reparou como se sucedem numa cadência clássica, acompanhando o fluir do pensamento do escritor, a melodia interior que ele cria? Nada existe fora do texto. Conhece alguma vida assim tão perfeita?
Entrou no jogo. Pegou no livro. Sentiu-lhe o pulso. Sentou-se no cadeirão que escolheu, entre dezenas, na loja de móveis. Um livro precisa de conforto. Um livro precisa que ignore a vida que corre lá fora. Quem lê deveria ser obrigado, antes, a fazer um curso de apneia. Mergulhar dentro do livro e tornar-se peixe. Ler não é uma arte. É outrar-se, devir outro. Desaparecer dentro de si próprio. Reconhecer-se.

(Texto originalmente publicado no blogue Arte de Ler)

[Sérgio Lavos]

28/09/07

This way up

Instruções para a leitura (e descodificação) dos meus textos mais herméticos:

Ponto prévio: nenhum texto é hermético; se o texto não é compreensível, é porque existe alguma falha na argumentação, uma contradição ou outra, ou é simplesmente falho de estilo.
Daqui, segue-se o seguinte facto: o estilo é tudo. O estilo será tudo? A unanimidade é impossível (quando alguém afirma ser o melhor escritor em língua portuguesa - e os outros estão a milhas de distância - sabe que está a alienar leitores e, mais do que isso, a obra que produziu, tornando-a sujeita a leituras impuras, condicionadas por preconceitos pessoais; mas o medo de morrer é uma coisa tramada). A unanimidade é impossível. E há sempre um gajo qualquer que sabe a verdade acerca daquilo que escrevemos.
Nem sempre sabemos a verdade sobre aquilo que escrevemos - o texto domina as palavras que o compõem. O texto pode conduzir à contradição, ou pior, ao erro.
O texto conduz ao desaparecimento (cheguei aqui apenas por associação fonética - o texto é som, falado ou lido, vocalizado ou mental; é som, apenas). O texto conduz ao desaparecimento da ideia original, a ideia que ele quer transmitir. O texto demonstra a impossibilidade de comunicar - o que queremos dizer está vedado aos outros; são apenas sombras, aquilo que os outros lêem.
O desaparecimento é um reconhecimento; qualquer conceito obscuro, escondido pelo texto, é reconhecível quando relemos o texto. Deste modo, o texto apenas ajuda quem o escreve. Os que não relêem o que escrevem: nunca foram verdadeiros, ou chegaram demasiado próximo da verdade.
Escrever é um risco - aproxima-nos do abismo essencial das coisas; daqui, não resulta nada de relevante - é também um risco pintar, ou fazer um filme, ou enfrentar cada dia sabendo que este será uma cópia do anterior - mergulhar no esquecimento.
A contradição é essencial - nunca somos os mesmos, a mudança é a nossa segunda pele, o fundamento da natureza (foi Camões quem o disse mais perfeitamente); se a mudança é inevitável, estamos condenados a ser o contrário do que já fomos. Mas vamos acabar por perceber que, no fundo, nunca mudamos - mas aqui falo do desconhecido, não das palavras que escrevemos.

O que é um texto hermético? Um texto que pretende explicar tudo. Nem sequer tentem.

[Sergio Lavos]

26/09/07

Arte

Queremos que a loucura tenha método? Deixemo-la andar por aí, com as garras de fora, caçando a imagem mais correcta (e menos evidente), os pormenores que escapam a quem não consegue escapar do colete-de-forças do decoro e da razão. A arte dispensa o método, alimenta-se do caos que governa o mundo (a física quântica tenta explicar isto através de números, esse belo alfabeto de Deus). A arte ordena o mundo, "corta o caos" (Deleuze). Ou cria uma singularidade que se destaca do caos, apesar de ser, ela própria, caos.
E depois, a parte da visão; o artista acede a esse plano desordenado e move-o para o plano da razão. A viagem é perigosa; o artista arrisca-se a ficar perdido nesse plano (tantos os casos, tantos). E mesmo quando regressa, os efeitos da viagem continuam a fazer-se sentir - o artista é um espectro do caos, espelho pálido da verdade que serve de corrente de transmissão de uma mínima centelha da energia essencial da criação.
Olhamos o artista: parece-nos louco. Contudo, sabemos (se tivermos coragem para isso) que a loucura é outra forma de recusarmos a viagem, a entrada no caos. A ordem aparente do mundo, perfeita coisa mental, para que se possa viver.
Entramos em museus, olhamos as imagens nos livros, para quê? Para, através dos olhos do artista, espreitarmos o caos que nos governa. Aquele que, para lá das portas do museu, tentamos a todo o custo não ver. Que nos governa.

(A pintura é de Paula Rego, e intitula-se "o celeiro")

[Sérgio Lavos]

25/09/07

Virtualidades

Confesso que já escrevi um ou outro post em que falei de textos em blogues sem me referir directamente aos seus autores. Em tom de desabafo, quase sempre; no momento. Haverá maior irresponsabilidade do que manter um blogue? Não sobrevalorizemos o feito. Não temos de ser responsáveis, mas a sensatez fica sempre bem num homem. Como assino com o meu nome verdadeiro, assumo perante mim a obrigação de ser sempre verdadeiro - ainda que nem sempre de maneira séria.
Com o tempo, é claro que me apercebi que nem a pressa nem a perfeição são aconselháveis. Mas, de entre as duas, deveremos ter mais cuidado com a primeira. Por isso, deixei de me incomodar com as pequenas irritações que de vez em quando surgem - e, saudavelmente, deixei de ler com regularidade blogues políticos. Essa gente com que deparamos na rua a impingir panfletos ou a dizer mal dos nossos políticos encontrou um asilo catita na blogosfera e nas caixas de comentários. Honra lhes seja feita, conseguem quase sempre acicatar os pretensos democratas que por aí proliferam - que, ao mínimo democrático insulto, se insurgem contra o lixo.
Mas, disperso-me. E caio no erro de falar de pessoas sem explicitar nomes; mas tenho desculpa, falo de um modo geral, e no geral ninguém me conhece. Imito o que leio por aí, sou irresponsável.
No fundo, desresponsabilizo aqueles de quem falo, impossibilitados como estão de responder directamente.
Confesso, portanto, que por vezes exigo ao que escrevo que seja menos livre do que deveria ser. A liberdade de pensamento nem sempre é compatível com o convívio entre pessoas. Mesmo que os nossos convidados sejam apenas mais um nó da rede, à distância, uma palavra escrita num ecrã. Até as nossas virtualidades exigem o respeito que devemos a nós próprios.

[Sérgio Lavos]

22/09/07

Awkward

Há uma palavra inglesa que define bem a sensação que é, por vezes, escrever num blogue: awkward. Embaraço, vergonha, estranheza. Quem mantém diários (e não sei se alguém ainda o fará) sabe que pode resguardar, durante algum tempo, as suas confissões, a intimidade. Quem escreve em blogues, mais ou menos intimistas, e se expõe ao julgamento dos outros, arrisca-se a sofrer na pele essa awkwardness. Tudo bem se são estranhos que lêem. Se o fazem, é porque gostam; se algum dia os conhecermos, muito bem, nada temos a recear (apesar de muitos bloggers lerem outros blogues por desfastio ou por interesse, mas não é isso que está em causa). Mas quando a palavra se espalha e o blogue começa a ser lido por pessoas com quem se tem um contacto directo anterior ao blogue, travão a fundo. Arriscamos a que leiam e não gostem, mas não confessem (conselho sábio: nunca perguntem a amigos se leram isto ou aquilo - ou não o fizeram ou não gostavam de o ter feito); ou que leiam e até gostem, mas se surpreendam com a honestidade simulada dos textos mais pessoais. Ou até, imagine-se, acreditem nesses textos, mesmo quando assumidamente eles não são mais do que construções literárias a partir de um fundo real. Do que falo? Da minha maneira de escrever um texto, por muito intimista que seja - começo a partir de uma ideia, escrevo uma, duas frases, apanho o tom, avanço desenfreadamente, tentando acompanhar o ritmo de cada frase, entusiasmo-me, escrevo, apago, e a partir de certa altura perco a mão - o texto arranca e já pouco tem de verdadeiro. Quando chego ao fim e publico (e isto tem muito de rapidinha, o oposto do tantrismo associado a um livro publicado), esqueço, viro-me para o lado e adormeço (peço desculpa, mas não resisti a continuar a piada sexual). E, no outro dia, quando encontramos as pessoas que leram o blogue, lembramo-nos. Eu sou aquele que usa uma máscara social no dia-a-dia real ou aquele que usa uma máscara literária no dia-a-dia do blogue? Esqueci-me de quem sou, é verdade - e entretanto o texto já se descontrolou, afasta-se a passos rápidos da ideia inicial. Awkward, é isso. Espero que ninguém se reconheça no que escrevo.

[Sérgio Lavos]

Estado Civil

Se há algum blogue que se aproxime da ideia de... weblog, com as suas características, naturalmente diferentes de um diário não publicado (ou não imediatamente publicado), é o Estado Civil, do Pedro Mexia. Foi o próprio que mais teorizou e auto-reflectiu sobre o que seria um blogue, de resto. Tornou-se a referência para quase todos os bons bloggers. O modelo a seguir. Se isto não é muito, não sei o que possa ser. É pelo menos o suficiente para lhe dar os parabéns pelos dois anos. Dois anos a recriar uma certa ideia de literatura, que se juntam aos três anteriores noutros blogues. É muito.

[Sérgio Lavos]

19/09/07

Sérgio Lavos

O que há num nome?
Caro Lourenço, desfaçam-se os equívocos: não sou, não hei-de ser, nunca serei jogador de futebol na reforma. Nunca joguei no União da Madeira; nem sequer no Varzim ou na Naval. De modo algum cultivei durante épocas a fio um cabelinho de fazer inveja a Futre; a extrema-direita não é lugar que me seja natural. Nunca abusei da rapidez para ultrapassar defesas-esquerdos toscos (com nomes como Abazai ou Vujacic ou coisa que o valha). O amarelo-canário faz-me comichões e não cresci a jogar no Praia da Vieira, num pelado entalado entre pinhais, a dois passos do mar. Não sou nem nunca fui dono de uma marisqueira na marginal. Nunca frequentei a Escola Secundária de Vieira de Leiria, e por isso não cheguei a conhecer um gajo que me diziam ter o mesmo nome do que eu, um cromo metido consigo próprio que, entre jogos de xadrez infindáveis e uma ou outra partida de basquete, perdia a conta às oportunidades desperdiçadas de trocar uma palavra que fosse com uma (qualquer) representante do sexo oposto - salvavam-se os copianços abnegadamente oferecidos à colega de carteira que, entre o desprezo e a pena, lá ia fingindo sorrisos e esgares maliciosos.
Mas que não seja por isso; serei esse tal jogador de futebol de que nunca ouvi falar e que não tem nenhum grau de parentesco, próximo ou afastado, comigo. A ficção bem que pode dispensar o uso da verdade.

[Sérgio Lavos]

Green gloves

Há uma imagem que me persegue. Porque ainda não consegui entender o verdadeiro sentido, apesar de pressentir que estou perto de apreender a ideia que subjaz às palavras. "Green Gloves", dos National, é uma imagem justa da ideia geral da canção. Belo hino à amizade, condição de possibilidade de existência através dos outros. O mais belo hino, porque fala dos amigos que se afastaram, por uma ou outra razão. O que é uma luva? Um pedaço de tecido que cobre uma mão, uma segunda pele - é esta a aproximação que faço ao sentido das palavras de Matt Berninger. Na impossibilidade de sermos outro, de vermos os vídeos que eles vêem, de entrarmos nas suas camas e amarmos em vez deles, cantamos a distância e o solipsismo a que estamos condenados. Não sabemos como eles são, como eles sentem, como eles nos sentem. A luva verde? Bizarria metafórica, que me persegue. O que são os amigos? Aquilo que nós gostávamos de ser, a luva separada da mão a que pertence?



Falling out of touch with all my
friends are somewhere getting wasted,
hope they’re staying glued together,
I have arms for them.

Take another sip of them,
it floats around and takes me over
like a little drop of ink in a glass of water

Get inside their clothes
with my green gloves
watch their videos, in their chairs.
Get inside their beds
with my green gloves
Get inside their heads, love their loves.

Cinderella through the room
I glide and swan cause I’m the best slow dancer
in the universe

Falling out of touch with all my
friends are somewhere getting wasted,
hope they’re staying glued together,
I have arms for them.

Get inside their clothes
with my green gloves
watch their videos, in their chairs.
Get inside their beds
with my green gloves
Get inside their heads, love their loves.

Now I hardly know them
and I’ll take my time
I’ll carry them over, and I’ll make them mine.

Get inside their clothes
with my green gloves
watch their videos, in their chairs.
Get inside their beds
with my green gloves
Get inside their heads, love their loves.

[Sérgio Lavos]

18/09/07

Ecos

Desde que saiu, o livro Portugal, Hoje: o Medo de Existir tem resistido a ser lido de uma forma crítica que contrarie a tese central de José Gil. Há muito texto escrito sobre o assunto, mas nenhum que refute de modo convincente as ideias e argumentos desenvolvidos no livro.
O último esforço é de uma ensaísta estimável, Silvina Rodrigues Lopes, na revista Intervalo, como Henrique Fialho dá conhecimento aqui.
Não li o texto da revista, mas pelo que é citado a ensaísta revela mais temeridade do que aqueles que a precederam. Não sei (ou sei, mas enfim), contudo, se um texto de revista consegue atingir a complexidade que se pode alcançar num ensaio de quase 200 páginas, como é o caso da obra de José Gil. Esqueçamos a redundância e estilo de escrita deleuziano de Gil, a circularidade do pensamento, regressando constantemente ao ponto de partida para acrescentar uma ideia mais ao que já foi escrito; o problema é a armadilha retórica que a tese que está subjacente à ideia de não-inscrição levanta - a verdade é que o livro vendeu o que vendeu (e mais, foi efectivamente lido) em consequência de uma leitura complementar à tese da não-inscrição: o problema da inveja. O português (e sim, generalizo) adora ver-se retratado de forma negativa. O livro de José Gil, produzindo um juízo redutor sobre a portugalidade, colheu leitores por todo o lado. A prova mais sólida das teses de José Gil é o facto de o livro ter vendido tanto. O medo de existir não é apenas um excelente slogan. É a prova de um facto, a confirmação de uma ideia de senso comum, de um sentir acerca de nós próprios. Complexificar este senso comum sempre foi a tarefa dos filósofos. A conversa de café transformada em língua escrita é, portanto, o maior mérito de José Gil. E acredito que a obra tenha não só servido de espelho para quem a lê, mas também ajudado a perceber, de uma forma mais profunda, o que podemos fazer para transcender a imagem que o espelho devolve.
Mas convençam-me de que as poucas reacções epidérmicas que se fizeram ouvir contra o livro são mais do que uma prova da tese secundária do ensaio: a inveja como fundamento da portugalidade. Basta ler um pouco do texto de Silvina Rodrigues Lopes para se perceber isso: a insistência na explicitação do destaque dado a José Gil pela revista Nouvel Observateur é um achado em termos de comprovação da tese do filósofo:
«1. a televisão é cada vez mais o lugar do sensacionalismo, e é como tal que recebe um livro que vem de um autor recentemente apresentado numa selecção de «25 grandes pensadores do mundo inteiro» (de e não dos) feita pelo Nouvel Observateur, apresentação que a notícia dada por um jornal português, o JL, converteu, primeiro (5/01/05) em «um dos “25 grandes pensadores do Mundo”» e em seguida (19/01/05) em «José Gil é considerado pelo Nouvel Observateur um dos “25 pensadores mais importantes do mundo inteiro”».

Inveja, disseram? É apenas uma ideia...

[Sérgio Lavos]

14/09/07

O circo

É difícil fugir à perplexidade gerada pelo circo mediático que respondeu ao apelo do casal McCann. Os jornais e as televisões supõem. O povo supõe com eles, não há nada como a sua sabedoria nestas alturas. As conjecturas, se não fosse a estética televonelesca criada pela avassaladora tabloidização, poderiam dar um bom enredo policial, daqueles que motivam o espectador a resolver o caso. Enfim, não nos movemos em território de Agatha Christie, e será pouco sensível tentar jogar com um assunto tão sério. Ou não? Vasco Pulido Valente, que depois de alguns meses de pousio acerta em cheio novamente, inclina-se para a hipótese do "quem com ferro mata, com ferro morre". A verdade é mesmo esta: quem, reagindo ao desaparecimento de uma filha, telefona para a Sky News antes de chamar a polícia, revela uma de duas coisas, e a primeira é o horror absoluto, por isso prefiro pensar na segunda hipótese, aquela que VPV defende. O povo prefere achar a culpa antes de qualquer julgamento. Os McCann, conhecendo o risco, dispuseram-se ao jogo mediático.
Serão culpados? Já o são, no mínimo de insensatez e falta de sensibilidade. O que é intrigante, neste caso, é precisamente esta insensatez. Seria de pensar que um casal inglês, educado, com cultura e dinheiro, quisesse, acima de tudo, preservar do olhar de estranhos a dor pelo desaparecimento de uma filha. Por que razão decidiram abrir as portas da intimidade ao mundo? Para esconder algo ainda mais vergonhoso que a perda de um filho? A culpa, desse por onde desse, iria sempre persegui-los. Mas não precisavam do circo, a não ser que este servisse como cortina de fumo para algo ainda mais monstruoso.
E pronto, o meu julgamento está feito. É impossível fugir à virtualidade reinante.

[Sérgio Lavos]

O espaço do viajante

Ladri di biciclette

Deleuze identifica a Segunda Guerra Mundial como ponto de viragem cinematográfico pontuado por um novo elemento espacial: as cidades ficam irreconhecíveis no pós-guerra. São um espaço destruído e a reconstruir, um espaço qualquer e espaço de ninguém. A devastação dos espaços familiares provoca o seu não reconhecimento; é um espaço indiferente e indeterminado. Esta atopia cinematográfica significa o fim da imagem-acção: não há nem reacção, nem reconhecimento, motivos pelos quais o espaço qualquer é um elemento essencial à passagem cinematográfica para a imagem-tempo do cinema moderno.

"A imagem já não tem como características [primeiras] o espaço e o movimento, mas a topologia e o tempo" (Deleuze). O espaço qualquer deixa de ser histórico e passa a ser ontológico – ele é o lugar da génese, da dramatização alicerçada, por exemplo, na bicicleta indispensável para percorrer a cidade, trabalhar e sustentar a família em Ladri di biciclette. O instante da configuração topológica e temporal desta situação é o momento de criação do singular. As extensões vazias ou as cidades destruídas nos filmes de Vittorio de Sica, Michelangelo Antonioni ou de Roberto Rossellini, a virtualidade do espaço vago e anónimo reforçam a osmose entre o lugar e a vivência da personagem. Nas velocidades modernas, o sujeito já não ocupa o seu lugar mas desloca-se, não tem território. "O espaço do viajante seria, assim, o arquétipo do não-lugar" (Augé).

[Susana]

12/09/07

Christopher Hitchens is great


No fim, só há duas respostas possíveis: ou Christopher Hitchens está certo ou está errado. Não estará por cá para saborear a vitória ou amargar a derrota - outra certeza. Todos os argumentos que possa usar contra a existência de Deus são improváveis. Por serem impossíveis de provar empiricamente, e também por usarem um tipo de argumentação que se baseia menos na razão do que no estilo. É claro que aquele sotaque upper-class embebido em álcool faz muito pela força dos argumentos; e, no processo, pelas vendas do seu livro ("God is Not Great"). Se quisermos pôr as coisas de uma maneira clara: num tempo em que a religião vai desaparecendo num estertor violento (fundamentalismo e terrorismos mais do que incluídos) um ateu marxista que defende a invasão do Iraque e do Afeganistão por razões anti-islâmicas apenas podia ser uma estrela emergente. Critica todas as religiões, eu sei. Mas fundamenta os seus argumentos nos malefícios da religião, direccionando os seus ataques a instituições seculares, constituídas por homens, misturando fé e organizações religiosas num cocktail, mais do que explosivo, absolutamente sexy. Atrai mulheres porque critica a misoginia das religiões; interessa a ateus porque tenta, atabalhoadamente, provar a não-existência de Deus (parece-me que a mais difícil das tarefas, mas quem sou eu?); e seduz o grande grupo neo-conservador e seus simpatizantes com a sua demanda anti-islâmica. Não é nada surpreendente, portanto, que um ateu que se afirma de esquerda consiga adquirir uma legião de admiradores na direita blogosférica, assim como no meio intelectual neo-conservador norte-americano (esses agarram-se a qualquer um que se aproxime do seu idealismo distorcido e anti-islâmico).
Esta bela campanha mediática tem conseguido vender uns quantos milhares de livros, é verdade. Mas se muitos daqueles que admiram a sua cruzada anti-religiosa lessem os seus textos pró-Bush, talvez a sua estrela empalidecesse um pouco.
E claro, temos sempre de ter em linha de conta o factor Abel/Caim. A luta fratricida de Christopher com o seu irmão crente e conservador, que ainda por cima se opôs à invasão do Iraque, Peter, é matéria que inflama qualquer alma. Quem não se pela por uma boa questiúncula familiar? Se é bom para o espectador de novelas, por que não será para o intelectual com dúvidas metafísicas? E dão-se bem, os irmãos? Vão fazendo o que podem pela vida.

P.S: A discussão sobre as origens da moral é básica. Um parágrafo de Peter Singer sobre o assunto vale mais do que os 7.43 minutos da conversa entre Christopher e Peter. Mas se falamos do nível conversa de café, não está nada mal.

[Sérgio Lavos]

09/09/07

Juventude em marcha

Muitos anos depois, em frente a um pelotão de fuzilamento, recordaria o dia em que viu pela primeira vez "Arizona Dream".
Ou "Underground".
Ambos de Emir Kusturica, o realizador que de facto podia ter mudado a minha vida se ela já não tivesse sido mudada por contigências, digamos, realisticamente inadiáveis alguns anos antes.
Não me interesso pela biografia - o puzzle compõe-se também de filmes, e este lembra-me o tempo em que achava (sem riso contido) que o cinema europeu era superior ao americano.
Talvez já não existam filmes assim no cinema europeu - apesar de Michael Haneke, um ou outro de François Ozon e pouco mais. Para além dos velhinhos - Chabrol, Rohmer (gostava mais de Almodovar quando não se levava a sério).
Ou talvez eu já não exista como há quinze anos, disposto a aceitar o espanto. Intelectualizo o que vejo - sem dúvida. Há poucos filmes que me remexam as entranhas sem passar primeiro pelo crivo da razão. Terei perdido ou ganho?
A ligação afectiva ao meu Olimpo de realizadores contemporâneos - David Lynch, Quentin Tarantino, Gus van Sant, Michael Haneke, David Cronenberg - foi-se construindo nos últimos anos à conta de circunstâncias pessoais decisivas. Não me interessa saber se a influência é mútua - apenas gosto de reconhecer que, se os filmes não mudaram minha vida, pelo menos a minha vida mudou a minha visão dos filmes. E gosto de saber que há um rio que corre desde o passado que transporta águas em que ambos mergulhámos, ainda que não nos reconhecêssemos no meio da multidão.
Hal Hartley, sim, o realizador para os que se julgam perdidos de si próprios, caminho perfeito para a sedução. E Emir Kusturica, perdido em devaneios americanos, com Vicent Gallo em pose pós-cinema anterior ao delírio narcisista da obra que se seguiu. O tempo antes de acordar, a alguns fotogramas de distância.

[Sérgio Lavos]

02/09/07

Caminhar

Em Sebald, outra coisa me interessa: caminha-se muito. As figuras andam de um lado para o outro, percorrendo ruas de cidades antigas ou agrestes caminhos de campo, vão a encontros a pé ou então de comboio, que é também outra forma de percorrer a paisagem de olhos abertos. A primeira forma de transumância, andar - as antigas migrações dos povos primitivos, ao sabor das estações e da abundância de alimentos, eram totalmente utilitárias. Mas a verdade é que a sedentarização permitiu que o Homem pudesse atribuir um valor diferente ao acto de caminhar. Os exegetas e cenobitas são muitas vezes também grandes caminhantes - a espiritualidade reencontrada no esforço de andar. Nas cidades, uma forma de ir ao encontro desta espiritualidade perdida é caminhar - olhando os edifícios, as pessoas perdidas de si próprias, a caminho de um qualquer compromisso quotidiano, observar as pequenas histórias. Meditar: a palavra que mais sentido faz em movimento. A viagem é tanto exterior como interior. E o encontro que existe entre os edifícios cobertos de história e a história pessoal de quem caminha é o que permite os momentos de revelação das figuras de Sebald, o acto de platonicamente recordar qualquer coisa antiga esquecida. Mas em Sebald este reinvestimento da verdade não produz um acto de iluminação, místico ou transcendental. Antes retira o véu que cobre a essência fatalista da existência: tudo tende para o fim, para as ruínas. E as figuras que por lá caminham acabam por regressar aos lugares que as assombram. Não há reconstrução possível.

[Sérgio Lavos]

Ruínas

Nenhum modo de olhar os espaços vazios é correcto. Formas diferentes de interpretar a ausência; as ruínas são memória de uma construção ou elementos a mais na paisagem? Deverão desaparecer, e ser substituídas por novas construções? A memória é um valor a preservar?
Enquanto o grande romance americano vive da exaltação do presente e da perpétua motivação para um tempo mítico que virá - mesmo os mais pessimistas, Roth e deLillo à cabeça, Faulkner meditando sobre a decadência, são grandiloquamente exaltantes - o romance europeu é sempre literatura em desagregação, que sobrevive, persiste sobre as ruínas de um império antigo. Se muitas vezes o império é a própria língua - e a língua inglesa, neste caso, mantém a sua vitalidade graças ao sopro que vem do outro lado do Atlântico - quase sempre ele é uma coisa bem real. O fim da colonização e o ressentimento culpado são temas muito portugueses. Já em outros lados a reflexão vai mais longe, a Roma e à Grécia conquistada. Em W. G. Sebald, por exemplo, a memória culpada do Holocausto convive com uma outra culpa de séculos, que de modo algum é cristã - Nietzsche exageraria? As ruínas que povoam (contraditório, eu sei, mas é mesmo assim) os espaços, na obra de Sebald, são nós temporais onde se cruzam histórias de exílio e de derrota, mas também da mais vergonhosa conquista. A atenção aos pormenores dos edifícios, as descrições demoradas da paisagem, o convívio entre o Homem e a Natureza, tudo isto contribui para que os diversos tempos de presença humana na velha Europa se autonomizem e se confundam. No olhar do emigrante judeu nos E.U.A. repousa a memória de uma culpa. O perseguido carrega o peso do seu destino, com toda a carga de descupabilização do carrasco que isto implica. As fotografias que o emigrante vê são também lugares de ruína. Levamos a destruição atrás - em Sebald, nem os novos são novos, porque fogem e porque são culpados. Kafka escreveu também e sempre sobre isto. A paisagem é o espelho de quem a habita. Na América tudo é novo, e desmesurado. Na Europa, somos personagens de um texto de Sebald - sombras carregando a culpa e as ruínas de um tempo que passou.

(JQ, tens de me explicar as tuas razões contra Sebald. Escreve, que eu não tenho o teu mail.)

[Sérgio Lavos]