14/02/23

Ajudar a morrer

Nesse vento eu respiro.
Na frente da casa eu convido quem queira entrar
nesses corredores onde despeço
o tempo e acomodo os tentáculos do esquecimento.
Em breve, da tua vida restará apenas um diário
deixado sobre a arca de mogno escuro
que num Verão antigo transportaram para o sótão.
Nesse diário vivem rostos, e árvores, e amor,
mas as letras que desenham tais inutilidades
começam a sumir – na sombra do sótão, não existem já.
 
Quando o diário começou a ser escrito, habitavam
no teu coração as criaturas do espírito que te levava
pela mão, do caminho da escola à ladeira que circundava
o muro mais longínquo da casa. Louro bravo
dançava com as sombras da figueira carregada
de Setembro – o figo, escrito no papel,
tocava os lábios como um verso doce
que te adormecia à noite. Na coroa aberta
do figo dançavam a língua e as palavras que a cobriam.
Tempo de certeza. O voo misterioso da andorinha
tinha o seu regresso marcado – todos os anos
o ninho estava à espera. O ritmo das estações,
exato e pleno, adormecia-te quando o temor rondava.
 
Contra o vento eu agora respiro. Mas não resisto.
E ajudo a morte, ajudo, fecho as janelas de casa
sabendo que nunca mais as vou abrir.

Agora o conjunto de folhas é uma ruína fria na luz apagada da manhã.

04/02/23

Memory is a slippery thing

"Memory is a slippery thing; details are hazy, fickle. The more you strain, the less you see. A memory of a memory endlessly corrupting itself. I’ve caught myself recently claiming that feeling is more robust, but it’s tricky. Because in recalling a point in time and how that moment made you feel, it is framed by a new feeling—the feeling of what that moment means to you now. In Turkish, a language rich in vocabulary not easily rendered into English, hasret means some combination of longing, love, and loss. It seems particularly appropriate in this context and to this film." - Charlotte Wells, realizadora de Aftersun. Encontrado aqui.

03/02/23

Aftersun

Aftersun é um ensaio sobre a impressão que as pequenas percepções deixam na memória, e sobre o modo como no presente processamos o vestígio deixado por essas pequenas percepções. É mais instinto do que razão, mais intuição do que sentido. Reduzir o filme aos constrangimentos da infância é um erro: o filme mostra o olhar de uma mulher adulta declinando sobre as suas recordações o véu do entendimento da idade adulta. O olhar de alguém que tenta perceber por que razão lembra como lembra o que lembra. Mas pensar sobre o que lembra altera o que é lembrado - não é que o presente modifique o passado, é mais como se o presente moldasse o passado ao seu corpo, tornasse material o que nunca será mais do que espiritual. É um filme sobre a ilusão de conhecer e sobre a habilidade de construir uma história. O pai da criança é tanto uma sombra como a criança, e a mulher adulta que recorda a criança que passou é tão esboço como o pai e a criança. Na tela são projetadas sombras que revelam gestos, ruídos e pistas que apontam para um destino; mas no presente continuamos a não saber que destino foi esse. Tentar compreender uma memória é um gesto que tem tanto de vão como de fulgor criativo. Por isso funciona, e o filme atrai quem o vê para uma vertigem de sonho, um corpo leve fugindo na noite a caminho do mar.