30/01/23

A sombra de Jeanne Dielman entrando pelo quarto

Vi um filme há semanas e ele anda comigo. As imagens acompanham-me, impressão na retina, negativo de uma fotografia, e são uma mulher. Ela passeia-se de sala para sala, na sua metódica rotina, descasca batatas, prepara o jantar do filho, desaparece para lá do olho da câmara de Chantal Akerman, a mulher que a decidiu filmar para eu a ver neste momento, aqui escrevendo nela, tentando repetir em palavras a desperta sombra das imagens. Jeanne Dielman vive numa rua de Bruxelas e comigo quando a deixo entrar no peso do mundo. Ela, que se libertou a tempo da corda, vive presa nos textos que escrevem sobre as imagens criadas pela cineasta que em tempos decidiu contar a sua história. É justo que Jeanne, mergulhada na penumbra cortada por néons, não perceba a inquietação que toma conta do que escrevo. Passou de um limiar terrível, despediu-se do mundo que a alimentou e vive para lá da luz no écran que a sua vida projeta. Deixemo-la então, ali, cabeça pousada no tempo, antes que o filho chegue da escola. Para sempre não a entenderemos, mas ela sabe que é, e respira.