18/12/23
2023 a desaparecer
08/12/23
Incertezas
Tomamos por verdade o que nos dizem nos écrans, não sabendo de quem é essa verdade, se dos ventríloquos, se dos bonecos que aqueles manipulam. A verdade deixou ser autoritária, e uma autoridade, e passou a ser uma gota de água num oceano de incertezas e mentiras. Se Deus não morreu com Nietzsche, certamente está morrendo agora.
22/11/23
Roseta
Horto das coisas guardadas: encontrei uma chave para a compreensão de todas as línguas mortas.
11/10/23
Normalidade
Antes, os artistas malditos matavam-se de amor, ou de fome, ou de melancolia. Hoje em dia, passeiam-se nas grandes avenidas da sociedade e são tratados a pãezinhos de doença mental. Belos eram os tempos dos loucos, dos excêntricos e dos destravados, dos que renunciavam à cómoda doença da normalidade.
10/10/23
Reflexo
Está na tua frente a verdade, e não a reconheces. Em vez disso, olhas para o espelho onde te vês refletido, ali ao lado da verdade. Enquanto o teu reflexo te enganar, tudo está bem.
06/10/23
Pular
O homem que dava pulos ficou sem pernas e agora anda por aí, de muleta na mão, pedindo esmola.
04/10/23
Coisas
Uma coisa. Atrás de outra coisa. E outra coisa mesmo. Somatório de tijolos construindo uma casa que recusa a habitação.
14/02/23
Ajudar a morrer
Na frente da casa eu convido quem queira entrar
nesses corredores onde despeço
o tempo e acomodo os tentáculos do esquecimento.
Em breve, da tua vida restará apenas um diário
deixado sobre a arca de mogno escuro
que num Verão antigo transportaram para o sótão.
Nesse diário vivem rostos, e árvores, e amor,
mas as letras que desenham tais inutilidades
começam a sumir – na sombra do sótão, não existem já.
no teu coração as criaturas do espírito que te levava
pela mão, do caminho da escola à ladeira que circundava
o muro mais longínquo da casa. Louro bravo
dançava com as sombras da figueira carregada
de Setembro – o figo, escrito no papel,
tocava os lábios como um verso doce
que te adormecia à noite. Na coroa aberta
do figo dançavam a língua e as palavras que a cobriam.
Tempo de certeza. O voo misterioso da andorinha
tinha o seu regresso marcado – todos os anos
o ninho estava à espera. O ritmo das estações,
exato e pleno, adormecia-te quando o temor rondava.
E ajudo a morte, ajudo, fecho as janelas de casa
sabendo que nunca mais as vou abrir.
Agora o conjunto de folhas é uma ruína fria na luz apagada da manhã.
04/02/23
Memory is a slippery thing
03/02/23
Aftersun
Aftersun é um ensaio sobre a impressão que as pequenas percepções deixam na memória, e sobre o modo como no presente processamos o vestígio deixado por essas pequenas percepções. É mais instinto do que razão, mais intuição do que sentido. Reduzir o filme aos constrangimentos da infância é um erro: o filme mostra o olhar de uma mulher adulta declinando sobre as suas recordações o véu do entendimento da idade adulta. O olhar de alguém que tenta perceber por que razão lembra como lembra o que lembra. Mas pensar sobre o que lembra altera o que é lembrado - não é que o presente modifique o passado, é mais como se o presente moldasse o passado ao seu corpo, tornasse material o que nunca será mais do que espiritual. É um filme sobre a ilusão de conhecer e sobre a habilidade de construir uma história. O pai da criança é tanto uma sombra como a criança, e a mulher adulta que recorda a criança que passou é tão esboço como o pai e a criança. Na tela são projetadas sombras que revelam gestos, ruídos e pistas que apontam para um destino; mas no presente continuamos a não saber que destino foi esse. Tentar compreender uma memória é um gesto que tem tanto de vão como de fulgor criativo. Por isso funciona, e o filme atrai quem o vê para uma vertigem de sonho, um corpo leve fugindo na noite a caminho do mar.
30/01/23
A sombra de Jeanne Dielman entrando pelo quarto
Vi um filme há semanas e ele anda comigo. As imagens acompanham-me, impressão na retina, negativo de uma fotografia, e são uma mulher. Ela passeia-se de sala para sala, na sua metódica rotina, descasca batatas, prepara o jantar do filho, desaparece para lá do olho da câmara de Chantal Akerman, a mulher que a decidiu filmar para eu a ver neste momento, aqui escrevendo nela, tentando repetir em palavras a desperta sombra das imagens. Jeanne Dielman vive numa rua de Bruxelas e comigo quando a deixo entrar no peso do mundo. Ela, que se libertou a tempo da corda, vive presa nos textos que escrevem sobre as imagens criadas pela cineasta que em tempos decidiu contar a sua história. É justo que Jeanne, mergulhada na penumbra cortada por néons, não perceba a inquietação que toma conta do que escrevo. Passou de um limiar terrível, despediu-se do mundo que a alimentou e vive para lá da luz no écran que a sua vida projeta. Deixemo-la então, ali, cabeça pousada no tempo, antes que o filho chegue da escola. Para sempre não a entenderemos, mas ela sabe que é, e respira.