Uma rapariga morta numa vala. Um corpo numa vala, coberto por uma manta, tinta no rosto gelado. Um trabalhador magrebino encontra a rapariga, a polícia é chamada, de quem é aquele corpo? Depois a voz de uma narradora fala-nos do que vai acontecer. Quem é a rapariga, a quem pertence o corpo morto, encontrado numa vala? A voz diz-nos que vai contar os últimos tempos de vida da anónima que morreu, e que por vezes pensa no que seria aquela rapariga quando era criança, o que fazia, quem a amava.
A voz é de Agnès Varda, realizadora de Sem Eira Nem Beira, e Agnès narradora entretanto diz quem era aquela rapariga. Um nome não é uma vida, não é uma identidade, é apenas o princípio de uma história: Mona, é o nome dela, diminutivo de Simone (uma coincidência, ou Simone de Beauvoir ao longe?), como a rapariga nos explica mais adiante, e já temos ali uma vida, e não uma rapariga morta, uma anónima numa vala. Não é ainda vida inteira, que essa irá ser contada por Agnès a seguir, com a sua câmara e as suas palavras, ditas pela voz de quem conheceu Mona ao longo dos últimos meses de vida. Uma vida desajustada, ao lado, a partir de uma escolha: abdicar do conforto de uma vida mais ou menos banal - iremos descobrir que Mona era secretária - para se lançar na liberdade. Ser livre, abraçar a estrada, acampar onde calha, na terra, dormir em ruínas, encontrar outros como ela, marginais por escolha ou porque foram empurrados para isso, viver. Escolher ser livre, como Sartre disse, é sempre a decisão mais difícil, mas a única que nos torna humanos. Um pastor que Mona encontra (mestre de filosofia que "regressou à terra") parece ser a voz de Sartre: liberdade com responsabilidade, não a liberdade absoluta de Mona, que leva ao desencontro, e à solidão absoluta.
Varda decide contar a história de Mona e dos seus marginais, figuras que, como é revelado nos filmes autobiográficos da cineasta, ela ama, porque se reconhece neles. Do mesmo modo que em Os Respigadores e a Respigadora ela conta a história da sua família espiritual e se filma enquanto respigadora de histórias, imagens e sensações, suspeita-se de um crime neste filme de marginais: o crime de esconder o quanto de Agnès há naquelas belas criaturas livres. Os que contam a histórias deles não os compreendem. Eles, ao contarem as suas histórias, estão tão perdidos como os outros. Eles falam com o espectador, para a câmara - actores profissionais mas também pessoas da região onde foram feitas as filmagens - contam a história tangente de Mona, e quanto mais vamos conhecendo aqueles momentos breves de passagem, de existências que se cruzam, menos a compreendemos com a razão. Mas mais a entendemos com o coração.
Amar um filme tem tudo ao início de instinto, de vísceras, o nosso corpo reage como um autómato vivo desprovido de entendimento. Depois tentamos compreender, e perdemos esse instinto, somos corpo pensado, ensaiado e feito de palavras. Sentir um filme é amá-lo, falar dele é traí-lo. Mas é fraqueza por vezes perdoável.
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