25/11/13

Nexo

Há, só pode haver, um encadeamento de acontecimentos, de notícias, que é inspirado por um qualquer sopro divino e misterioso. Mas sem qualquer metafísica: as coisas acontecem em sucessão porque a natureza se dispôs a isso. Teria de ser, ou um qualquer equilíbrio cósmico seria perturbado sem remissão. Claro que, olhando para trás, reconstruímos percursos, unindo pontos e estabelecendo simetrias que qualquer outro escolhido ao acaso acharia nada terem em comum. O nexo de causalidade é na realidade um nexo de casualidade, ou um desconexo de causalidade. Encontramos uma causa para cada efeito observado, um sentido para o caos que nos compõe a vida. O meticuloso, o obsessivo, o compulsivo, procura recentrar os passos e repetir gestos, mas a cada repetição fica mais distante do acontecimento original. Há uma ligeira diferença, um afastamento das coisas que nos são familiares de cada vez que as celebramos. Os rituais evocam uma realidade a que não poderemos voltar, e por isso a cada encenação do ritual este vai perdendo força, porque um ritual não passa de uma recordação de si próprio. Há uma equivalência superficial entre o divino que julgamos governar o mundo e a razão que atribui ao acaso uma qualidade ordenada. Não há na verdade séries de acontecimentos, mas um contínuo interminável, que não conseguimos estancar, um corte que não pára de jorrar. Por isso esperamos esse sopro divino que organize o caos, cicatrize a ferida. A passagem de um estado a outro, que nunca chega a acontecer.

21/11/13

Colheita

Após tantos dias de pousio, isto aqui continua seco, infértil, sem erva que desponte, ruim ou sã, maldita ou vicejante. Todas as aproximações ao ponto certo, as circunferências, os voos picados, ou a planar, perto e lento, ou rápido e nervoso, têm falhado. É uma questão de método. O campo vazio, pronto a receber as sementes que lhe queiram atirar, mas ninguém com a força, a coragem, para o preparar para o seu próximo ciclo. O sol espera, a chuva também, o vento que irá varrer o resto das colheitas do verão passado passeia-se em volta, aguarda e sopra como se o papel destinado não pudesse ir parar a outras mãos, mais sábias ou mais certas do que podem fazer. As nervuras da terra desenham objectos que apenas se vêem do céu, como as gravuras imemoriais que em tempos alguém achou serem marcas de astronautas do outro lado do rio. Mas de cima a baixo, tudo é plano, tudo é térreo, a profundidade não passa de uma ilusão a que os cegos se dedicam empenhadamente, com medo de morrer. Planaltos, colinas, montes, os picos da mais alta cordilheira, alisados por uma régua que dobra o espaço, e mais atrás os olhos curiosos de uma criança e a sua mão febril, voraz, apagando e riscando e desenhando por cima outro universo. Tantos dias de pousio, e nada parece nascer. E, no entanto, move-se. Mas não vemos, nem sentimos. Não sabemos.

01/11/13

Janus

O meu primeiro morto foi o meu avô. Muitos anos depois, mais velho, uma rapariga dizia-me, em tom irónico (como pôde?), que nos tornamos adultos quando a primeira morte nos apanha, e a partir daí nada será igual. Muitos anos depois, percebi que esta ideia, sendo um lugar-comum a evitar, é mais uma daquelas coisas que pertencem ao património humano, algo que herdamos e que se transmite culturalmente, ou talvez esteja inscrito nos genes - a sensação de perda.
Rapidamente passamos dessa fase de ilusão para a adolescência. Quem não passa por esse primeiro momento acaba por lá chegar. Dizem os cientistas que a consciência de um "eu" começa a desenvolver-se - ou a evidenciar-se - desde cedo, nos primeiros meses de vida. Mas desconfio de que esse "eu" apenas se torna pleno, verdadeiramente humano, quando aprendemos que um dia vai desaparecer, e com ele o mundo. A idade da razão é sobretudo a idade do medo. Vivemos todos os dias no mundo a caminho de um fim. E saber que ele poderá continuar, matéria persistente depois da partida, não atenua o medo nem diminui o sentimento de urgência. 
A psicanálise encontrou uma fórmula para descrever esta aceitação do que perdemos, do que vamos perder: a negação. No fundo do espírito, espreita a verdade, a que viramos a cara. Essa verdade é como Janus, o deus latino com dois rostos, um virado para o futuro, outro para o passado. Nós vivemos de rosto voltado para o passado - a memória - existindo no presente, e forçamo-nos a esquecer a máscara que olha para o futuro. Recusamos a verdade que Janus nos oferece, o futuro que está atrás, do outro lado. Somos cegos por vontade própria, um esforço que nos permite a sobrevivência - a psicanálise também diz que quando esta barreira se rompe, e desaparece a negação, caímos num abismo mais profundo do que a própria morte. Prefiro a palavra melancolia para descrever este estado, em detrimento da mais comum depressão. 
Durante alguns dias depois do funeral, fomos obrigados ao silêncio em casa. Não podíamos ligar a televisão, mostrar alegria, e as brincadeiras, apesar de autorizadas, tinham de ser discretas. Os rituais que envolvem o desaparecimento oscilam entre a verdadeira tristeza - a perda é real - e a encenação. Simulamos a tristeza para que o morto deixe em nós uma marca mais profunda. Quando a tristeza é demasiado real, e se entranha, torna-se patológica, e não conseguimos regressar ao mundo. O luto tem de ser feito, temos de tornar simbólico o que é real, para que a verdadeira realidade - a nossa vida, sozinhos, isolados de quem nos rodeia - nos volte a abraçar e voltemos a poder emergir no seu tecido. 
A questão a que todos voltamos: será melhor saber ou não saber? "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos/Eu era feliz e ninguém estava morto". Fernando Pessoa tem uma resposta.