22/02/13

O progresso do amor

Quando fiz o balanço literário de 2012, referi um livro que não existe - ou, pelo menos, não conheço qualquer livro com este título: O Regresso do Amor. Talvez por isso possa dizer que o livro que não existe foi um equívoco. Porque entretanto avancei para lá do primeiro conto de outro livro com um título semelhante, O Progresso do Amor, de Alice Munro. Não é um acaso o facto de terem o mesmo nome as autoras dos dois livros - o engano no título do livro obrigou-me a dar a uma segunda oportunidade a Munro.
Falemos do segundo, escrito pela escritora canadiana*, traduzido por José Miguel Silva - tenho uma ou outra reclamação a apresentar, mas de pouca monta - e editado pela Relógio d'Água.
Entretanto insisti. Como quase sempre, o meu primeiro juízo foi, digamos, ligeiramente precipitado. Munro é uma contadora de histórias que vale muito, mas mesmo muito, a pena. Os seus contos são trabalhados até um ponto em que aparentam prescindir da sua máscara literária e transformar-se em vida. A classe média - rural na maior parte dos casos - canadiana, como imaginamos que ela deverá ser em qualquer pequena vila do mundo ocidental. Os momentos de pathos são breves, discretos, mas transformam as personagens - mulheres, quase sempre mulheres - de uma forma duradoura, dolorosa. Revelações que alteram o destino das personagens ou o modo como estas olham para o seu mundo. Chegamos ao fim de alguns contos e temos vontade de os reler apenas para entender em que momento a história contada nos cativou, desenrolar o novelo entretecido por Munro, a sua estratégia de conquista da narrativa e do amor do leitor, daquele tipo que nos faz pensar, muitas semanas depois, na expressão de surpresa de uma personagem ao descobrir o que tinha de fazer para reclamar o seu futuro. Tudo em palavras, língua; e depois imagem sem palavras.

*Na página da Wikipedia é-nos dito que a autora é uma perene contendora ao prémio Nobel e considerada um Tcheckov norte-americano. Gosto de hiperbóles porque elas nos permitem reduzir o objecto hiperbolizado à sua verdadeira dimensão, ao obrigar-nos a encontrar nele as razões de tal excesso. Em Munro encontro muito de Tcheckov, é verdade; o que é um enorme elogio, dado que poderei dizer, nesta fase da minha vida, que o escritor russo** é, provavelmente, o maior contista lido, morto ou vivo. Apesar de Salinger.

**Note-se a substituição do nome do autor por uma paráfrase. No outro dia lia uma entrevista a Richard Zenith, na qual ele mencionava a liberdade de Fernando Pessoas na escrita. Dizia ele que Pessoa, ao contrário do que acontece com o comum escritor português, não evitava as repetições de palavras em cada frase. Uma liberdade que tinha raiz na sua educação anglo-saxónica. Eu, por ter lido mais do que uma vez que deveria evitar-se as repetições de palavras até a um limite razoável, excepto quando a repetição é estilística, cedo a essa mania portuguesa. Estará Zenith certo? Tenho dúvidas, mas chegarei certamente a uma conclusão quando menos esperar. 

09/02/13

Um sonho

Mais do que a linha marginal
para onde apontas, lado a lado as balas e a pena
com que delimitas o território para
onde podes fugir, a meio da noite apenas
te poderá servir a treva e a sua fulguração
mais brilhante do que o abismo,
recordas outras noites,
quando ainda podias ver na distância
o contorno nítido de um rosto que te poderia salvar,
mais do que a rocha esboroada por onde
escoa o verso a sua vida,
e firmas o pé sabendo que sobre o vazio
poderás sentir a verdade, o espinho
infectando a carne até ao osso,
o equilíbrio vacilando sobre o mar, ao rés
da água, mãos nas arestas,
esse é o mapa onde poderás desenhar o
possível destino a que entregas a decisão,
a vontade, e o sentido.

Nenhuma forma se divisa na neblina.

04/02/13

Django Libertado

A questão, em Django Libertado, não é a escravatura. Nem a raça, a negritude da América. Nesse aspecto, Spike Lee, uma vez mais, atira completamente ao lado (como aliás já tinha sucedido com Clint Eastwood quando estreou Flags of Our Fathers/Letters From Iwo Jima). Ninguém de bom senso esperaria que Tarantino fizesse um filme empenhado politicamente, um ostensivo manifesto - como é grande parte da obra de Spike Lee, de resto. Se Tarantino tivesse decidido fazer isso, das duas uma: ou falharia redondamente ou deixaria de ser Tarantino. 
Claro, há aquele pequeno pormenor: Tarantino é branco - tem ascendência índia e italiana, mas é branco. O seu olhar, se está vertido em alguma personagem, não é em Django, mas sim em King Schultz. O ariano versado em várias línguas, culto, refinado e um glorioso sacana à procura de poster boys (pun intended) no faroeste americano. A política está no gesto de libertação ensaiado por Schultz. É ele quem oferece a liberdade a Django, é ele que o estimula a embarcar na matança para libertar a sua mulher, é ele o herói que mata Calvin Candy, num gesto de aparente raiva, no fundo um atentado verdadeiramente político que elimina quem encarna o espírito do racista esclavagista, do opressor. 
Portanto, regressamos à crítica de Spike Lee: fazer um filme sobre a escravatura em tom de western-spaghetti? O horror, o sacrilégio? Não, porque há mais política do que as imagens aparentam, e não onde se esperaria que ela assomasse. Django é libertado, torna-se fora-da-lei, mas ficaremos sempre na dúvida se chega a sentir a raiva - profundamente política - que o Dr. Schultz não consegue conter. À superfície, o mesmo brilhantismo de sempre: a canibalização de géneros, a auto-citação, a estilização da violência, os diálogos intocáveis - se bem que, neste caso, menos trabalhados. Na profundidade, um ensaio iconoclasta e politicamente incorrecto sobre as lutas dos afro-americanos. E uma extraordinária qualidade, a desconstrução de dois mitos do cinema americano: O Nascimento de Uma Nação em versão Mel Brooks numa sequência genial que esvazia por momentos a gravidade da história que está a ser contada. E a evocação de E Tudo o Vento Levou: em vez de Rhet e Scarlett, Django e a sua Broomhilda. Genial Tarantino, talvez o seu melhor filme.

02/02/13

Cães pretos

Há razões para ter voltado a ler Cães Pretos, de McEwan, mas talvez elas agora não interessem. Certo é que a releitura foi rápida e, como sempre com McEwan, um prazer. Há nele aquele domínio dos mecanismos da ficção que leva-nos a percorrer as vidas das personagens sentindo-as tão próximas como o familiar que gostaríamos de conhecer intimamente. Não é que não se evidenciem as técnicas e os truques, as marcas de estilo - o tema da confiança no narrador, quando a narrativa é feita na primeira pessoa, recorrente em McEwan, é também aflorado numa das passagens mais brilhantes do romance (quando o narrador conta as duas versões da história do enamoramento de June e Bernard, pelos olhos de um e de outro) - mas os experimentalismos nunca se afastam dos caminhos do romance clássico; estamos longe, muito longe, das derivas pós-modernistas.
James Wood escreveu sobre o trauma e o acaso nos romances de McEwan, e Cães Pretos será um dos melhores exemplos desse interesse. A epifania que roubou June ao comunismo e a Bernard surge de um magnífico acaso: um passeio pelo Languedoc, Bernard fica para trás e June depara-se com dois mastins negros dos quais escapa num movimento a que só poderá ser atribuído o qualificativo de milagroso. Entre o furioso mundo materialista do comunista Bernard e uma vida de busca espiritual, a distância curta de uma ameaça surgida do nada. O que será mais forte, mais digno de salvação? O amor certo e definitivo, ou a própria alma? Ninguém poderá amar sem se negar a si próprio. June e Bernard são fieis a identidades e construções do eu que se opõem, e essa diferença nunca será ultrapassada. Um amor a que não se submetam o espírito e a alma nunca poderá verdadeiramente florescer.