28/01/12

Fim de tarde

Rui Costa (1972-2012)

A morte de um poeta vale pouco. Não passa no rodapé das televisões, é uma breve notícia nas secções de sociedade dos jornais. Ou nem isso. A morte de um poeta vale cada vez menos. Para os que o conhecem, para as escassas centenas que o lêem. Quase todos também poetas. A morte de um poeta antes dos quarenta anos apenas é uma tragédia se o valor de um homem for medido pelo tempo que dura a sua vida. Um homem deverá morrer tão discretamente como viveu. Ou partir tão estrondosamente como quis viver. A morte, para ser derrotada, precisa de ser tão importante como a vida. E não se falar nela, como não se fala deste dia que passou em absoluta discrição. Um conjunto de horas sem nada de especial, rotina seca, tempo que irá desaparecer sem deixar vestígio. Tempo destinado a ser esquecido. A morte de um poeta é uma notícia de rodapé na vida das pessoas. Talvez seja capa na vida dos que gostam da sua poesia, mas certamente que essa capa irá parar ao lixo, como todos os jornais. Será mais do que isto, mais do que uma parangona,  para os poucos que o amavam. Mas mesmo o amor, perde-se, transforma-se em pó, memória de uma ilusão. A morte, para ser derrotada, precisa de ser reduzida à sua nula importância. Ninguém consegue.

25/01/12

3

Rasando o ar, chamando o vento,
a andorinha passa, e tu andas
perdida, sais de uma porta cansada
mas falas como se eles não estivessem lá,

o caminho é curto e assassino,
desvias-te do trânsito, desapareces
na rua, a andorinha nota a curva do lábio
pintado, pica mais o voo destemido,

espicaçada pelo movimento
calado do corpo que se mostra escondendo
queria saber ela, (é um pássaro)
o que pensas, uma impossibilidade,

coses os enigmas da vida à couraça
que te protege, a andorinha traz de volta
notícias e sorrio, mergulho
nesse deleite à distância, sei que te atravesso

no voo da ave, a matéria:
lençol trilhado pela luz do verão,
e entretanto regressas, e sentas-te e
julgas pensar no tempo que não tens.

21/01/12

Era muito de noite

                                                     para Nuno Franco


Era muito de noite, os amigos ficaram para trás
presos ao álcool e ao paleio fácil da procura. Seguimos as
ruas desertas da cidade, apenas parámos onde a água
corria na ribeira, sob o que restava de uma cortina de
buganvília.
Na varanda do quarto do hotel
os sentidos sombrios - a cama
entreaberta esperava quem nunca havia de chegar, nela ficou a
flor estridente da chama da floresta (tem a cor de cólera de
deus na nossa fronte
tem a cor dos nossos lábios), nem eu sei porque
me deu para falar da estrela da aliança,
para depois nos rirmos e comermos maçãs madrugada fora sob
a lua negra do outono atlântico
e mais forte e mais doce do que tudo
rodeia de espinhos o círculo arroxeado à volta da ferida, terreiro
alagadiço os dedos afligem
e depois
boa-noite.


João Miguel Fernandes Jorge, em Lagoeiros, ed. Relógio d'Água.

18/01/12

O Hipnotista

Aquela expressão "ler um policial para descansar a cabeça" nunca me foi estranha. Sempre descansei a cabeça com policiais. E também com filmes para idiotas nas tardes de fins-de-semana. Mas descanso mais com uma boa sesta. É verdade. Então porquê pegar num livro - um policial ou outra coisa qualquer - em vez de dormir um pouco? Aquela coisa de que falam: ausentar-se, entrar noutro mundo. Mas os livros que se lêem para "descansar a cabeça" são sempre mais realistas, mais próximos do nosso mundo. Ou não? Quanto mais próxima está de nós a natureza do livro mais facilmente nos enredamos nele, ou será que perdemo-nos mais facilmente quando o autor consegue escrever sobre o que não conhecemos?
Um exemplo: o primeiro livro do ano foi O Hipnotista, um policial na onda dos autores nórdicos popularizados pelo fenómeno Stieg Larsson (não li e agora não vou ler, porque entretanto vi os filmes suecos, e são bastante decentes). O autor é um par, um casal, e assina com o nome Lars Kepler. Lê-se bem? O que é isso? Lê-se rápido, claro, porque um artesão competente desta livralhada comercial tem de conseguir imprimir um bom ritmo à leitura. E este cumpre na perfeição. O discurso indirecto livre, na 3.ª pessoa, o presente contínuo ; e um breve interlúdio na 1.ª pessoa em modo de analepse para desvendar as brumas do passado de uma das personagens. Tudo muito escorreito, claro, simples, frases curtas, pessoas e não estereótipos, o que me parece ser uma qualidade não muito comum nestes objectos literários. A sensação de familiar previsibilidade do imprevisível. E o credo do thriller para as massas da actualidade: terá de haver várias reviravoltas até à revelação final.
Lê-se bem, lê-se bem. Não é surpreendente. Mas é invulgar, sobretudo porque se passa em ambientes que nos são estranhos: o gelo e a neve, a noite eterna, os psicopatas frios do Norte. E um pequeno gancho resultado de um interesse pessoal: a hipnose como método terapêutico. Valeria a pena por isso. A emissão prossegue dentro de momentos.

17/01/12

Ah, pois é

"Sempre que, movido pela curiosidade ou pelo tédio, me atrevo a ir espreitar as caixas de comentários da secção de cinema do Ipsilon online, penso numa importante função social que a internet veio desempenhar, e no entanto habitualmente pouco referida. Dar voz a uma classe tradicionalmente muito desguarnecida no que à, hum, vocalização diz respeito: os idiotas."

15/01/12

The hollow men

Mistah Kurtz—he dead.

      A penny for the Old Guy

      I

We are the hollow men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with straw. Alas!
Our dried voices, when
We whisper together
Are quiet and meaningless
As wind in dry grass
Or rats’ feet over broken glass
In our dry cellar

Shape without form, shade without colour,
Paralysed force, gesture without motion;

Those who have crossed
With direct eyes, to death’s other Kingdom
Remember us—if at all—not as lost
Violent souls, but only
As the hollow men
The stuffed men.

      II

Eyes I dare not meet in dreams
In death’s dream kingdom
These do not appear:
There, the eyes are
Sunlight on a broken column
There, is a tree swinging
And voices are
In the wind’s singing
More distant and more solemn
Than a fading star.

Let me be no nearer
In death’s dream kingdom
Let me also wear
Such deliberate disguises
Rat’s coat, crowskin, crossed staves
In a field
Behaving as the wind behaves
No nearer—

Not that final meeting
In the twilight kingdom

      III

This is the dead land
This is cactus land
Here the stone images
Are raised, here they receive
The supplication of a dead man’s hand
Under the twinkle of a fading star.

Is it like this
In death’s other kingdom
Waking alone
At the hour when we are
Trembling with tenderness
Lips that would kiss
Form prayers to broken stone.

      IV

The eyes are not here
There are no eyes here
In this valley of dying stars
In this hollow valley
This broken jaw of our lost kingdoms

In this last of meeting places
We grope together
And avoid speech
Gathered on this beach of the tumid river

Sightless, unless
The eyes reappear
As the perpetual star
Multifoliate rose
Of death’s twilight kingdom
The hope only
Of empty men.

      V

Here we go round the prickly pear
Prickly pear prickly pear
Here we go round the prickly pear
At five o’clock in the morning.

Between the idea
And the reality
Between the motion
And the act
Falls the Shadow
                                For Thine is the Kingdom

Between the conception
And the creation
Between the emotion
And the response
Falls the Shadow
                                Life is very long

Between the desire
And the spasm
Between the potency
And the existence
Between the essence
And the descent
Falls the Shadow
                                For Thine is the Kingdom

For Thine is
Life is
For Thine is the

This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.

T.S. Eliot

11/01/12

Os gatos

Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos



Manuel António Pina, em Como se Desenha Uma Casa, ed. Assírio & Alvim

03/01/12

Livros do ano (5)

A história contada por Julian Barnes em The Sense of an Ending (que vai ter o título em português de O Sentido do Fim*) é uma história de enganos e descobertas. Reencontrar o fio perdido de uma memória de juventude, de um acontecimento que surpreendeu e marcou um grupo de amigos, em particular o narrador do livro, Tony Webster. O avanço da narrativa faz-se na incerteza. O narrador não sabe o que aconteceu, nem porquê, e vai descobrindo à medida que o leitor descobre. A técnica usada não é especialmente inovadora mas é eficaz a vários níveis: serve a ideia da história e conduz o leitor a um caminho de percepções erradas e ideias construídas e desfeitas, um caminho em que o equívoco pode levar ao desastre e actos impulsivos à tragédia. 
O tema do romance evoca Expiação, de Ian McEwan, no seu pressuposto narrativo, mas a resolução do problema acaba por ser diferente em Barnes. Enquanto McEwan investe no pathos, criando uma personagem, Briony, cujo lastro de culpa que um acto ingénuo, uma errónea interpretação da realidade - normal numa criança de 12 anos - leva a um desespero apenas mitigado pela doença da esquecimento, Tony acaba por ser apenas um peão do destino, e o conhecimento tardio das razões que levaram ao suicídio de Adrian, o amigo de juventude, é um fantasma que o assombra - e assombrará, dado que o livro termina no vazio; da vida de Tony, a conclusão de um percurso de passividade e desistência. A aceitação da calma burguesa, que contradiz os ideais de uma juventude forjada nos swinging sixties, é o espelho invertido do brilhantismo de Adrian, derrotado pelo seu próprio tumulto.
As frases elegantes, a cadência realçando o modo como o narrador olha para o mundo, o domínio perfeito do suspense que qualquer boa história deverá exibir, fazem deste livro um cúmulo na obra de Barnes, que acabou por ser premiado com o Booker. Se mereceu ou não, pouco interessa; o resultado final oferece-nos algumas perfeitas horas de leitura, e isso é suficiente.

*Não concordo com esta tradução. Literalmente, poder-se-ia traduzir por "A sensação de um fim" ou, mais livremente, "O sentimento de um fim". É esse o significado da expressão. Mas é claro que Barnes também tentou dar outra dimensão ao título, e neste caso a palavra "sentido" parece bem aplicada. Contudo, o artigo usado em inglês é o indefinido, "an" e não o definido, "the". E quem lê o romance (ou novela) percebe que "fim" é usado no sentido de "closure", resolução. O enigma de um suicídio, a razão que vai para lá da frase de Camus. A grandiloquência da solução encontrada não se justifica.

Nota: a capa da edição portuguesa não é totalmente falhada. Mas por que é que não usaram a da belíssima edição original? Mistérios...

The Sense of an Ending, Julian Barnes, ed. Jonathan Cape

Em desAcordo

Eu, que sempre achei o Acordo Ortográfico uma inevitabilidade a que acabaria por me habituar, ainda estou a tentar entranhar o "portugalês" que agora começa a ser regra nos livros publicados em Portugal. Depois do crime da "Claraboia" sem acento de José Saramago - tendo sido escrito nos anos 60 em "português antigo", não se compreende a opção da Leya pela adaptação para "português moderno" - "Vida e Destino", de Vassili Grossman, o primeiro livro do ano, com bolcheviques a cometerem "atos" indescritíveis e mencheviques que não estão a par de todos os "fatos", enfim, está a ser complicado, e todas as dúvidas sobre a grafia de algumas (muitas) palavras novas começam a vir ao de cima. Como a gordura. Mau sinal.

02/01/12

Filmes do ano (4)

Natalie Portman é uma das actrizes bonitas que sabem representar. O filme da Darren Aronofsky, feito para ela, é prova definitiva disto. Um museu de atrocidades construído à volta da beleza do ballet clássico, ou o Lago dos Cisnes revisitado e reenquadrado na violência da história que conta. O sadismo de Michael Haneke passa pelo filme, mas o filme não está interessado em reflectir sobre os mecanismos da violência. Antes centra-se na relação entre mãe e filha - pensando bem, como acontece n'A Pianista, do realizador austríaco - e elabora um estudo sobre a frigidez feminina como repressora da criação e da liberdade artística. Mila Kunis, também belíssima, representa o oposto dialéctico desta repressão, é a bailarina mais limitada do que Portman que consegue superar a desvantagem através da expressão da sua sexualidade. O filme é masculino, claro. Há um ou outro cliché, algum deslumbramento perante o "mistério da alma feminina". Poderia ter tudo redundado num fracasso. Mas uma direcção de actores consciente e eficaz e um domínio da técnica cinematográfica, aliados a uma cinematografia que explora e expande a violência do argumento, fazem deste provavelmente o melhor filme de Aronofsky.

Cisne Negro, de Darren Aronofsky, com Natalie Portman, Mila Kunis, Vicent Cassel, Barbara Hershey e Winona Ryder.

01/01/12

2012

Começar o ano a ver uma comédia que se transforma em tragédia mas acaba por ter um final feliz. Bom resumo do ano que passou.