28/07/11
25/07/11
Abre-se a onda do poema
Na verdade, é numa espécie de entre-dois, a meio caminho entre a inteligência de um sentido e a sensibilidade às formas verbais, onde se dá a hesitação entre sentido e som, que se abre a onda do poema. Ao solicitar, mais do que a nossa inteligência narrativa, uma compreensão que se poderá dizer "afectiva", o poema lança as suas palavras como outras tantas sondas, em direcção aos fundamentos mais recônditos da nossa presença sensível no mundo. Ele faz vibrar em nós a corda enigmática do tempo, isso mesmo em que se mostra mais inescrutável. E o poema excita também as nervuras mais secretas da nossa habitação corporal e espacial do mundo. Desta forma, não é uma mensagem que ele passa, nem o que quer que seja que possa ser da ordem de um ensinamento doutrinário. Ele não põe ideias em verso; desenha e declina versões de mundos que são outros tantos esboços de uma outra economia possível da existência - de um outro ethos (morada); o qual seria, no dizer de Mallarmé, mais "autêntico".
Jean-Claude Pinson, in Para Que Serve a Poesia Hoje, ed. Deriva
23/07/11
Amy Winehouse (1983-2011)
Live fast, die young... no bullshit. Grande voz, o panteão dos 27 está mais rico; mas o mundo ficou a perder. Descanse em paz.
E mais: vejo repetida por todo o lado a expressão "desperdício de talento". Depois de morta, continua a ser recriminada por levar o estilo de vida que levava. Censurada por não ter feito outro disco desde Back to Black. Condenada pelas desastrosas actuações ao vivo. Não é justo. É egoísmo puro. Queremos que os nossos ídolos sejam perfeitos? Não, pedimos apenas que nos sirvam, como cantava outro perseguido pela fama, Kurt Cobain. Serve the servants - os artistas obrigados a servirem a sua arte. E nós, como vampiros, nunca nos cansamos, queremos sempre mais. Desperdício de talento, como se deus (ou alguém por ele) tivesse desperdiçado um dom em alguém que não o merecia. Amy Winehouse não era apenas um produto consumível. No fim de contas, o que lamentamos nós? A morte de alguém, ou o fim do nosso vício? Quem será, afinal, imperfeito?
21/07/11
Uma sombra em Montparnasse
A memória de Jean Seberg assombrava-me, tristemente.
As palavras de William Styron resgatam a imagem de uma laje de pedra no meio de tantas, um nome e uma data meio sumidos, a actriz americana anónima na morte, igual a todos os outros mortos sem nome conhecido. Estive ali, a olhar o desenho do nome da pedra, e aquele desenho não poderia ser a americana que Belmondo encontra nos Campos Elísios a vender a imprensa ianque. Mas era. E não era mais do que aquilo: um nome desaparecido, uma recordação de um filme visto em tempos. Uma sombra.
20/07/11
Meninges
Histórias de brilhantes fracassados que se perderam no caminho para a glória. Escrever sobre esse nada que afecta os membros como se de uma doença insidiosa se tratasse, o cansaço e o sono. A minha vida está cheia de estes sinais que tento ignorar a todo o custo. Encontro na escrita de Sérgio Sant'Anna velhos conhecidos que de vez em quando entendem azucrinar-me sem descanso. Bem, não exageremos. Não me interessa cair no auto-comprazimento masturbador, as festinhas no ego são exclusivo privilégio de quem me quer amar (apesar de tudo). É assim, sem sossego e a todo o custo tentando suportar as toupeiras que por dentro roem as entranhas, agora surge a imagem de longe e é tudo: papel deixado pelos ratos, ruína de papel empilhado sobre ruína de lixo, cheiro nauseabundo espalhando-se em redor, fedor a rato e a urina de rato e ratazana, e eu fugindo da invasão de ratos por toda a casa, surgindo de todo o lado, do soalho, das paredes, dos tachos e da chaminé, por todo o lado, das bocas abertas de espanto perante o ataque das coisas insalubres que se escondem do nosso olhar domado pelo terrível quotidiano, de todo o lado por todo o lado, e isto era um sonho, um sonho apenas, alimentado por uma realidade com demasiadas costuras soltas, cicatrizes mal fechadas, vagas que regressam de onde o sangue nasceu, em todo o seu fulgor, o sabor férreo do esplendoroso sangue na boca. Como conciliar o sono com as toupeiras que se transformam em ratos, o tempo avançando em permanente ameaça, que tal substituir por histórias de brilhantes fracassados esses símbolos tardios de freudianismo de pacotilha, ignorar o drama de faca e alguidar com o qual a vida se pode facilmente confundir? Dormindo, de um lado para o outro do sono resgatando o conforto das ilhas a que podemos aportar na volta da viagem, o sentido descendente em direcção ao medo que com esforço podemos controlar. Esquecendo e rindo, escrevendo e resistindo (sem ideologia nem partido, apenas palavras e pudor).
17/07/11
Doppler
O percurso de um homem pode ser de uma rectidão tão clara que chega a parecer, para quem vê de longe, uma linha curva que quase toca no seu início. O efeito doppler aplica-se também a uma vida. Todos os outros pontos que circulam em redor da linha movem-se em trajectórias irregulares, e por vezes cruzam o caminho do homem bom. Ele sabe de onde vem e, mais importante, para onde se dirige. Nada o pára, e espreita pelo canto do olho a sua sombra constante, mesmo quando o sol não brilha. A moral de um homem é uma questão de geometria. O comprimento de onda em que os seus sentimentos prosperam, apesar de inaudível para os outros indivíduos, é uma ladainha mínima que lhe serve de silencioso mote. O desvio para o vermelho que a linha recta que o homem desenha apresenta é a prova da sua curvatura na dimensão espaço-tempo. Um homem não passa de um corpo celeste. Em eterna rotação e perpétua translação, sempre a ponto de ver o seu movimento cruzado pelo movimento de outro corpo. Espera a qualquer homem um de dois destinos: a destruição ou a fusão, e a segunda hipótese contém em si a primeira. O desaparecimento.
16/07/11
Mãe
As mãos são troncos, a pele rugosa casca. As veias, raízes fincadas na terra, o sangue seiva alimentando os frutos radiando no céu. Mas nunca estivemos sós; nunca tanto como ela.
15/07/11
Metáforas
Um homem em tempos confessava-me que perdera o dom de coleccionar os dias ao perder-se nas fracções em que os dias se desdobram, e que, desde esse dia em diante, passara a falar por metáforas. Por exemplo: se dizia "está sol" pensava num livro que lera em criança, ou se dizia "lamento que não tenha percebido" na verdade incentivava o seu interlocutor a prosseguir na conversa. Era normal que poucos entendessem o sentido das palavras, a direcção do discurso, a coerência das frases. O desconcerto chegava a ser redundante, à força da repetição e da implacável lógica da imagem que se escondia no simples enunciado das coisas. Certo dia, a uma pergunta que eu lhe fiz acerca da razão porque estava ali naquele momento, desatou a contar sem parar, não queria parar, não conseguia parar, abrindo e fechando a boca numa velocidade crescente, número atrás de número atrás de número até à intangibilidade absoluta, até o encadeamento de números se tornar um emaranhando de sons, roucos, altos e baixos, graves e agudos, uma série de gritos, culminando num silêncio final fulgurante; o rosto vermelho e desfigurado, uma careta insuportável como a de um sátiro. Nesse momento, decidi cortar relações com ele. Nunca mais a partir daí consegui pensar em metáforas. Ainda hoje quando vejo o sol apenas penso em amarelo. Nunca em luz.
(Como estamos no Verão, dedico-me às reprises, textos de outras andanças. Está calor.)
14/07/11
13/07/11
O mesmo, eu
De cada vez que leio textos antigos - aqueles que cheguei a esquecer de os ter esquecido - é como se nunca os tivesse escrito. E identifico muita coisa que se ausentou do que agora escrevo. São estranhos, rostos não reconhecidos por força de uma qualquer doença da memória. Talvez os valorize em demasia, mas parece-me que tudo o que ganhei, o que foi afinado, não está à altura de alguma ingenuidade lírica que por vezes era quase certeira. O cinismo nem sempre compensa.
12/07/11
Fernanda - é este o amor de que me lembro
Planeara escrever, antes de começar, um texto que deixou de fazer sentido. Maus sentimentos na origem do texto, uma daquelas irritações que insistem em forçar a verbalização, a qual contrariarei, sabendo eu como a maior parte das vezes a concretização do impulso me traz apenas arrependimento e frustração.
Nos seis anos do seu desaparecimento, uma evocação da actriz Fernanda Alves no A Invenção de Morel trocou-me as voltas, limpou o fel que sufocava na gargante há dois dias. Nunca a vi representar ao vivo, confesso, e quando tive conhecimento da notícia apenas me impressionei com uma fotografia de juventude que irradiava uma misteriosa beleza. Outra fotografia que circulou na altura mostrava-a junto do seu companheiro de uma vida, Ernesto Sampaio, tradutor exemplar, surrealista por vezes, poeta, ensaísta, figura marginal da literatura portuguesa. E admito que a morte de Fernanda Alves rapidamente se tornou facto esquecido; até algum tempo depois. Algum tempo depois, quando aparece nas livrarias um volume de título Fernanda, editado pela Fenda. Comprei-o, salvo erro, na Feira do Livro, e li-o ao sabor de um tempo que, para mim, na altura seria de quase desespero, corria devagar e se encerrava em si próprio como uma espiral ameaçando estrangulamento. Uma descoberta como raras vezes acontece; e, meses depois, ele morria. De amor, como afirmou Mário Cesariny. O José Mário Silva, no seu texto, fala de uma alegria pura soltando-se do rosto da actriz quando viva e encontra nos olhos do poeta uma melancolia que talvez já intuísse a dor vindoura. A mim parece-me que os olhos não podem revelar assim tanto, e eu desconfio que depois do presente passar torna-se algo que se pode reconstruir de acordo com a nossa vontade. Gostava portanto de pensar, como o José Mário, que tudo morava já ali, naqueles olhos adivinhando o futuro. Mas não. Sim, ele temia perdê-la um dia, mas somos nós, daqui do nosso invejável futuro, que construímos personagens à medida do nosso desejo, prontas a encaixar na nossa história pessoal, uma consequência da necessidade que temos de nos perceber através dos outros. Parece-me que Ernesto Sampaio não desistiu da vida, a vida é que desistiu dele quando lhe furtou a única válida razão para continuar a existir: alguém para amar.
Textos que por vezes nos fazem retroceder no caminho. Ainda bem que assim é.
(Texto antigo, regressado com a releitura do livro. Continua esquecido. A editora, uma referência, desapareceu. Parece que, de cada vez que me apercebo da mudança, tudo está menos vivo. Esquecido.)
Tempo, outra vez
Quando o tempo se torna circular, corremos o risco de ser engolidos por um vórtice.
08/07/11
05/07/11
E agora vamos falar de coisas sérias
Calhou uma vez mais estar de férias durante o Tour. Não vou tecer considerações (não tenho jeito para bordados) sobre as suspeitas de doping que perseguem os grandes ciclistas nem a monumental vaia que Contador ouviu durante a apresentação da prova. Toda a gente sabe que os franceses facilmente cedem ao prazer da irascibilidade, e por isso - mais o Flaubert, o Godard, o Camus e o Zidane - lhes devemos perdoar. Adiante. Parece que este ano vai haver montanha a sério. Andy Schleck is my man, se sabem do que estou falar. Como não é o Djokovic nem o Nadal. Gostaria de ter visto este um escocês ganhar Wimbledon, mas não foi desta que Andy Murray superou os seu complexo de inferioridade perante a musculatura do sobrinho do central do Barcelona de Cruyf. Mas o ténis é um jogo de meninas (como maradona e David Foster Wallace se esforçaram por provar). O ciclismo é aquela coisa da glória e da superação e da absoluta verdade de que apenas se poderá ganhar recorrendo a meios ilícitos. O problema não é este ou aquele ciclista serem suspeitos de alguma coisa; o problema é que parece não haver outra maneira de lá chegar, ao topo. A dúvida paira sobre todos, como num filme de Hitchcock. Mesmo os que nunca são apanhados. E isso deixa-me vagamente chateado; por exemplo, aborrece-me que aquele que parecia o mais puro talento surgido nos últimos anos, o herdeiro de Marco Pantani, tenha entregue a alma ao Diabo e o corpo a várias transfusões de sangue, e por duas vezes seguidas. Ricardo Ricco sprintando serra acima era um espectáculo do outro mundo. Mas... como diria Gregory House, "a vida não é justa", e por vezes a glória vai parar aos lutadores com grande capacidade de fintar as equipas anti-dopagem. Enfim, só me lembro disto porque revi hoje um episódio da série no qual é tratado um grande campeão americano pelo médico. E claro, esse grande campeão americano dopa-se. E no fim, safa-se. É a vida.
Enquanto vou, eticamente dividido, assistindo na Eurosport ao excelente relato da Volta (bela dupla de comentadores aquela, por vezes complementada por um francês irascível chamado Olivier - ou será um belga? Afinal, é monegasco. - que não se importa de ser o saco de pancada dos outros dois), espero pelos primeiros jogos da pré-época. Confesso que a satisfação de ver partir Villas-Boas rumo a melhores paragens foi um pouco atenuada quando foi revelado o nome do novo treinador - Pinto da Costa terá algo na manga, ao escolher alguém chamado Vítor Pereira para o lugar. Resta-me esperar que meia equipa seja vendida - e quando escrevo "meia", refiro-me ao João Moutinho e ao Falcao, os outros podem ficar - e acreditar cegamente nos três ou quatro defesas-esquerdos que Jorge Jesus vai testar no lugar do Fábio Coentrão. Tirando isso, está tudo bem com o Benfica; temos jogadores suficientes para ter duas equipas a disputar o campeonato (haverá maneira de autorizar uma alteração nos regulamentos?) e o pelotão de avançados em linha de espera para substituir Cardozo dá-me razões de sobra para confiar numa boa campanha na Taça da Liga. Isso e os dois Salvios (ou Ramires, como preferirem), os dois Di Maria (Gaítan e a maravilha que sobrou do Barcelona) e os três defesas direitos que não irão tirar o lugar a Maxi Pereira. No entanto, confesso sentir um pouco de inveja do adversário (?) da Segunda Circular. É tempo do Benfica começar a apostar noutros mercados; queremos um Thadeus von Rumpelstiltskin no ataque; um Varsaj Snhjors no meio-campo; e esperanças sul-americanas a treinar na Academia (ah, esperai, isso já temos).
Jogos contra equipas da terceira divisão suiça: um must de qualquer pré-época, para compor as bombásticas capas da Bola e ajudar ao entusiasmo dos milhões de benfiquistas que vivem no Seixal. Pelo andar da carruagem, talvez nem sobre muito tempo para espreitar os Mundiais de atletismo, lá para Agosto. O Verão é longo - e a pilha de livros habitual uma vez mais não será desbastada. Boas férias desportivas.
- Inicialmente publicado no Arrastão -
04/07/11
Feedback to the Future
Estávamos em 1990. Os Stones Roses tinham lançado o seu primeiro álbum um ano antes. Na Hacienda de Madchester dançava-se ao ritmo de pastilhas e ao som de New Order e de Happy Mondays, de Shamen e de Inspiral Carpets, de Primal Scream pré-Screamadelica. No resto do mundo, ouvia-se Nirvana como se fosse a última esperança de uma geração - e eram, e foram, mas ainda andamos por cá. O grunge era o digestivo de um juventude consumista em fúria; o house, o tecno e o som de Madchester a refeição pantagruélica do hedonismo de quem preferia esquecer a raiva e a fúria. A Inglaterra precisava de uma Terceira Via. Os herdeiros da melancolia indie dos anos 80, das bandas da 4AD, dos sons etéreos (o cliché) dos Cocteau Twins ou dos This Mortal Coil. Os que recusavam olhar o mundo deferente, preferindo fixar o olhar nos sapatos que calçavam durante os concertos. A onda shoegazer surgia, subterrânea, com muita pretensão existencial e algum lirismo sonoro. As guitarras planando sobre vozes sussurradas, bateria em fundo quase silencioso, alguns sintetizadores. Uma pose que era uma atitude, uma atmosfera que aspirava a ser um sonho musical de adolescentes perdidos à entrada para a vida adulta. My Bloody Valentine, Ride, Slowdive. Mas também Swervedriver, Moose, Drop Nineteens (criadores do fabuloso Winona, homenagem ao ícone indie do filme Reality Bites). Os 4Adianos Lush. Mais tarde, os herdeiros Spiritualized. Quem conseguisse ouvir estas bandas fora de Inglaterra poderia considerar-se um afortunado. Eu fui. Havia um tipo na minha faculdade que usava uma t-shirt com a imagem do palhaço da capa de Going Blank Again. Seria difícil ser mais cool do que aquilo, achava eu (por onde andará?).
Os anos passaram. Deixei de ouvir shoegazing. No final dos anos 90, uma banda de Leiria (o antro alternativo daquela década), os Phase, tentaram recriar este som. Niguém na altura soube quem eram (entretanto o guitarrista, Ricardo Fiel, está na banda de David Fonseca). Voltei, e o mundo comigo, a ouvir falar deste som Sofia Copolla. Depois de ter convidado outra banda etérea, os Air, para comporem a banda-sonora de Virgens Suicidas, pediu a Kevin Shields, o mentor dos My Bloody Valentine, para criar o som de Lost in Translation. Renascia o gosto pela melancolia, um desencanto juvenil desembocando uma vida adulta. Um estilo. Nesse ano, 2003, é editada uma compilação com bandas shoegazing, de 1990 a 1992 (a brevidade é a chave do movimento). Feedback to the Future é o nome da compilação. O feedback das guitarras mais um futuro que parecia não poder existir. Sem os My Bloody Valentine (porque não quiseram particpiar), sem os Verve, que na sua primeira versão eram shoegazers, mas com todos os outros. Depois, fogachos daquele som, numa ou noutra banda - os Sigúr Ros são os mais conhecidos. E para quando um regresso ao futuro?
Feedback to the Future - a Compilation of eleven shoegazing songs from 1990-1992. Edição Mobilé.A música dos Slowdive é, quem sabe, a melhor do álbum. O esplendor da melancolia em forma musical.
- Publicado inicialmente no Arrastão -
- Publicado inicialmente no Arrastão -
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